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Dervish + Vários – “Folk De Luxo No Intercéltico De Sendim” (concertos / festivais)

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sexta-feira, 1 Agosto 2003


Folk de luxo no Intercéltico de Sendim

DE HOJE A DOMINGO

Ambiente, programação internacional de qualidade e uma ligação forte à comunidade local fazem do Intercéltico de Sendim um festival único. Da Irlanda chega a lenda dos Dervish




Os irlandeses Dervish bastariam para garantir o êxito do festival

No princípio de Agosto, os sons da terra irrompem na zona de Miranda, em pleno coração de Trás-os-Montes. Quem quiser participar do ritual em que se tornou o Festival Intercéltico de Sendim tem as poções, mezinhas, amuletos, rezas e encantamentos da cultura tradicional transmontana e, por consequência, de raiz celta, à disposição. E, acima de tudo, uma grande programação folk, inserida num ambiente e paisagem paradisíacos.
A presença de um só grupo bastaria para levar a Sendim todos os apreciadores de folk céltico: os Dervish, num regresso a Portugal que se prevê, dado o contexto especial deste festival, apoteótico. O grupo irlandês tem na voz da extraordinária Cathy Jordan um elemento determinante na relação de paixão que sempre se estabelece com a sua música. Jordan é a Irlanda profunda mas também a Irlanda sem idade que soube unir a cultura tradicional de transmissão oral a uma visão urbana da folk que tem como principal mandamento aprender e reatualizar as lições do passado, adaptando-as a uma linguagem e vivência contemporâneas. Álbuns como “Harmony Hill” (1993), “Playing with Fire” (1995), “At the End of the Day” (1996) e “Midsummer’s Night” (1999) são clássicos da folk céltica europeia. O novo, “Spirit”, estará à venda na Feira do Disco do festival.
Outra banda importante que vai estar em Sendim são os Luétiga, da Cantábria, liderados pelo gaiteiro Roberto Diego. A originalidade dos seus arranjos pode ser verificada em álbuns como “La Ultima Cajiga” (1992), “Nel ‘El Vieju’” (1994), “Cernéula” (1996) e “Cántabros” (1999).
Vindas da Galiza, as Leilia representam a mais genuína tradição dos cantos “alalas” e das pandereitadas, mas nos últimos anos o seu projeto tem vindo a desenvolver-se em direção a novos horizontes, estando previsto apresentarem-se em Sendim acompanhadas por um grupo instrumental. Os Tejedor, das Astúrias, nos quais sobressai outro gaiteiro, José Manuel Tejedor, prometem uma das actuações mais explosivas do festival, enquanto outro grupo proveniente de Espanha, Castela, os Balbarda, poderá ser a revelação deste Intercéltico com organização da Cooperativa e editora Sons da Terra. Os Lenga-Lenga, do gaiteiro transmontano Henrique Fernandes, provam que os sons e costumes locais têm o futuro salvaguardado.
Festivais há muitos. Mas é a chamada “vibração” específica de cada um que permite medir o seu grau de crescimento e de sucesso. O Intercéltico de Sendim – na sua 4ª edição – tem esse enorme trunfo de radicar direta e profundamente nas tradições locais, acrescentando ao programa de concertos atividades como um “Passeio na Natureza”, “Arribas Radical” (“rappel” nas vertiginosas arribas do Douro interior), visitas guiadas por Sendim, animação de rua por gaiteiros do centro de Música Tradicional Sons da Terra e pelo Grupo de Bombos de Teruel (Aragão) e as exposições “D’Ouro d’Aléndouro” e “A Natureza que Temos”. Ficam reservadas as surpresas proporcionada pela ingestão, na Taberna dos Celtas (onde a música acontecerá em regime de sessões improvisadas) de um misterioso licor celta. No domingo, porém, as almas sararão, ao assistirem à já tradicional Missa Intercéltica, a celebrar na Igreja Paroquial, ao som das gaitas-de-foles.

Festival Intercéltico de Sendim
SENDIM, Recinto principal
Hoje, a partir das 22h
LENGA-LENGA, LEILIA,
TEJEDOR
Amanhã
Balbarda, Luétiga, Dervish
Bilhetes a 8 euros.
Domingo, às 13h
Missa Intercéltica.
Entrada livre.

Kronos Quartet + Kad Achouri + The Skatalites – “Boa Onda Em Música Para As Multidões” (concertos / festivais)

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terça-feira, 29 Julho 2003


Boa onda em música para as multidões

Kronos Quartet + Kad Achouri + The Skatalites

(Festival Músicas do Mundo)
SINES Castelo
Sábado, às 21h30. Lotação esgotada.



Terminou no sábado a 5ª edição do festival Músicas do Mundo de Sines. Com a festa do costume, a cargo dos The Skatalites, engalanados com o fogo de artifício da praxe, mas a atuação entusiasta (para muitos entusiasmante), desta instituição do “ska” não chegou para tirar o Músicas do Mundo de uma certa ideia de massificação e de ter sido, em termos de música ouvida, um dos piores da sua história.
Compreende-se a opção da organização – impecável, nos aspetos logísticos – em ter como principal preocupação para este ano, levar ao castelo o maior número possível de pessoas. Em época generalizada de crise e de falta de apoios camarários, era preciso mostrar serviço. Objetivo cumprido a 100 por cento. Nunca como neste ano o público comparecera de forma tão maciça, lotando por completo o interior do castelo. 5000 entradas vendida por noite, na sexta-feira e no sábado, não impediram que outras tantas centenas ficassem de fora e tivessem que se contentar em assistir ao festival através do ecrã gigante afixado num dos muros do castelo.
Mas se a aposta no público foi ganha o mesmo não se pode dizer da qualidade musical. À exceção dos Danças Ocultas e do grupo afegão Ensemble Kaboul, aos quais se juntaram, no último dia, os Kronos Quartet, tudo o resto esteve abaixo do que seria lícito esperar, nalguns casos pautando-se pelo pior que a “world music” tem para oferecer: sopas incaracterísticas que de étnico já pouco ou nada têm, embaladas em papel de fusão e batidas preguiçosas que lá vão chegando para pôr as pessoas – mais preocupadas em curtir a todo o custo do que em ouvir música pela música – a dançar. Foi pena que os Kronos Quartet mal se pudessem ouvir. Com um volume de som baixíssimo, a música chegava como um sussurro à zona mais recuada do castelo, soando como acompanhamento de luxo de um estado de espírito geral que não estava para aí virado. A dado momento pararam mesmo de tocar, perdendo-se largos minutos na resolução de um qualquer problema técnico. Por fim lá reentraram no seu mundo privado, em Sines preenchido por composições do álbum “Nuevo”, mas também por uma curiosa versão de um tema dos Sigur Rós.
Kad Achouri, que atuou a seguir, foi confrangedor. Chamar “world” à sua mistela pimba de sons afro-latinos sobre ritmos tcham-tcham-tcham é ofensivo para as tradições do planeta. O que este francês de origem argelina fez em Sines, em nome de uma modernidade que ele se encarrega de trair, caberia perfeitamente numa daquelas emissões da nossa televisão que animam as tardes de praia, entre um passatempo e uma Cola, de tal forma o popular desceu à cave do popularucho. As liberdades permitidas pelo seu álbum “Liberté” estatelaram-se na permissividade. Imaginem um Manu Chao de refugo. Kad Achouri nem sequer foi pândego.
No fecho do festival, os The Skatalites vieram da Jamaica e não interromperam por um só minuto a sua descarga de “Ska” mesclada de rhythm ‘n’ blues. Verdade seja dita que o ritmo se manteve inalterável do princípio ao fim o que, se serviu às mil maravilhas a sua finalidade dançante, matou, por outro lado, qualquer veleidade em fazer algo mais subtil. O fogo de artifício – este ano também em regime económico e menos espetacular do que tem sido hábito – interrompeu a música um pouco a despropósito mas nada pareceu perturbar a boa onda que caracteriza o Músicas do Mundo.
Bom seria que para o ano se repensasse o rumo que este festival tenciona tomar. É que música de qualidade e com menos concessões não é incompatível com a adesão das massas, como de resto as anteriores edições já fizeram questão de demonstrar.

EM RESUMO
O festival Os Kronos Quartet, apesar do baixo volume de som, salvaram o terceiro e último dia do Músicas do Mundo mas a festa veio com os The Skatalites. Kad Achouri foi para esquecer.

Totonho + Cabra – “Totonho Soltou A Cabra No Músicas Do Mundo DE Sines” (concertos / festivais)

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domingo, 27 Julho 2003


Totonho soltou a cabra no Músicas do Mundo de Sines

Ao fim de dois dias, o 5.º festival Músicas do Mundo pode orgulhar-se de ser o mais participado de sempre. Música, com “M” grande, para já, só a dos portugueses Danças Ocultas e dos afegãos Ensemble Kaboul. Do Brasil ouviu-se um enorme estrondo.



Em cima, totonho e os cabras, no fim os mais desejados; em baixo os Mahotella Queens

Surpreendentemente, foram os brasileiros Totonho e os Cabra a arrancar a maior e mais furiosa onda de aplausos registada ao fim de dois dias do festival Músicas do Mundo, que ontem terminou em Sines. Chanfana de cabra, prato pesado, esteve prestes a provocar indigestão mas, servida como ceia, foi engolida pelos mais resistentes com sofreguidão.
Totonho e o seu grupo, últimos artistas a atuar sexta-feira num castelo completamente lotado, cantam e falam com alguma dificuldade. A música do grupo é simplória, os ritmos são de uma pobreza confrangedora, mas o entusiasmo e a convicção mostram um empenhamento total, uma raiva genuína, um desejo de vomitar as tripas e de comunicar, custe o que custar. Houve quem não aguentasse e fosse abandonando o recinto, insensível à mistura de batuque, megafone e rap disparados à queima-roupa. Os que aguentaram, porém, renderam-se, transformando em ritual pagão o que de início parecera chinfrineira e erro de “casting” do festival.
É o Brasil do Nordeste, o Brasil pobre, o Brasil profundo que Totonho e os Cabra lançam à cara de quem os ouve. Totonho é o cabra (embora o seu verdadeiro apelido seja Bezerra), que grita através de um megafone imprecações e palavras embrulhadas em escarros. “Segura a cabra” foi o hino repetido no encore, por entre eletrónica industrial (consta que o grupo aprecia os alemães Einstuerzende Neubauten) e cordas gordurentas. Totonho está pouco à vontade em palco, inicia frases de explicação sem as terminar, engasga-se, tudo parece coisa de amadores. E os Cabra são-no, de facto, embora o vocalista não seja nenhum Zé Cabra. Ensaia passos fora de ritmo, ergue um totem com a cabeça de uma cabra, não se percebe o que diz mas percebe-se que está a ser sincero e que gostaria que a música servisse, de facto, para mudar a sociedade e o mundo. Grita, imita um cão a ladrar e faz de cabra mais do que uma vez. Em “Babaovo midi” rima Peter Tosh com Macintosh mas é preciso chegar à parte final do “concerto” para tudo fazer sentido, através de um rock pesado, implosivo, massacrante.
Nos bastidores ele e o grupo choram e abraçam-se, comovidos. O público pede “encores” (foram os únicos a dar dois) e parecem não acreditar que são desejados. Têm que ser empurrados para o palco. Tinham estado ali, nus, arriscando-se ao ridículo. Mas regressam, como heróis. Totonho acerta finalmente nos movimentos do corpo e da voz, improvisa no lugar certo, os outros músicos perdem a timidez e dão o máximo de si próprios, enlouquecidos. “Segura a cabra”, mas a cabra já se transformara num demónio. Tudo poderia começar nesse momento e, quando as luzes se apagam, já de madrugada, continuam a ouvir-se os gritos dos jovens das filas da frente a pedir mais.
A melhor música da noite veio dos Ensemble Kaboul, do Afeganistão. Talvez numa sala fechada tivesse soado ainda melhor. Ainda assim, para quem entrasse a tempo (e esta é uma música que, como o “raga” indiano, necessita que entremos nela e não o contrário), o transe instalou-se de forma subtil e gradual, como a serpente que, sem nos darmos conta, se enrola em torno do coração e o hipnotiza. Solos de percussão e de instrumentos de corda exóticos criaram um clima de relaxamento no qual a voz da cantora Mahwash se encaixou sem se destacar. Música para se ouvir deitado a olhar para as estrelas.
No registo oposto, o trio de cantoras veteranas Mahotella Queens e o seu grupo elétrico, limitou-se a pôr as pessoas a baloiçar o corpo. Sessentonas mas bem ginasticadas, as rainhas dançaram, mudaram de roupa, vestiram camisas transparentes, mostraram as pernas e o rabo, foram alegria e comunicabilidade e, no final, depois de um tema da tradição zulu (o melhor da sua atuação), desfizeram-se em elogios a Sines, ao público, ao festival, prometendo voltar. A “Mbaquanga”, da qual mostraram a versão em plástico, uma africanada batida em rock automático, funcionou, como um “preset” de ritmo.
No dia de abertura, os Danças Ocultas, na apresentação de temas de um álbum a editar em breve, mostraram que a europeização parece ser caminho obrigatório para este quarteto de acordeões diatónicos. Estão mais adultos, e composições como “La danse idéale”, “Danças ocultas” e “Tristes europeus”, são tapeçarias de câmara, dignas da grande folk em qualquer parte do mundo. Arranjos intrincados, uso sábio do contraponto e uma erudição que não dispensa o contacto com as fórmulas populares dão garantias de que o grupo poderá ser, num futuro muito próximo, par de pleno direito de formações como Trans Europe Diatonique ou de solistas como Alain Genty e Riccardo Tesi.
Quinta-feira terminou com os Simentera, de Cabo Verde, que mostraram o que é habitual nos grupos com esta proveniência: um balanço a que os corpos dificilmente resistem, um calor que se entranha na pele, belas vozes femininas nas baladas e histórias para contar, como a do guitarrista mais velho, com apenas três dedos numa das mãos e filhos feitos em todas as ilhas do arquipélago, façanha que o público aplaudiu devidamente — o fértil guitarrista agradeceu, erguendo os braços em triunfo. Infelizmente houve também um suporte rítmico sem grande imaginação, um saxofonista sofrível e um tempo excessivo de atuação, dando a entender que os Simentera, caso os deixassem, ficariam no palco toda a noite.
O Músicas do Mundo cumpre, assim, o ritual. Dentro do castelo, a “world music”, sobre relva (sim, sim, aqui não há pó, o chão é verde e confortável!…) e sob o céu do Verão alentejano. Fora dele, o folclore do costume: tendas de artesanato e de chás, falsos e verdadeiros hippies (para os distinguir, basta ver se há crianças e cães por perto, caso haja, são verdadeiros), “rastas” e bailarinas, aprendizes de malabaristas e outros cromos que, não se sabe bem porquê, estão sempre presentes neste tipo de festivais. Vimos mas não ouvimos djembés, louvado seja o Deus da música do mundo.