Arquivo mensal: Dezembro 2019

Pós-Gnr – “Mimi Tão Pequena e Tão Suja”

Pop-Rock Quarta-Feira, 16.10.1991


MARGEM DE CERTA MANEIRA

PÓS-GNR
Mimi Tão Pequena e Tão Suja
LP / MC / CD Polygram




Não é difícil, a um músico minimamente inteligente e informado, ultrapassar a vulgaridade vigente no meio rockeiro nacional. Difícil é fazê-lo de forma original, isto é, partindo de códigos conhecidos, chegar a qualquer coisa diferente e realmente nova – tarefa que hoje em dia poderá parecer a qualquer compositor pouco menos que impossível. O mundo da música transformou-se numa torre de Babel, onde todas as linguagens, e as suas infinitas interpermutações, se multiplicaram até ao ponto limite do total esvaziamento de sentido, auferindo, à falta de melhor, de uma legitimidade permitida pela “dignidade” da atitude sintetista, chamemos-lhe assim.
“Mimi Tão Pequena e Tão Suja” (bom título para uma fita neo-realista saloia) procura a diferença, a separação de águas entre o denominando “art rock” e o “rock comercial” pretensamente conservador.
Neste sentido, não espanata a opção de Vítor Rua, livre do experimentalismo formal dos Telectu, no sentido de procura de novas vias para o rock português, através de um trabalho de recuperação arqueológica e, paradoxo não se sabe se assumido, pelo recurso a referentes estéticos totalmente alheios à cultura que seria suposto relançar. Como se a saída passasse só por uma abolição despreocupada de tronteiras e pela instauração de uma terra de ninguém onde tudo cabe desde que articulado com um mínimo de coerência e o apoio suplementar da muleta conceptualizadora. “Mimi” recua aos anos 70, masic oncretamente à vertente menos sinfónica do progressivismo e ao bruitismo controlado dos King Crimson à época de “Red”. Grande parte do álbum avança por esse som saturado, no qual assumem papel preponderante os diversos encunciados da guitarra eléctrica e as deambulações de um baixo poderoso e bem articulado, instrumentos que o próprio Rua manuseia com o talento que se lhe reconhece. “Scales & solos” junta ao tom geral de opressão a violência extra, aprendida na vertigem “hardcore”. Por entre o massacre (aumentado pelo som resultante de uma prensagem péssima que acentua ainda mais a sensação de “massa” sonora, talvez a querer dar razão ao “sujo” do título…), irrompem pequenos pormenores, mais ou menos exóticos, como os que são criados pelo xilofone de David Maranha (dos Osso Exótico) em “Hardcore II”, por um solo de piano (excelente Miguel Megre) de súbito rendido à serenidade, em “Independança II”, ou pelo humor e fraseado guitarrístico muito Eugene Chadbourne de “Strange perception”. Passando ao lado do par de temas que abre o segundo lado, num registo mais próximo da pop, acaba por ser a longa sequência instrumental que encerra o disco a suscitar a maiorcela de interesse: “The next álbum” (será de facto o próximo álbum todo assim?), incursão demolidora nos meandros do ruído, que as linhas melódicas do baixo, do piano e a inspirada e fragmentada prestação de Rui Azul, no saxofone, impedem de mergulhar no caos. Uma referência final aos textos, escritos e cantados em inglês com a fluência do estudante aplicado que procura alinhar uma sequência de frases sem errar. Mesmo assim, há erros (ou gralhas?): “Trough” em vez de “through”, “Tokio” em vez de “Tokyo”, “Demon” pronunciado em vez de “dimon”. Pormenores que não comprometem, mas aos quais não ficaria mal prestar de futuro mais atenção. Vítor Rua e a sua “Mimi” não salvam o rock português, mas situam-se orgulhosamente à margem dele, com a convicção dos que procuram arriscar. (7)

Smithereens (The) – “BlowUp”

Pop-Rock Quarta-Feira, 16.10.1991


SMITHEREENS
BlowUp

LP / MC / CD Capitol



Que mal tem a velha formação guitarra-baixo-bateria como suporte clássico para uma pop sem pretensões? Absolutamente nenhum. Os Smithereeens saem-se a contento da tarefa, através de um discurso coerente e de uma fluência instrumental que lhes permite passar, sem cerimónia nem perda de credibilidade, do riff coleante de “Top of the pops” às reminiscências soul de “Too much passion”.
Liderados pelo vocalista-guitarrista Pat DiNizio, a banda de New Jersey tem energia e uma dose aceitável de fantasia. Tanta, que chegam a definir um dos temas, “If you want the sun to shine” (composto de parceria com Julian Lennon), como o cruzamento de “I am the walrus” com “Kashmir”, dos Led Zeppelin. Há em “Blow Up” a diversidade possível, permitida pela imaginação dos músicos (“Evening dress”, por exemplo, é uma balada inspirada num texto de Mishima) ou pela participação activa dos músicos convidados (Alex Acuna e Carlene Carter, os mais ilustres). Ideal para os apreciadores da pop a horas certas. (6)

Johnny Winter – “Let Me In”

Pop-Rock Quarta-Feira, 16.10.1991


JOHNNY WINTER
Let Me In
LP / MC / CD, Virgin, distri. Edisom



Dir-se-ia que nunca cortou o cabelo. Não faz mal enquanto, por detrás da imagem do avozinho “freak” com o corpo tatuado, Johnny Winter permanecer fiel à beleza rude dos “blues” e souber responder às tareias do destino com o griot de uma guitarra. Moldado na forma que determina os verdadeiros duros, segundo a máxima do “antes quebrar que torcer”, o albino de coração negro continu a aensinar aos mariquinhas como é. “Life is hard”, diz ele – e é verdade. A guitarra certeira, com o saber e a acutilância acumulados por anos de experiência, dispara à queima-roupa, sem segundas intenções nem terceiros sentidos. São “blues” a valer, em baladas como “Hey you” ou com a crueza pantanosa do Bayou, na ferida final de “Let me in”. “If you got a good woman” mostra até que ponto o velho feiticeiro sabe pôr uma guitarra a chorar. O rock ‘n’ rol de “Sugarre” (com Dr. John ao piano) serve para aliviar a tensão. O homem está há tanto tempo lá fora. Devagar e com cuidado, deixem-no entrar. (6)