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sábado, 28 Junho 2003
O amor e a solidão, nos seus mais diversos cambiantes, foram tocados e cantados pelos mestres. Bill Evans, Ben Webster, Ella Fitzgerald e Louis Armstrong disseram-nos que podem ser felizes.
O amor feliz
Ella Fitzgerald Louis Armstrong
BEN WEBSTER
Soulville
Verve
10 | 10
BILL EVANS
Alone
Verve
7 | 10
CHICK COREA
Rendezvous in New York
2xCD Stretch
8 | 10
SHIRLEY HORN
May the Music never End
Verve
7 | 10
ELLA FITZGERALD & LOUIS ARMSTRONG
Again
2xCD Verve
9 | 10
Todos distri. Universal
Seis meses antes de Bill Evans, Oscar Peterson abrira o caminho, com uma sessão de piano em solo absoluto, algo que até então não fazia parte das tradições mais comuns do jazz. Com “Alone”, de 1968, o autor de “Waltz for Debby” procurou atingir a “sensação do absoluto no ato de tocar sozinho”. Provavelmente atingiu-a. Para trás ficara, como confessou, o medo e a impressão que sempre tivera, de que sempre que um pianista tocava sem acompanhamento as pessoas não prestavam atenção e se entretinham a beber, a comer (se num bar) ou a conversar. “Música para jantar” não é certamente o caso de “Alone”, um álbum cuja delicadeza e nostalgia, habituais em Evans, a par das figuras de estilo e da elegância das modulações harmónicas, se sustentam numa sólida arquitetura matemática, menos intuitiva e bastante mais racional do que seria de supor, sendo o próprio pianista a acentuar a importância da estrutura e do “ratio” matemático. Rigor que não impede, antes liberta, o fluxo musical que, no formato típico do trio com contrabaixo e bateria, se confina a regras bastante mais rígidas. Claro que haverá sempre alguém disposto a utilizar esta música como fundo musical para a degustação de um bife (embora, na nossa opinião, ela ligue melhor com peixe fresco) o que, afinal, até se poderá considerar como um complemento daquele estado de “rêverie” que a música de Bill Evans tende a provocar no auditor. Embora seja lícito duvidar de que os 14 minutos e as constantes oscilações de registo de “Never let me go” possam constituir um bom auxiliar da digestão. Ao alinhamento original, a presente reedição remasterizada adiciona seis “takes” alternativos. “Alone” transporta-nos para a nossa própria solidão.
Será portanto aconselhável contrabalançar tal estado com outros menos acabrunhantes. O novo de Chick Corea, “Rendezvous in New York”, duplo CD gravado no formato de Super Audio CD com recurso ao DSD, tecnologia que recorre a “software” Pyramix (garantia de um som piramidal) associado aos processadores Pentium da nova geração, serve às mil maravilhas este propósito. Gravado ao vivo no Blue Note de Nova Iorque em Dezembro de 2001, os dois discos oferecem um “digest”, em várias combinações, do pianista, que vão do “concerto” clássico ao “free jazz”, com pouco espaço para a fusão.
No primeiro CD Corea aparece em duo com Bobby McFerrin, num triplo número de malabarismos vocais, em trio com Roy Haynes e Miroslav Vitous (na “Matrix” de “Now he Sings, Now he Sobs”, aqui recenseado recentemente), com Haynes, Joshua Redman, Terence Blanchard e Christian McBride (numa mnemónica da banda de Bud Powell que é o grande momento deste trabalho), em duo com o vibrafonista Gary Burton (recuperando o mágico “Crystal silence” gravado para a ECM) e com a sua Akoustic Band, num “Bessie’s blues” solto na tradição.
Do “outro lado”, de novo a Akoustic Band, mais “Armando’s tango”, tanguero q.b. mas não tanguista, na companhia dos Origin (Avishai Cohen, Jeff Ballard, Steve Wilson, Steve Davis e Tim Garland). Clarinetes quentes. Movimentos melódicos ainda mais. Notável o “Concierto de Aranjuez”, diálogo de pianos com Gonzalo Rubalcaba, que “riffa” com raro vigor nas mãos esquerdas do “hard bop” e se constrói em plena comunhão.
No pacote das remasterizações da Verve, dois clássicos, ambos de 1957. O primeiro chama-se “Soulville” e tem a assinatura de um dos maiores mestres de todos os tempos do saxofone tenor, Bem Webster. A balada de “blues” de abertura revela-se um daqueles momentos de luz absoluta que qualquer amante de jazz deve utilizar para converter os descrentes ao jazz. O saxofone fala diretamente ao coração (porque sai diretamente dele), respira no nosso peito, obriga-nos a enfrentar, sem defesas, a própria essência do “blues” e a penetrarmos nela. Sensualidade é a ideia que estamos a tentar fazer passar. Com a presença, não menos sublime, do piano de Oscar Peterson – o espírito. “Late date” sua a sexo puro. O lado mais rugoso e lúbrico do tenor segundo Webster num enlace em que o piano acerta na certeza de que o “blues” é o balanço perfeito. Quem se deixa apanhar, ou se casa ou se vicia. Quem sabe escutar os conselhos do pai do jazz tem a sabedoria do seu lado. E que dizer de “Lover, come back to me” ou “Where are you?”? Não há quem resista à força e ternura desta sedução, abraço trémulo, jazz do continente interior. Tenor-amor. Sensação em estado puro, sem intermediários. “Soulville”, podendo ser saboreado por todos os que retiram do jazz o sumo, faz transbordar (e chorar) de felicidade o epicurista para quem a música é o néctar oferecido pelos deuses. “Makin’ whoopee”. É o que apetece fazer.
O outro clássico, do mesmo ano de 1957, também tem a ver com quem sabia lidar com a felicidade, o que nem sempre é fácil: Ella Fitzgerald e Louis Armstrong juntaram-se em “Again”, depois de um primeiro encontro em “Ella and Louis”. Ou, como alguém comentou, “a match made in heaven”. “Makin’ whoppee”, de novo, claro, volta a entrar no alinhamento, instando-nos a fazer o mesmo. O grupo de músicos é praticamente igual ao de “Soulville”: Oscar Peterson (piano), Herb Ellis (guitarra), Ray Brown (baixo). Só o baterista é diferente, Louis Bellson, em vez de Stan Levey. Encontramo-nos com o património da balada na sua vertente mais lúdica. Ella e Louis cantam com a inocência (curioso verificar como o registo vocal de Armstrong foi moldado por Tom Waits na forma das cabeças que fecham de dia mas estão abertas toda a noite…) própria de quem não chegou a morder a maçã dada por Eva a Adão, mas mesmo assim guarda a sabedoria, “standards” como “Don’t be that way”, “Stompin’ at the Savoy”, “These foolish things”, “Love is here to stay” ou “I get a kick out of you”. Ella não esconde nada, embora cada uma das notas que canta seja uma lição de vida. Dele, Louis, “Satchmo” não conseguimos desligar a voz do sorriso. “Comes love” soa como algo que se desaprendeu de ouvir dizer e de dizer ao outro. Ella sabia-o. Ele sabia-o. E quando os ouvimos, sabemos também, milagrosamente, que o amor nem sempre vem para magoar.
Mas quando magoa, pode matar. Di-lo outra cantora de que não se pode desviar. Shirley Horn, de regresso com um novo disco, “May the Music never End”. Escutar no momento errado a sua versão de “Ne me quitte pas”, de Jacques Brel, na adaptação inglesa, “If you go away”, é sufi ciente para fazer o Verão terminar prematuramente. Shirley canta como uma contadora de histórias, estendendo o tempo, sempre lento, como um tapete às palavras, tão cantadas como declamadas. Roy Hargrove (trompete) e Ahmad Jamal (piano) são os convidados especiais desta coleção de “torch songs”, tão suaves que deixam no ar a esperança.