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Vários – “Eleitos Do Ano 1993 – Nova Fórmula” (balanço anual / listas anuais)

pop rock >> quarta-feira, 29.12.1993


ELEITOS DO ANO 1993 – NOVA FÓRMULA

De facto, a eleição dos melhores álbuns do ano 1993 segundo o Piop Rock é a mais científica de sempre. Escolhemos oito áreas: pop-rock português, pop-rock anglo-saxónico, reedições pop-rock, bandas sonoras, vídeos, world music, reggae e blues. Depois, fomos a todos os suplementos que editámos este ano e destacámos os discos com melhores classificações, distribuindo-os por tops segundo as referidas áreas. Uns tops são maiores do que outros, porque as áreas também não têm todas o mesmo valor.
Há conclusões interessantes a tirar, como, por exemplo, de que, enquanto se chegou facilmente a um “top” da “world” só com discos com o máximo de pontuação e não foi preciso descer a menos do que aos nove pontos na área pop-rock internacional, já na música portuguesa se teve de repescar discos com sete pontos, para se reunir uma dezena. Claro que, a seguir, fizemos uma certa batota, porque, se dez discos portugueses com oito pontos não havia, em contrapartida os que tiveram sete pontos seram mais de dez. Excluímos primeiro as compilações, depois os idoscos ao vivo, por fim, usámos critérios menos transparentes. Completas as listagens, concentrámo-nos na votação do disco do ano em cada uma das oito áreas. Após acesas discussões, algumas birras e muitas cedências mútuas – do tipo, eu voto no teu discoportuguês se tu votares no meu de “world” -, elegemos os melhores de 1993. E, por fim, já cansados, recomeçámos a escrever.
Mas era rigor laboratorial a mais, veleidades epistemológicas excessivas, estávamos À beira do colapso. Foi quando surgiram duas ideias para fugir ao trauma da cientificidade e restituir a este suplemento a sua verdadeira alma rock ‘n’ rol. Uma dessas ideias foi votar os artistas do ano, partindo do princípio que nesta área musical não são as boas acções, nem tão pouco os factos, que conferem prestígio, antes a escandaleira e os boatos. O que lerem aqui é assim uma mistura de realidade e fantasia, de genuína admiração e muita má língua. A outra odeia foi recapitular os melhores momentos dos concertos que houve em Portugal em 1993 e, a partir daí, elaborar um questionário, partindo também do princípio de que um espectácuklo rock ‘n’ rol fica na história não tanto pelo virtuosismo dos desempenhos, mas sobretudo pelos acidentes extra musicais.
Bom Ano Novo!
LUÍS MAIO, FERNANDO MAGALHÃES E JORGE DIAS

Troféus Imaginários, Mas Merecidos, Para Artistas De Sonho

AS FIGURAS INTERNACIONAIS DO ANO

Pinóquio 1993




Refutando perentoriamente toda a espécie de vis acusações que recaem sobre o autor de “Dangerous”, a Associação dos Amigos do Pinóquio (anónima, mas aparentemente subsidiada por uma multinacional, de um refrigerante concorrente da Pepsi) decidiu este ano atribuir por unanimidade o seu galardão maior a Michael Jackson. Trata-se, como é óbvio, de um acto simbólico, com que se pretende acentuar que a parte do corpo do artista que cresce quando está na companhia de menores não é a que ele costuma mais afagar durante os concertos (isto é verdade, alega ele). Tendo verificado que o mesmo sucedia com o focinho do Homem Elefante (daí ter licitado os despojos mortais da infeliz criatura) e o do seu chimpanzé (corre o boato, não confirmado, de se passar outro tanto com a sua amiga Liz Taylor), o mais famoso do clã Jackson teria então submetido o seu próprio órgão do olfacto a uma difícil operação de cirurgia estética e, a partir daí, ele passou a crescer ou a diminuir não por dizer verdades ou mentiras (ele pouco mais diz que “obrigado”), mas consoante as tenras companhias.

Batráquio 1993




Uma Liga de Amigos dos Animais, preocupada com a violência protagonizada por humanos praticantes de música eléctrica contra outros seres vivos – praga que cresce desde que o rock sinfónico caiu em desgraça -, acaba de criar o troféu Batráquio da Música. O prémio original destina-se a estimular a pacificação da cena musical pela metamorfoseação em sapos, encenada ou real, de estrelas de rock e amigos, numa inversão alegórica da fábula popular. Este ano, o galardão foi naturalmente arrecadado por Prince, que começou por rubricar uma digressão de Verão perguntando às suas plateias como é que se chamava (isto é verdade). O rumor que corre é de que o famoso génio minorca, depois de passar semanas a fio a imitar James Brown, George Clinton e Jimi Hendrix, acordou um dia sem saber quem era. Quando a sua corte de cinderelas lhe jurou que ele era Prince, não acreditou e pensou que o confundiam com um tal Victor, que também era imitador. Como as plateias não o convenceram do contrário, ele decidiu-se por esta ideia brilhante de publicar anúncios nos principais jornais do mundo à procura da mulher mais bonita do planeta. O raciocínio é o seguinte: quando ela o beijar pela primeira vez, e se ele for mesmo Prince, então ele transforma-se em batráquio.

Rainha GATT 1993



No contexto de uma nova estratégia dos serviços secretos dos Estados Unidos, delineada no tocante às negociações do GATT, superestrelas norte-americanas foram convidadas para executar certos trabalhinhos no estrangeiro. Os artistas mais insuspeitos foram recrutados, tendo Madonna, bem conhecida pela sua paixão pelo mundo latino – desde o hino hispânico “La Isla Bonita” à sedução do actor António Banderas -, sido indigitada para atacar na América do Sul. Muito descarada, mas não menos patriota, Louise Ciccone não se fez rogada e desferiu um rude golpe nas pretensões sul-americanas quando, em Outubro passado, actuou em San Juan, Porto Rico, e usou uma pequena bandeira desse país para, em palco, limpar o suor não apenas nos sovacos, mas também no peito e entre as pernas (isto é verdade). A proeza valeu-lhe instantaneamente o prémio de Rainha GATTT, nos Estados Unidos, mas toda a publicidade que daí resultou comprometeu novas missões similares. No Canadá, ainda conseguiu dizer “Fuck Toronto”, numa estação de rádio local (isto é verdade), mas já na Alemanha teve de anular um concerto, onde era seu propósito vexar os alemães protagonizando um número de lésbica vestida à Marlène Dietrich. Correm agora boatos insistentes de que os serviços secretos norte-americanos pretendem enviar Michael Jackson vestido de panda para rebaixar os chineses; e Garth Brooks disfarçado de Saddam para desmoralizar as tropas iraquianas.

Justine 1993




O prémio Justine distingue fêmeas proeminentes nso “tops” internacionais que tenham dado o passo decisivo e público de se auto-reavaliar numa óptica libidinal, eventualmente operando a transfiguração de sacos de batatas para “pin-ups” radicais. O troféu que em edições precedentes foi conquistado por artistas como Sheena Easton e Kylei Minogue, vai este ano, não sem alguma surpresa, para a última sensação “indie” que responde pelo nome de Polly Harvey. Apesar dos seus dois discos deste ano não evidenciarem melhoras de vulto no plano da moléstic amusical, Polly tomou gosto pela experiência de aparecer ainda pudicamente com as costas nuas, na capa de um New Musical Express do ano passado, e desembaraçou-se do visual da cara deslavada e cabelo oleoso, roupas de mendigo e botas cardadas, para ressurgir toda pintada e de óculos escuros, com nada mais do que um “top” e um calçãozito a tapar-lhe o recheio, qual mulher fatal com alcova por cenário (isto é verdade). Enquanto se espera pelo dueto escaldante desta “Belle de Jour” da distorção com Prince, já se anuncia a transformação de virtuosas em bombas sexuais – de Enya, Elisabeth Frazer e Kate Bush.

Benfeitor 1993




Embora não fosse a escolha mais óbvia, o prémio pela acção benemérita de origem rock ‘n’ rol acabou por ir parar, com toda a justiça, às mãos de Axl Rose. Isto porque o sempre vulnerável e sensível cantor dos Guns N’ Roses processou a sua ex-noiva, a modelo Stephanie Seymour, argumentando que a “fera” o violentou, tanto no foro mental quanto num plano emocional. Trocada por miúdos, na sequência de várias cenas de peixeirada, a reputada donzela pôs a circular uma foto sua com um olho negro, afirmando que a dita mazela resultava de um murro que Axl lhe aplicara no dia de Natal do ano passado, quando, segundo diz o cantor, foi ela que lhe atirou com uma peça de mobília. Pior do que isso, Stephanie recusou-se a devolver-lhe o anel de noivado e toda uma série de pechisbeque que lhe oferecera, conjunto estimado em qualquer coisa como cem mil libras. Tudo isto é, no entanto, irrelevante e o que ressalta deste infeliz melodrama é que Axl quer recuperar a quinquilharia para a vender e doar para fundos que revertem para centros de assistência a crianças violentadas (isto é verdade). Como ele, se calhar, por matulonas demau génio.

Anti-Sexista 1993




Enquanto a crítica britânica de literatura prosseguia um animado debate sobre o significado exacto do refrão “por ti fazia tudo, mas isso é que não”, recorrente no novo álbum “Bat out of Hell II”, o seu autor, Meatloaf, abria um centro de recuperação para marginais. Na foto (isto é verdade, ou seja, não é uma montagem), o benemérito artista exemplifica o suave método de reabilitação para tirar da vida duas jovens caídas em tentação, permitindo que elas mantenham o seu antigo visual e uniformes de trabalho numa casa de passe gótica, mas substituindo as actividades viciosas pelo inofensivo passatempo de montar em duas rodas (há uma certa inversão de posições que também é terapêutica). As chamas ao fundo são, naturalmente, mais uma metáfora requintada para a saída dos infernos em versão motorizada e a sua exegese teológica foi já encetada por um núcleo de estudiosos destas coisas.

Saias 1993




Apesar de estarem fartos de ser “grunge” e de todos os rótulos anexos, tais como “Novos Campeões da Barbárie”, “Sexistas sem Pausa” e “Misógenos de Seattle”, os Nirvana voltaram em 1993, para reciclar as mesmas fórmulas de combinação de punk e heavy metal em “In Utero”. Não conseguiram mudar o som, mas, em compensação, operaram uma subtil reforma do visual, trocando as camisas de flanela aos quadrados e as calças de ganga, rotas nos joelhos, por lindos e vaporosos vestidos folridos. A luminosa iniciativa dos Nirvana produziu instantaneamente uma nova tendência da moda, contagiando bandas tais que Afghan Whigs, Stone Temple Pilots e Smashing Pumpkins, nos Estados Unidos, e James, Maniac Street Preachers e Take That, em Inglaterra (isterdade). Também se diz que a revista feminina “Vogue” vai passar a ser para homem e vice-versa; e a “Elle” só não passa a “Lui”, porque esse é já o nome de uma revista “soft porno”. Entretanto, os fãs, inicialmente apanhados desprevenidos, não demoraram a assaltar os guarda-roupas de mães e irmãs, mas estão agora perante um grande dilema: se os seus heróis vestiram saias compridas no Outono, será que devem já rapar as pernas para usar mini-saia na Primavera?

P. J. Harvey – “Lágrimas De Sal” (concerto)

Y 9|MARÇO|2001
escolhas|ao vivo

lágrimas de sal

Não me importo de ser exposta numa canção porque endureci. Passei grande parte da minha vida sem companheiro ou a ser rejeitada. Tenho que ter desejo, sentir o cheiro de um homem… sou uma grande romântica, mas o meu coração e as minhas entranhas sobrepõem-se ao meu senso comum. P.J.Harvey



Desejo. Rock. Desejo. Sombras. Desejo. E agora o oceano. Imenso. “Is This Desire?” perguntava Polly Jean Harvey no seu álbum de 1998. A resposta era uma estranha combinação de romance e desespero. “O meu coração e as minhas entranhas sobrepõem-se sempre ao meu senso comum”. Restava uma única saída deste vórtice: a viagem pelas águas.
“Stories from the City, Stories from the Sea” materializa essa nova etapa de um percurso que em disco se iniciara em 1992, com “Dry”, e prosseguira no ano seguinte com “Rid of Me” e em 1995 com “To bring you my love”, antes de se atolar nos pântanos do desejo e, finalmente, desaguar no oceano. “Eu”, “secura”, “amor”, “desejo”, “mar”. Símbolos de uma ascese feita de ternura e raiva, sol e trovoada.
“Li algures que o dever de qualquer artista é o de reescrever incessantemente a fronteira que separa a terra do mar”, “vivo num pequeno apartamento junto à costa e tudo o que consigo ver das minhas janelas é o mar”, diz Polly Jean Harvey a propósito do novo álbum. O mar no horizonte, o mar como horizonte. Exterior e interior. As águas, símbolo do Inconsciente coletivo que urge atravessar para atingir o lado de lá, a outra margem, o lugar onde o indivíduo se integra numa entidade cósmica mais vasta e a personalidade finalmente se dissolve. Onde, como dizem os budistas, as águas do rio se confundem com as do mar.
“Hoje sei que não passo de uma pequena porção de um todo gigantesco que me ultrapassa e que já não tenho de passar tanto tempo a confrontar-me com o meu interior sem ser capaz de olhar cá para fora”. De “Rid of Me” (“desembaraça-me de mim”) até “Stories from the City, Stories from the Sea”, Polly Jean Harvey cumpriu essa viagem
P.J.Harvey foi nome de grupo – um power-trio de guitarra, baixo e bateria formado em 1991, Somerset, Inglaterra, responsável pelos primeiros singles – antes de ser Polly Jean, como Norma Jean, nome de mito. A estreia a solo, a seco, com “Dry”, valeu a esta mulher de 31 anos, natural da zona rural do Sudoeste inglês, adjetivos como “engraçado”, “cáustico”, “sedutor”, “selvagem”, “disforme”, “magoado”, “irónico” e “cru”. E nomeações para melhor álbum, melhor compositora e melhor cantora. Como se isso lhe importasse.
“Rid of Me” foi acolhido pelo LA Times como “um trabalho espantosamente arrojado” e o Newsweek acentuou a “brutalidade” das canções, elevando-as à categoria de grande arte. É difícil o rock elevar-se a esta condição. Polly Jean Harvey é dos poucos artistas contemporâneos a consegui-lo. “To bring you my love” recebeu mais um punhado de nomeações da Rolling Stone e da Spin, com a cantora a reforçar a componente teatral das suas apresentações ao vivo, além de tocar guitarra, vibrafone, percussão e teclados. Em “Is This Desire?” teve a seu lado John Parish, Eric Drew Feldman (ex-Pixies e Captain Beefheart), Joe Gore (da banda de Tom Waits), Mick Harvey (Bad Seeds) e Rob Ellis.
Polly Jean Harvey contribuiu com a sua voz e composições em álbuns de Pascal Comelade (“L’Argot du Bruit”), Nick Cave (“Murder Ballads”) e Tricky (“Angels with Dirty Faces”). A par da sua transformação psicológica, o gosto pela representação sofreu igualmente uma mudança de escala. Do palco dos concertos ao vivo para o palco maior, por vezes maior do que a vida, do cinema, com a inclusão no elenco de “The Book of Life”, média-metragem de Hal Hartley (1998), onde desempenha o papel de Maria Madalena. Lágrimas bíblicas. Lágrimas de mar. Lágrimas de sal.

P.J. HARVEY
+ GIANT SAND
Lisboa Coliseu dos Recreios, 4ª, 14, às 21h
Bilhetes: 4000 escudos



P. J. Harvey – “To Bring You My Love”

Pop Rock

1 de Março de 1995
álbuns poprock

O amor como forma de suplício

P. J. HARVEY
To Bring You My Love

Island, distri. Polygram


pj

Polly Jean Harvey é querida da crítica. “Dry” fez parte da lista dos melhores álbuns do ano para o “New York Times”, “Village Voice” e “Rolling Stone”, e ela própria foi eleita por esta última publicação a “melhor compositora” e “melhor nova cantora”. “Rid of me”, e a posterior experiência de rarefacção que é “4-Track Demos”, foram igualmente recebidos com um coro de elogios. Polly Jean tem vários trunfos na mão, a começar pelos seus talentos vocais.
Ao ouvir-se a sua voz torturada no tema de abertura, precisamente “To bring you my love”, é impossível não pensar em Janis Joplin. É o mesmo “cocktail” explosivo de dor, raiva e ironia, com amarras naquela corrente subterrânea que se iniciou nos anos 60 com Janis e os Doors e derivou na actualidade para o niilismo conceptual dos Einstuerzende Neubauten, a autocrucificação tornada espectáculo de variedades de Nick Cave e Jim Thirwell, o humanismo “sado-maso” dos Suicide ou a perversidade viral de Diamanda Galas. O mesmo é dizer que P. J. Harvey tem raízes, bem fundas, no passado mais negro do rock.
“To Bring You My Love” é um álbum de emoções e sonoridades saturadas. Das guitarras torturadas às inflexões histriónicas da voz, o excesso é uma constante. Como se Polly Jean, que aqui assegura o desempenho nos teclados, vibrafone e outras percussões, tentasse tatuar em nós cada palavra e cada melodia ensopada em sangue, sem deixar espaço para a fuga ou para a indiferença. Os ritmos alternam entre o fragor de edifícios em derrocada, martelos pneumáticos descontrolados e metais em processos de corrosão acelerada. A primeira vaga de violência explícita vai no entanto dando progressivamente lugar a um outro tipo de crueldade, mais contida mas não menos perturbante.
“Teclo” é uma balada caleidoscópica dooriana e “I think I’m a mother” uma ameaça sussurrada no fundo de um poço. Jesus e o diabo cruzam-se constantemente com P. J. Harvey, sobretudo quando o tema é o amor, ou o seu duplo, como é o caso em “To bring you my love” e “Send his love to me”, neste último com a cantora a descer ao lugar, no céu ou no inferno, onde se agitava Jim Morrison, ao fundo do corredor de “The end”. Polly acaba a dançar desamparada no tema final, “The dancer”. Transportada por um órgão gospel, numa glória a negro e ouro com o cheiro da morte. (9)