Arquivo mensal: Dezembro 2018

Robin Williamson – “Skirting The River Road” + Dino Saluzzi – “Responsorium” + Savina Yannatou – “Terra Nostra”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 1 Março 2003

Três álbuns que refletem a tendência mais “folky” da editora de Manfred Eicher: poesia por um bardo, tango ambiental e uma voz grega sensual. Abertura a outras músicas que nem sempre é sinal de sucesso.


ECM uma editora de jazz?

Robin Williamson
Skirting the River Road
5 | 10

Dino Saluzzi
Responsorium
6 | 10

Savina Yannatou
Terra Nostra
8 | 10
Todos ECM, distri. Dargil



Claro que o título é uma pequena provocação a uma das editoras que mais tem feito pelo jazz contemporâneo nas últimas décadas. Mas, mesmo sem levar em conta as “new series” dedicadas a obras de carácter erudito que vão do neoclassicismo à música antiga, encontram-se espalhados por este selo discos que só com um esforço de boa vontade se podem considerar dentro da área do jazz, bastando pensar nas discografias de Steve Tibbetts, Stephan Micus, Shankar, Lask ou “Rosensfole”, de Jan Garbarek com a cantora Agnes Buen Garnas. Manfred Eischer tem, pois, um ouvido na folk. Umas vezes acerta. Outras nem por isso….
É um pouco o que se passa com o segundo álbum para a editora de Robin Williamson, bardo, harpista/multinstrumentista e músico fundador de uma das bandas seminais dos anos 60, os Incredible String Band (ISB). Acontece que a sua inclusão na ECM se tem revelado um tremendo erro de “casting”. Williamson, fosse nos ISB, nos posteriores Merry Band ou nos seus trabalhos a solo, revelou-se sempre como uma personalidade incatalogável e algo errática cuja música e voz, demasiado idiossincráticas, são avessas a produções “integracionistas”, como são, regra geral, as da ECM.
“Skirting the River Road” reúne uma série de composições de Williamson para poemas de William Blake, Walt Whitman e Henry Vaughan, mas as vocalizações “instáveis” e as declamações, a execução tipo folk de Williamson, na harpa e nos “whistles”, em contraste com o “approach” jazzístico de Mat Maneri (violino e viola) e Paul Dunmall (dos Mujician, em saxofones, clarinete, gaita-de-foles, ocarina, etc.) não combinam, o que resulta numa música sem centro nem orientação. “Here to burn” é uma típica canção dos ISB que ganha com a presença de outro dos músicos presentes, Ale Möller. Este sabe-se que é homem da folk, que à sua conta toca aqui mandola, alaúde, saltério, “shawm”, clarim, flautas várias e vibrafone. Mas como encarar a declamação “hippie” de Williamson sobre as “anomalias” free de Dunmall no saxofone ou integrar outra das típicas vocalizações do cantor (“Abstinence sows sand”), que dir-se-ia arrancada do álbum “Myrrh” (estreia a solo de Williamson), em que os saxofones de Dunmall e os arcos de Maneri parecem ter sido gravados numa sessão diferente? Algo não liga nesta fusão entre mundos por enquanto demasiado afastados entre si, por maior empenho que todos tenham posto no projeto.
Já Dino Saluzzi é um velho “habitué” da ECM, familiarizada com o seu tango sofisticado para quem o jazz é pretexto para treinar o “bandoneon”, afinado num ambientalismo “cool” que se encaixa bem na filosofia da editora. Em “Responsorium” o argentino tem a companhia de Palle Danielsson, no contrabaixo, e de José Maria Saluzzi, na guitarra acústica, incorrendo em discretas improvisações sobre motivos tanguísticos, como fazia Piazzola com outro fogo e outro fôlego. Tem nostalgia, distância, um pouco de saudade e solos, de fazer parar e prestar redobrada atenção, de Danielsson. Mas é como diz o outro: jazz e “bandoneon” casam tão bem como Satie e harmónica, ou Wagner e ferrinhos. Para Saluzzi, a música sai do seu coração. Infelizmente não há meio de entrar no nosso…
Sem peneiras nem disfarces, a cantora grega Savina Yannatou, com o seu grupo Primavera en Salonica, estreia-se na ECM com “Terra Nostra”, gravado ao vivo em Atenas. Neste caso não há que enganar: “Terra Nostra” surge na sequência dos anteriores trabalhos do grupo e constitui, desde já, obra imprescindível para os apreciadores de folk. Savina é uma rainha (quem a viu e ouviu ao vivo, no CCB em Lisboa e em Santa Maria da Feira, não a esquecerá tão cedo) a cantar, um anjo de sensualidade arrebatadora como só a música grega mais profunda pode ter, sobretudo quando servida por uma intérprete de exceção que junta uma técnica incomparável (o corpo não se move um milímetro, enquanto a voz se roça e faz amor com quem a ouve) a uma expressividade luminosa. Os Primavera en Salonica ora se remetem ao acompanhamento etéreo da voz, ora explodem na complexidade dos compassos dos Balcãs. “Yiallah tnem rime” é folkpop com Savina a cantar como se fizesse parte dos Bothy Band ou dos Dervish. Polifonias “a capella”, com a voz da segunda cantora, Lamia Bedioui (“Schubho Lhaw Qolo” faz pensar em Sussan Deyhim, em “Desert Equations”), são outros dos atrativos de um álbum que percorre vários imaginários do Sul com a agilidade, a sensibilidade e o amor de quem nele mergulhou o corpo e a alma. Um disco apaixonante para se ouvir como um namoro.

Vários – “O Jazz Mais Desalinhado Passou Por Portalegre” (concertos / festivais / artigo de opinião)

(público >> cultura >> jazz >> concertos)
Segunda-feira, 24 Fevereiro 2003


O jazz mais desalinhado passou por Portalegre

Na estreia do Portalegre Jazz Fest, Jim Black foi a estrela de maior grandeza. A sua bateria provou que o jazz e o rock não se esgotam nos rótulos


Portalegre vibrou durante três noites com algum do jazz mais desalinhado da cena atual, enchendo o gelado auditório do Cine-Teatro Crisfal com o seu entusiasmo. O menos desalinhado e o mais friorento dos músicos que passaram pela 1ª edição do Portalegre Jazz Fest foi o pianista Bernardo Sassetti que, na quinta-feira, no concerto de abertura, em trio com o contrabaixista Carlos Barretto e o baterista Alexandre Frazão, apresentou a música do seu mais recente álbum, “Nocturno”, tentando a todo o custo aquecer os dedos resfriados.
O jazz de Sassetti e do trio é clássico. Tem Bill Evans a inspirá-lo. Sassetti esteve superior quando a sua cabeça e alma se voltaram para as zonas mais intimistas do piano. Música impressionista que progressivamente se foi alheando do mundo para se concentrar nos requintados arabescos que só através do silêncio se dão a ouvir. Sassetti passou pelos “clichés” sem se deter. Percorreu escalas orientais, procurando pontos de fuga. Dançou. Barretto foi o alicerce inquebrantável, o swing permanente, a descontração firme, a imaginação a dançar nos solos. Frazão acrescentou a energia, por vezes algo despropositada, às ondas centrípetas da música. Conquistaram a sala e um merecido “encore”.
Na sexta-feira o trio alemão Der Rote Bereich fez a mudança de agulhas para um jazz hiper-cerebral construído em pequenas peças que alternaram o riso com doses controladas de risco. Frank Möbus, na guitarra, e Rudi Mahal, no clarinete-baixo, remetem-se a um diálogo incessante e a jogos de tensão que raramente encontram escape ou explosão. Um jazz de jogadas estudadas que remonta a práticas dos anos 80 conotadas com grupos “underground” com selo Recommended como Semantics, Doctor Nerve, Neo Museum, Orthotonics ou Uludag. Rudi tocou o clarinete-baixo como um saxofone, abanou as pernas o tempo todo e destacou-se como a mais imaginativa voz solista de um trio cuja paixão por Portugal vai ao ponto de chamar a alguns dos seus temas “Pastilha elástica”, “Portugal” e o já lendário “Feijoada de chocos”, cuja versão nova faz parte do recente álbum “Risky Business”.

Absoluto Jim Black
A melhor música do Jazz Fest foi, porém, a do quarteto AlasNoAxis, do baterista Jim Black. A melhor e a mais afastada do jazz. Dividida em dois “sets”, a atuação pautou-se por características distintas em cada uma delas. Em comum apenas a liderança absoluta de Jim Black, um fabuloso baterista de técnica e imaginação inesgotáveis que em alguns momentos fez lembrar Bill Brufford e Charles Hayward. Quanto à música, suscitou na plateia curiosas comparações, vindo à baila os Sonic Youth, King Crimson, Godspeed You Black Emperor! Tortoise e, nos momentos mais ambientais, Sigur Rós (!).
Black atuou em solo constante, percutindo a bateria de ponta a ponta e mesmo alguns objetos fora dela. Bateu nos tambores com as mãos, fez os címbalos gemer com um arco de violino e ainda encontrou tempo para lançar ambiências eletrónicas no computador.
Na primeira parte andou praticamente sozinho, inventando, desmultiplicando e desfazendo tempos que os seus companheiros não souberam acompanhar. Chris Speed, no sax tenor e clarinete, então, esteve irreconhecível. Quase amorfo, limitou-se a soprar um timbre “flat” sem chama ou “punch”. Hilmar Jensson, na guitarra, e Skuli Sverrisson, no baixo, tentaram acertar o passo com o andamento vertiginoso do baterista. Apenas na segunda parte o conseguiram, porque Black pareceu acalmar um pouco, dando-lhes maior espaço de manobra. Em vez de um mais três, os AlasNoAxis mostraram que são mesmo um quarteto. Embora mais próximos do pós-rock de uns Tortoise ou Gastr Del Sol do que inseridos nas categorias tradicionais do jazz.
Jensson e Sverrisson afiaram os “riffs” e deram a direção devida ao “noise”, Speed fez finalmente jus ao seu apelido e pareceu acordar, aumentando o corpo e a presença do sax tenor, colorindo com fraseado próprio, no clarinete, as constantes divagações do baterista. Quase a concluir um dos temas demonstrou todo o poder que os AlasNoAxis têm ao seu alcance, através de um crescendo que juntou a psicose dos Naked City (de John Zorn) ao clamor e contenção totalitários dos Urban Sax (de Gilbert Artman).

Sun Ra And His Solar-Myth Arkestra – “The Solar-Myth Approach (Vols.1 & 2)”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 22 Fevereiro 2003

Sun Ra dirigiu a nave do “free jazz” em direção ao cosmos. E foi no cosmos, por altura do Saturno que orbitava em torno da sua cabeça, que assentou o seu arraial de amuletos, rituais e danças galáticas.


Sun Ra, o viajante astral

Sun Ra and his Solar-Myth Arkestra
The Solar-Myth Approach (Vols.1 & 2)
9 | 10
Sunspots, distri. Trem Azul


O jazz é como o xadrez. Até certo ponto do jogo, todas as jogadas estão estudadas e catalogadas. A partir daí, apenas os mestres conseguem inovar quando confrontados com o desconhecido. Avançar torna-se um risco. Sun Ra foi um daqueles músicos da história do jazz que, com alicerces na tradição, mais longe se conseguiram afastar dela. Líder de “big band” da linhagem de Fletcher Henderson, Sun Ra dirigiu a nave do “free jazz” em direção ao cosmos. E foi no cosmos, por altura do Saturno que orbitava em torno da sua cabeça, que assentou o seu arraial de amuletos, rituais e danças galácticas. Estação espacial enfeitada com bandeirolas, altifalantes e radiações de solário, orbitando ao som de um piano alienígena e das vibrações estelares de um sintetizador Moog.
Integrado num pacote de reedições (formato miniatura, em cartão, da editora Byg/Actuel, com rótulo de série “Sunspots”), “The Solar-Myth Approach”, gravação de estúdio efetuada em 1970 e 1971, surge dividida em dois compactos — volumes 1 e 2. No primeiro volume escutamos celebrações efusivas de um tribalismo simultaneamente arcaico e futurista, polo celeste do mesmo eixo que fixava os Art Ensemble of Chicago à Terra, em solos de bateria a compassar a tempestade (“Realm of lightning”), engenharia de Moog (“Seen III, took 4”, pequena amostra do que Sun Ra faria em larga escala na gigantesca manipulação deste instrumento eletrónico que ocupa a totalidade de um dos lados da gravação ao vivo “Nuits de la Fondation Maeght”) e uma protocanção, “The satellites are spinning”, algures entre o teatro de Brecht e “Nine funerals of the citizen king”, dos Henry Cow. Lugar de destaque na cabine de pilotagem para o sax alto de Marshall Alen e para o sax tenor de John Gilmore, velhos compinchas do “Spacemaster” ao longo das várias personificações da Arkestra. “Adventures of Bug hunter” ilustra a faceta cartoonesca e o lado burlesco (decerto não terá sido por acaso a inclusão de uma imagem de Charlot na fotografia da capa) deste músico que não se coibiu de dedicar um álbum inteiro a Walt Disney.
O segundo volume inicia-se com “Utter nots”, uma das muitas iluminadas “aberrações” com que Sun Ra preenchia a eternidade nas atuações ao vivo da Arkestra. Música selvagem para uns. Mística para outros. Incompreensível na medida em que Sun Ra se regia por códigos que escapavam à vulgar catalogação, quer em termos musicais, quer psicológicos. O seu piano, pulsante como uma chaga aberta no firmamento, sintoniza a vibração universal dentro do indivíduo. A Arkestra vai tão longe quanto pode e Marshall e Gilmore (num solo com algo de Coltrane) perseguem o inevitável silêncio que sucede ao grito, quebrando amarras, arriscando o tal lance que pode ditar a vitória ou a derrota na partida de xadrez. Os mais ávidos de escutar o mestre a arrancar sonoridades insólitas do Moog (mas iludam-se os que pretenderem ver em Sun Ra o Rick Wakeman do jazz…) têm em “Scene 1, take 1” com que se deliciar, em oito minutos de exploração dos filtros analógicos e das infinitas combinações de cabos de conexão de circuitos do “Moog synthesizer”. “Pyramids” soa a música barroca intergaláctica interpretada em cravo eletrónico e “Interpretation” é um portentoso tratado de eletroacústica onde Sun Ra, o construtor de mitos, o viajante dos espaços psico-acústicos, faz explodir “clusters” astrais no piano, moldando e desfazendo sistemas planetários inteiros a seu bel-prazer. “Ancient Ethiopia” evoca o lado mais étnico e ancestral do músico, através de um diálogo de flauta e violoncelo precedendo a entrada em glória do sax barítono, com a big band em euforia. Instante de exceção na obra deste músico-mágico que ousou compor a banda sonora imaginária para depois do fim do mundo. “Strange worlds” fecha a celebração da única maneira possível, com a “troupe” a estabelecer-se numa nova terra, a respirar um novo ar. “O ar é música. Em volta da Terra circula o estupor do ar. Necessitamos de um novo ar.” Sun Ra, “dixit”, entre a profecia e a “blague”.
Nesta altura, mesmo o mais experimentado jogador de xadrez sentir-se-á deslumbrado como uma criança que pela primeira vez descobre o mundo fora de si, local de correspondências mágicas onde todas as possibilidades se tornam reais e a potência se faz ato. “Aum”, o mantra sagrado, funciona como detonador do Verbo. Cabe a cada um descobrir a sua verdade, através da audição. Diz, a propósito, Sun Ra: “Não posso garantir que esta música tenha a ver com precisão e disciplina. Da mesma forma que procuro ser bem sucedido no modo como tento dominá-la, assim também todos aqueles que procuram encontrar uma relação entre ela e si próprios, deverão ouvi-la sob certas circunstâncias. Esta música é sobre o que está para além do destino.” Como olhar de frente a luz do sol sem cegar?