Boas notícias para os admiradores dos Jethro Tull: o grupo está de boa saúde. Não tem sido fácil sobreviver à “morte anunciada” (e há quantos anos vem sendo anunciada!…) do rock progressivo mas a banda de Ian Anderson continua a aguentar a pé firme (o que também não será fácil, sabendo da preferência do flautista para se firmar sobre uma perna só…). “Christmas Album” evidencia o som clássico do grupo, sem cedências aos modos de produção actual, se exceptuarmos “Another Christmas Song”, único exercício de estúdio “neo prog”, a contrastar com o tom acústico das restantes 15 canções. Nestas, Anderson canta e toca flauta como um herói, retomando a velha veia folk, com pinceladas Fairport Convention, em “Holly Herald”, ou numa magnífica “A Christmas Song”, a par de “Last man at the party” e “First snow on Brokklyn”, temas a merecerem a entrada para a galeria dos clássicos do grupo. A faceta “jazzy” é outro selo de garantia de um álbum que, evitando a nostalgia, apresenta todavia as marcas de uma melancolia terna, através da inclusão de uma nova versão do antigo instrumental “Bourée”.
Há coisas que não mudam. Ou somos nós que não damos pela mudança, porque crescem connosco. A música dos Dervish tem a eternidade dentro dela. “Spirit” é o espírito da Irlanda, o espírito do mundo, o espírito do Belo. E o espírito de Finn Corrigan, engenheiro de som, falecido este ano, a quem o álbum é dedicado. É um clássico que revivifica as velhas danças e baladas tradicionais, com uma “verve” e uma sabedoria que apenas o tempo e o amor concedem. O violino, o acordeão, a flauta e os “whistles” voam, saltando de um compasso para outro como duendes. E Cathy Jordan a levar-nos para o meio de florestas, castelos e fantasias. A capa é verde, da cor do mar. E não, não é a imaginação a pregar-nos uma partida: a voz de Cathy está mais macia, como a relva de um prado regado pela chuva. “Whelans”, incursão na folk progressiva, tem um segredo escondido… E prova que as danças irlandesas acordam mais notas do que as da vertigem e do fogo dos “jigs” e “reels”. Como proclamava o filósofo do alto da montanha: “Vede, há em mim um espírito que dança!”
24.10.2003
John Cale
HoboSapiens
EMI, distri. EMI-VC
8/10
Não perdeu pitada da fúria que destilou nos Velvet. O novo álbum tempera a violência com a experimentação. Como o galês já não fazia desde Music For A New Society.
John Cale, o galês ex-Velvet Underground das mãos de ferro (tocava piano como se envergase umas luvas de boxe, dizia a malograda Nico, a propósito da sua participação, como produtor e multinstrumentista, no álbum “The End…”). Bom, Cale não tem só as mãos de ferro. A cabeça também.
“Hobosapiens”, o seu mais recente álbum de estúdio, co-produzido por Nick Frangle, dos Lemon Jelly, e o primeiro num espaço de sete anos, confirma todas as virtudes, reduzindo ao mínimo os defeitos, deste músico que desde sempre mantém uma relação quase esquizofrénica entre a música pop (a saber, canções) e o experimentalismo (a saber, o risco formal – Cale fez parte, nos anos 60, do círculo do guru da escola minimalista, em versão zen, LaMonte Young, e gravou o álbum “Church of Anthraz” com Tery Riley). Virtudes que se revelam de imediato na primeira faixa, intitulada “Zen”, precisamente: a coragem de arriscar, misturar e refundir células melódicas e rítmicas, ideias e choques, através da fragmentação, do uso intensivo de samples e de arranjos idealizados por forma a tirar o maior partido das novas tecnologias “Pro Tools” que tem vindo a explorar nos últimos dois anos.
Os defeitos, aqui bastante minorados, limitam-se a essa tal síndrome das luvas de boxe (inexistente, por exemplo, no seu parente espiritual, Peter Hammill), sem que, todavia, tal impeça a detonação das granadas emocionais. Não que Cale (que hoje e a manhã se apresenta na Aula Magna de Lisboa) seja um brutamontes, nada disso; acontece apenas ser frequente a voz dar ideia de estar sempre um passo à frente do resto, tal a avidez de esmurrar a cara seja de quem for. “Hobosapiens” é um combate que só termina quando o adversário vai ao tapete por K.O. E esse adversário é o mundo.
“Reading my mind” prova ser a primeira grande canção, servida por uma batida rock sem descanso e uma guitarra afinada pelo diapasão de “Heroes”, de Bowie (a propósito, o propósito, o próprio Cale gravou um disco de rock-rock que poucos mencionam ou que menosprezam: “Honi Soit”) e um coro “doo-wop”: Difícil resistir.
“things” é Cale “vintage violence” com ex-Velvet a evidenciar a sua veia Dylaniana. “Look horizon” parte de sugestões etno, borbulha com efeitos electrónicos, faz contraponto vocal com uma declamação no feminino e é passada a ferro por uma orquestra digital que evoca tanto a dupla Brian Eno/Cluster como a absoluta e impenetrável bizarria que é “tilt”, de Scott Walker, disco do qual se tem falado para fazer uma comparação – abusiva – com “Hobosapiens”.
A habitual propensão para nomear canções com nomes próprios com caução cultural (segundo uma herança classizante que cristalizou em “Paris 1919” e, dispensando por completo a pop e o rock, em “The Academy in Peril”) manifesta-se em “Magritte” e “Archimedes”. O primeiro é outro dos momentos altos de “Hobospaiens”, verdadeiramente surrealista na estrutura, alternando violoncelo, filtragens e falsettos vocais, efeitos de luz e água e pormenores hammillianos, como tudo se desenrolasse no fundo de um lago, oculto por um véu de mistério. Já “Archimedes” condescende no “groove” sincopado do “drum ‘n’ bass” embora Cale faça gala em destruir as expectativas de quem gostaria que este fosse um disco de dança. Apesar de haver “Bicycle”, o mais dançável e redundante dos temas do álbum. A técnica pode ser essa mas o objectivo é outro, soando “Archimedes” como um falso calipso, cortado por um espantoso interlúdio orquestral (?) imune a quaisquer definições.
Cale, que já trabalhara com Brian Eno em “Fear” (uma das grandes e mais alucinadas obras do ex-Velvet) e “Caribbean Sunset”, demonstra não ter esquecido os ensinamentos do mestre das “estratégias oblíquas”, nos arranjos de “Caravan”, escorrendo tanta lava como em “Lodger”, de Bowie. Tema de viagem, como o era “Sanities” de “Music For a New Society”, ainda e sempre o expoente máximo, a solo, do artista.
Deixando “Bicycle” circular em direcção à meta, ao som de campainhas e balir de carneiros, deixando claro que Cale não é propriamente os Kraftwerk, o álbum entra na sua fase final no período mais ameaçador, aquele onde Cale se sente como peixe em águas pantanosas. Um par de temas, “Twilight Zone” e “Letter from abroad”, arrasam, moem os miolos, provocam suores frios. Tudo aquilo que seria suposto o rock provocar. Cale dá forte em “Twilight Zone”, moldando uma argamassa de vozes de comando – “Give up the ghost!”, “Bring out the dead!”, “Get on with your work!”, “Kick out the jams!” – guitarra sulfúrica e harmonias vocais em convulsão. Em “Letter from abroad”, inspirado num documentário para a televisão da jornalista Saira Shah sobre a ocupação do Afeganistão pelos talibãs, a guitarra derrama chumbo fundido sobre sonoridades orientais e uma batida demoníaca, com Cale a cantar como se estivesse possuído. Ou vivesse o último dia de vida. O coro eleva-se num “maelstrom” de agonia. Gritos. “They’re cutting their heads off in the soccer fields…”. Meira Asher adoraria ter sido ela a compor o tema. A revista “Uncut” lembra-se de citar, a propósito da sequência coral, o compositor Ligeti (ou Lee Getty, como foi chamado nas legendas de um documentário transmitido recentemente no Canal 2 da RTP, supostamente cultural).
Mais experiências de som e tempero de “drum ‘n’ bass” condimentam “Things X”, cultivando Cale aquele tom vocal etílico que, como bom galês e noutras ocasiões, nunca se coibiu de exibir, antes do pano baixar na balada épica final, “Over her head”. Supostamente de amor. “Ela vê chamas na cozinha/Uma visão do inferno” e “Ela ama toda a gente/Ela até me ama a mim”. E o tema dispara com o rock ‘n’ roll mais incendiário que se possa imaginar, embora Brian Eno tivesse acendido o fósforo, enquanto contava uma anedota, em “Blank Frank”, do álbum “Here Comes the Warm Jets”. Depois disto, quem apaga o fogo?
“Hobosapiens” tira John Cale da reserva e lança-o de novo para a frente de batalha. Aos 61 anos, é obra.