No meio das divas, semi-divas e candidatas a divas que vão proliferando no “novo fado”, Mafalda Arnauth continua na dianteira e a dar cartas. Antes de mais e antes que nos esqueçamos: “Encantamento” é o melhor disco de sempre da cantora e um dos melhores do fado, “tout court”, editados nos últimos anos. Mafalda está a cantar como nunca, sublimemente, o que se deve em parte às aulas de canto recebidas, que resultaram num domínio absoluto da respiração e da projeção, aliviando o “stress” e a pressão, enterrando o medo. Dizendo de outra forma: Mafalda canta agora como quem respira. Como quem vestiu, sem agasalhos, a alma inteira. As ornamentações e o rubato fluem com a naturalidade de uma…vamos mesmo ter que dizer o nome…Amália… embora nunca a originalidade de um canto e uma sensibilidade poética próprios se revelassem, como aqui, com a luminosidade – aquela onde a Beleza se cruza com a mágoa – que ressalta de fados como “As fontes”, “Sem limite”, “Da palma da minha mão” ou “Canção”. “Irei beber a luz e o amanhecer, irei beber a voz dessa promessa, que às vezes, como um voo, me atravessa e nela, cumprirei todo o meu ser”. As palavras são de Sophia de Mello Breyner, em “As fontes”. Mafalda Arnauth fê-las suas e cumpre a promessa.
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20 Junho 2003
AT-TAMBUR
At-Tambur
Ed. Tradisom
8|10
Depois dos Vai de Roda, Gaiteiros de Lisboa e dos Realejo, eis a mais recente revelação da folk portuguesa. Têm vários pontos a seu favor, o menor dos quais não será o de todos os seus membros saberem tocar, aliando a formação clássica de alguns deles e muito trabalho de ensaios. Inseridos numa tradição nobre da folk europeia, de grupos como Blowzabella, Lo Jai ou La Ciapa Rusa, os At-Tambur cultivam o gosto pelo ecletismo e pela improvisação, sem que isso implique o esquecimento das regras e das pulsações tradicionais. A partir de um reportório que inclui composições próprias, tradicionais portugueses (os únicos vocalizados), sefarditas e escandinavos, ao lado de um “jig” de Paul James (Blowzabella) e um “bourrée” de Gilles Chabenat (arranjado e executado de forma superlativa, os grandes grupos atrás citados fazem assim!), e utilizando uma paleta instrumental rica (sanfona, violino, flautas, acordeão, gaita, cordas, etc) os At-Tambur criam “tradições imaginárias”, passam pelo minimalismo, pela música de sabor antigo e pela excelência de baladas como “D. Fernando”, com um sentido estético inultrapassável que apenas pecará por certas “adiposidades” ao nível da improvisação. Nada que o próximo disco não lime. Um clássico instantâneo.
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20 Junho 2003
Nos 25 anos de carreira, um auto-retrato em forma de ópera-rock. António Manuel Ribeiro, Joad, numa viagem que se inicia no rock e não se sabe como termina. “La Pop End Rock”.
cavalos de corrida
UHF
La Pop End Rock
2xCD Capitol, distri. EMI – VC
7|10
2003 não é boa altura para se fazerem óperas rock. Aconselha a prudência a que se apague, pelo menos, o termo “ópera”. Os UHF fizeram ouvidos de mercador e foram para a frente com o seu último projeto, uma “ópera rock” intitulada “La Pop End Rock”, lançada – oh, heresia! – em duplo CD, com um rótulo a assinalar 25 anos de carreira.
Os UHF podem não ser o grupo mais sofisticado do mundo mas serão, e sobre isso haverá poucas dúvidas, um dos mais coerentes e corajosos. Sempre fizeram o que achavam que deviam ser feito, sem olhar a preconceitos nem se deixando levar pelos ventos da moda. “La Pop End Rock” é, segundo os próprios, uma “obra ficcionada sobre a carreira oficial e a vida não documentada dos UHF”. Ficcionada ou não, as letras e as notas informativas sobre cada tema, que podem ser lidas no “livrete” fornecido independentemente (não cabia na caixa de plástico) do CD, remetem para ou descrevem episódios nos quais é difícil não descortinar peripécias e personagens reais que atravessaram a vida do grupo.
António Manuel Ribeiro (AMR) é Joad, o herói, como Peter Gabriel o fora, com o pseudónimo Rael, em “The Lamb Lies down on Broadway”. As restantes personagens incluem uma fada, Ana, um crítico, um fã, o velho pastel, Shi, um dealer, o agente e duas groupies. E um coro (personificado num “grito de mãe”, no “homem da garagem” ou na “voz da serpente”), que a intervalos sublinha ou antecipa a ação, proclamando em registo épico: “genial”, “hospital”, “anormal”, “tribunal”. O tema de abertura, “Nascer/Os Primeiros acordes”, conta com a intervenção de uma orquestra sinfónica e, lá mais para a frente, é possível escutar-se naipes de cordas, além das guitarras de António Côrte- Real, o piano e Jorge Manuel Costa e, claro, a voz, mas também os sintetizadores, de AMR.
Ao todo são 35 histórias/episódios/fragmentos, em registos que vão do confessional ao descritivo, do esoterismo místico dos contactos com uma misteriosa fada ao realismo exacerbado da vida na estrada – “Mais frango, não”, brada AMR em “Uma história com (a)gente”. Histórias que falam da droga, do álcool, da noite, da solidão, das ressacas, do desencanto, da desistência, do abandono e da reconciliação. De amores passageiros e amores que deixam marcas para sempre. Encontros e separações. Glória e rotina. Da alegria e das pulsões suicidárias. Dos palcos, das terras por onde se passa até se lhes esquecer os nomes, e dos hotéis. Dos críticos e de canções. Dos putos – os fãs, todos “número um”. Da raiva, de quimeras e de guitarras elétricas. De Joey Ramone. Do rock‘n’ roll. E, em epílogo, do DJ que”como ninguém, quer matar a cantiga”.
um género que fez história. Foi nos anos 70 que o género “ópera rock” levou ao absurdo a fórmula do “álbum conceptual” que animou uma fatia razoável do rock progressivo. Se o rock progressivo era sonho, ambição e literatura, a “ópera rock” foi teatro e exagero. “Tommy” e “Quadrophenia”, dos The Who, permanecem como paradigmas de um género que, já no ocaso da década, originou “The Wall”, dos Pink Floyd e que antes passara, mais ou menos camuflado, por “The Lamb Lies Down on Broadway”, dos Genesis. Já “Hair”, “Oh, Calcutá” ou “Jesus Christ Superstar” inserem-se sobretudo na tradição do teatro musicado, no “music hall”, imbuído do espírito “hippie”, mais do que no teatro popular, de cabaré e cariz ideológico marcadamente de esquerda, desenvolvidas por Brecht, Kurt Weill e Hans Eisler. Antepassados da ópera rock, encontramo-los recuando aos anos 60, em obras como “S. F. Sorrow”, dos Pretty Things (da qual se diz ter influenciado Peter Townshend na idealização dos seus projetos megalómanos com os the Who) ou “The Story of Simon Simopath”, da banda inglesa de pop psicadélica Nirvana.
Na atualidade, músicos/escritores como Philip Glass, Laurie Anderson, Robert Ashley, Meredith Monk, Heiner Müller ou Tod Machover subtraíram ao género o “rock”, substituindo-o por “vídeo”, “multimédia”, “performative art”, “programático”, etc, de acordo com conceções que revertem as formas tradicionais do teatro para os novos moldes permitidos pela introdução das novas tecnologias eletrónicas, tanto ao nível gráfico e cenográfico como musical. Os UHF apenas pretenderam contar uma história. A sua história. Com circunstância e alguma pompa. “Ópera rock” oblige…
pela estrada certa. As pretensões dos UHF são mais modestas. Embora AMR, referindo-se à efeméride do 25º aniversário do grupo, afirme, sem falsas modéstias: “Se fôssemos americanos estávamos a caminho de sermos carimbados no rock ‘n’ roll hall of fame!”. Em vez de um álbum de tributo (“significa em geral que já se está com os pés para certo sítio!…”) preferiu a “provocação” do formato “ópera rock”. “Resolvemos ser nós a fazer a nossa história antes que aparecesse alguém a fazer alguma parvoada”.
Fazer este duplo álbum exigiu dedicação a tempo inteiro. Só “La pop end rock”, chave do álbum, garante o veterano rocker nacional, “passou por três arranjos diferentes”. “La Pop End Rock” é álbum que permitirá aos admiradores do grupo, além da música, deliciar-se com a decifração das charadas que se encontram disseminadas pelas letras (quem é “Aime eme ra”?). “La Pop End Rock” tem orquestra, tem canções com a força de “Cavalos de corrida”, tem uma mística que o grupo, a mal ou a bem, tem conseguido manter intacta e bem colada ao corpo.
Há quem odeie, quem encolha os ombros com desdém, mas também quem sinta uma curiosidade irresistível de espreitar para dentro de “La Pop End Rock”, nem que seja para avaliar o estado do rock em Portugal. Históricos ou dinossáurios, não desistem de dar o salto em frente e de não estancarem o fluxo de adrenalina que continua a escorrer sempre que se liga uma guitarra elétrica à corrente. AMR, Joad, é o herói com uma causa, o sobrevivente, o noctívago-agora-menos que fala dos Velvet, dos Doors, de Neil Young, de Keith Richards e de Peter Hammill, que afirma que “o rock português é do mais bem escrito do mundo” e que permanece à boca de cena a cantar “Do céu ao inferno, pode ser assim, do céu ao inferno, sem sair daqui!”. Provocatório, “La Pop End Rock” é um álbum sem papas na língua que obrigou mesmo a que se lhe colasse na capa o rótulo “linguagem explícita”. AMR é um pedaço vivo da tradição do rock ‘n’roll em busca, ainda e sempre, da redenção. “Por três minutos na vida/Acharei a felicidade/Na canção prometida/A minha felicidade”.
Entre os naipes de violinos, o piano introspetivo, as guitarras galopantes e melodias que não cessam de dar a volta ao que sempre se trauteou dos UHF, descobrem-se boas canções: “Um anjo no meu quarto”, “Fora da garagem, já!”, o sarcástico “Quero um lugar no top inglês”, “Uma história com (a)gente”, “Joey Ramone”, “A noite inteira”, “A lágrima caiu”, “Por uma guitarra elétrica”, “Aqui vamos nós/sem disfarce”, a velvetiana “Memórias de hotel”, “Por três minutos de vida”, “Ai eme ra”… Joad há-de continuar a procurar, pela estrada, a que seja perfeita. A cantar “Eu escolhi a estrada certa”. A máscara de AMR é transparente.