Aqui há uns anos, num álbum chamado “Escape From Noise”, os Negativland usavam, como letra de um dos temas, uma lista do lixo que se amontoa regularmente nos tops de venda norte-americanos: Pink Floyd: Huey Lewis, Fleetwood Mac, Phil Collins, por aí fora. O enunciado obsessivo da lista era acompanhado de gritos periódicos: “Is there any escape from noise?” Este novo álbum dos velhos Traffic podia perfeitamente fazer parte dessa lista. É difícl imaginar que se trata da mesma banda que gravou, nos anos 70, coisas tão interessantes como “Mr. Fantasy”, “John Barleycorn must Die” e “The Low Spark of High Heeled Boys”. Dos Traffic dessa época, restam o seu líder de sempre, Steve Winwood, e Jim Capaldi, mais uns convidados, entre os quais figura o de momento muito requisitado Davy Spillane, nas “uillean pipes”. “Far from Home” não tem por onde se lhe pegue. É um amontoado de notas preguiçosas a quererem fazer as vezes da “canções”, de uma vulgaridade assustadora. Spillane assina o “cliché”, muito em voga, dos celtas irlandeses, em “Holy ground” e, no tema final – “Mozambique” –, os Traffic entretêm-se a imitar os Santana de “Oye como va”. O resto é, por assim dizer, o tal lixo sonoro de que falavam os Negativland. Para não dizer coisa pior. (1)
The Future Sound of London
Lifeforms
2xCD Virgin, distri. EMI – VC
Na aparência, o som dos Future Sound of London parece ser o prolongamento lógico e a duas décadas de distância dos dinossauros cósmicos Tangerine Dream e, sobretudo, do pai de todos os ambientalismos – Brian Eno. Mas enquanto os gurus do “kosmische rock” procuravam em primeiro lugar a “trip” acústica, indutora de viagens pelos meandros da mente, os FSOL limitam-se a fabricar a banda sonora do vazio de uma ressaca após as devastações provocadas pelo “ecstasy” ou por outros ácidos aos quais inverteram os efeitos. Gary Cobain, um dos mentores dos FSOL, diz a propósito que “Lifeforms” é “sobre deitar fora o que está na cabeça”. Na linha do que já haviam feito os KLF e continuam a fazer os The Orb, a banda de Cobain e Brian Dougans apropriou-se de cápsulas vazias, dos sintetizadores sem alma e dos resíduos eléctricos de uma cidade à qual subitamente desligaram todos os maquinismos.
“Lifeforms” não é música do futuro, mas tão-somente a antecipação do deserto de criaturas com o cérebro anestesiado e alimentado de pseudo-emoções sintetizadas em laboratório. A fauna e a flora que parasitam os muros electrónicos de “Lifeforms” são constituídas por seres de artifício com a forma de “chips” animados, pairando sobre um universo de circuitos integrados e arquitecturas virtuais materializados num ecrã de vídeo. Adormecemos num transe hipnótico embalados por esta música do admirável mundo novo como o descrevia Aldous Huxley, estrutura fechada ao transcendente, onde não havia lugar para seres humanos acordados e vigilantes. Muito a propósito, Robert Fripp, discreto, empresta a sua guitarra a um dos temas de “Lifeforms”, um disco que, descontando toda uma filosofia ou ausência dela que lhe está subjacente, tem o defeito de se estender por demasiado tempo. Ou é já de uma outra noção alterada de tempo que se trata? (7)
DAVID BYRNE
David Byrne…
Luaka Bop, distri. Warner Music
Apenas um nome a encabeçar um conjunto de canções que nas palavras do próprio Byrne são as suas mais intimistas de sempre. Mesmo levando em conta que com ele nunca se sabe onde termina a sinceridade e começa a simulação. Tenha-se em consideração as reticências!… No início de “David Byrne…” – primeiro álbum de título homónimo na carreira de Byrne, com o carimbo na produção de Arto Lindsay e Susan Rogers (Prince, Michael Jackson…) –, um cowboy desce das nuvens. Entre brumas, num quase sussurro. O ritmo instala-se logo de seguida, abrupto, à boa maneira dos Talking Heads, com Byrne a cantar, a gritar, a declamar e a auto-estimular-se, em “Angels”. Recuo aos anos 50 em “Crash” que poderia ser um bom complemento para o álbum de estreia dos Roxy Music. O vibrafone de Mauro Refosco, um dos elementos da nova banda de Byrne, juntamente com Todd Turkisher na bateria e Paul Socolow no baixo, introduz e dá o mote ao longo de todo o tema seguinte, “A self-made man”, possuidor de um balanço que prende de imediato a cabeça e o espírito. O sinal de alarme soa no tema seguinte, “Back in the box”, na guitarra do ex-cabeça falante cujas canções falam, segundo o seu autor, de “sexo, nudez, amor, violência, inocência, morte, fuga, da América e do mundo – depois da vida, depois do medo”, sobre o ritmo sincopado que desde sempre caracterizou os Talking Heads. “Sad song” vem a seguir e confirma o regresso à pureza das linhas melódicas de “Talking Heads’ 77”. Neste caso já infiltrada pela influência da batida sul-americana que Byrne aprendeu a dominar a partir da voragem carnavalesca de “Rei Momo”. O Brasil e a bossa-nova emergem na introdução de “My love is you”, outro tema em que a simplicidade predomina, derivando para os lugares para onde a vocalização imprevisível de Byrne o leva.
O segundo lado (nas versões vinil e cassete, claro) abre com nova semideclamação sobre um ritmo ultra “cool”, em “Nothing at all”. Confirma-se a tendência para um som mais depurado que dispensa o alarido de secções de metais ou de harmonias vocais complexas. Percebe-se agora que o álbum anterior, “Uh-Oh”, era um momento de transição para a desaceleração e o intimismo desta nova fase do compositor nova-iorquino. Nova história, novo “puzzle” de recortes e retalhos do quotidiano. Só que agora com a focagem regulada. “Penso que este disco, considerado como um todo, tem algo para dizer. Ele fala de mim, da minha vida, de como vivo e de como me relaciono com as pessoas”. O quebrar dos espelhos e das muralhas. A estrada de “True Stories” que parecia terminar sempre além do horizonte deixa de funcionar como limite paralisante para passar a ser lugar de encontro. Não há dúvida que as imagens e a mensagem são agora mais directas. Como directo é, por exemplo, o terrível solo de vibrafone que vai ao fundo da questão, que é como quem diz, à essência do “swing”, no fecho de “Lillies of the valley”. Ao David Byrne conceptualista dos três primeiros álbuns a solo, “Songs from the Brodway Production of ‘Catherine Wheel’”, “Songs from the Knee Plays” e “The Forest”, ao explorador das músicas do terceiro mundo de “Rei Momo” e após o intervalo de espera algo inconsequente de “Uh-Oh”, segue-se o David Byrne compositor que se redescobriu a olhar o mundo (mais ou menos) de frente. Sob este aspecto, “David Byrne…” consegue reunir um naipe de canções apenas comparável ao dos quatro primeiros discos dos Talking Heads, correspondentes ao período dourado compreendido entre a estreia “77” e “Remain in Light”. A euforia da América do Sul, embora filtrada por uma sensibilidade declaradamente pop, regressa em força em “You & eye”, um dos temas mais vocacionados para a dança de “David Byrne…”. “Strange Ritual”, a composição mais longa, remete para a respiração de sombras e claustrofobia de “Fear of Music” enquanto o tema final “Buck naked” – o único do novo disco que integra a compilação vídeo de longa duração “Between the Teeth” – não anda longe de soar em certas alturas como uma “pastiche” de Lou Reed. Um final estranho mas onde as palavras, por uma vez e num instante de iluminação, não se escondem atrás de segundos sentidos. Num disco em que David Byrne procedeu a uma operação de limpeza e depuração até hoje sem precedentes na sua carreira: “Estamos todos nus (…) nus por dentro (…) estou nu coração, nu na minha alma (…) não há nada a recear, nada que possas fazer”. Um longo adeus a Nova Iorque, à América e ao mundo, vistos de longe, vistos do alto, “depois da vida e do medo” – “na casa do Senhor”. Os anjos que no início desceram à terra para mostrar a David Byrne a realidade vista ao nível do solo em vez da perspectiva aérea em que se refugiava antes, cumprida a missão, voltam a casa. O “gospel”, novamente e sempre como ponto de fuga e de chegada de um artista que parece ter encontrado em Deus o último dos interlocutores. (8)