Arquivo mensal: Novembro 2023

Rodrigo Leão & Vox Ensemble – “Ave Mundi Luminar”

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993


O LEÃO DA ESTRELA

Rodrigo Leão & Vox Ensemble
Ave Mundi Luminar
CD Sony Music



“Ave Mundi Luminar” (belo título) é um projecto há muito acalentado por Rodrigo Leão, músico dos Madredeus e Sétima Legião, no qual vem ao de cima a sua costela clássica, em grande parte influenciada por Michael Nyman (influência que o próprio reconhece, além de Philip Glass e Ryuicho Sakamoto), que por sua vez é uma espécie de tradutor decadentista de Henry Purcell. Ou seja, Rodrigo Leão pôs, neste disco, em prática ideias que, sobretudo nos Madredeus, não puderam ser levadas até às últimas consequências. Assim, “Ave Mundi Luminar” pode considerar-se uma espécie de versão sacra da música daquele grupo, entre o minimalismo e a música barroca, de Purcell, mas também de Albinoni, num “Final” com características de “Requiem”, na qual assumem capital importância os arranjos de Francisco Ribeiro, outro Madredeus.
Litúrgico e solene, “Ave Mundi Luminar” instala-se inequivocamente no universo Nymaniano nas peças “Movimento”, “Vitorial”, “In Excelsis”, “Espiral II”, “Ruas” e “O Medo”, mas fá-lo de forma extremamente equilibrada, conseguindo tirar todo o partido dasvárias combinações instrumentais proporcionadas pelos Vox Ensemble – Francisco Ribeiro (violoncelo, voz), Maria do Mar e Margarida Araújo (violinos), Nuno Rodrigues (oboé e corne inglês), Nuno Guerreiro (voz) e António Pinheiro da Silva (alguém se lembra dos Perspectiva?, flauta transversal). Os temas “Ave Mundi”, um belíssimo e tristíssimo “Carpe Diem” e o refluxo final “Humanitá” contam com as participações vocais (em latim!) de Teresa Salgueiro e Nair. O acordeão de Gabriel Gomes faz a sua aparição em “A espera”.
Obra originalmente concebida para acompanhamento orquestral, “Ave Mundi Luminar”, por dificuldades técnicas, nomeadamente falta de orçamento, acabou por, na forma final, organizar-se segundo os cânones da música de câmara, ganhando em proximidade e intimismo, o que poderá eventualmente ter perdido em grandiosidade. É um álbum que apela mais ao espírito que ao corpo, com voz própria e soluções harmónicas bem conseguidas que acabam por fazer esquecer a estética original de onde provêm. Exemplos superiores desta litania ao sagrado, entoada de maneira despretensiosa e com a centelha de devoção apropriada, são “Ave Mundi”, o já citado “Carpe diem” – pranto nocturno de inquietação cósmica chorado em tons de violeta -, “Amatorius” e “O Medo”, este onde Rodrigo Leão se equilibra da melhor maneira no trapézio do contraponto.
Herdeiro em essência da religiosidade, mais pagã e popular, dos Madredeus, “Ave Mundi Luminar” desponta como a luz dourada que fulge antes do crepúsculo, através de um vitral. Tem uma virtude rara: saber lidar e dar a escutar o silêncio. (7)

Vários (Barzaz, Battlefield Band, Uxia, Sétima Legião, Barabàn, Chieftains) – “Peregrinos / O Despertar Dos Mágicos” (festival | antevisão)

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993


PEREGRINOS

O Festival Intercéltico do Porto, chegado à quarta edição, tornou-se uma instituição. Mais do que uma série de espectáculos musicais de música tradicional, o Intercéltico é um local de peregrinação onde, no princípio da Primavera, arribam os apreciadores e amantes destas música com raiz na eternidade. São três dias de festa no verdadeiro sentido da palavra: de celebração, de “diálogo e convívio entre as diferentes músicas e tradições de povos com um passado comum”, como afirma a organização. Os concertos podem ser melhores ou piores, mas o ambiente é único. Come-se bem, bebe-se melhor, ouve-se música, mergulha-se no âmago de uma cultura que também é a nossa. “Celta”, ou “céltico”, o termo está hoje na moda. Mas por detrás do folclore e das imagens que vão formando o “puzzle” de uma Europa genuína, está o amor a uma causa e muito trabalho. Porque nem só de música vive um festival, a organização (desde a primeira hora da responsabilidade da equipa da MC-Mundo da Canção) compreendeu a necessidade de um enquadramento à altura. É assim que, uma vez mais, o Intercéltico apresenta uma lista de actividades paralelas que neste ano incluem conferências, exposições, videorama, artesanato, banca de discos e revistas e a iniciação ao vidicuestla, o antigo jogo de xadrez celta.
Para completar o círculo (ou a espiral…), refira-se ainda a publicação, à semelhança do que aconteceu nos anos transactos, de um livro-programa de 160 páginas sobre o festival, com informação detalhada sobre a programação, incluindo textos e discografias dos artistas presentes, uma “bibliografia céltica”, uma compilação das leis (delirantes) dos Brehons, ou seja, as leis antigas da Irlanda, e até esquemas pormenorizados de algumas jogadas de vidicuestla…
Um elogio especial para Mário Correis, da organização, pelo notável trabalho de investigação e divulgação levado a cabo. Agora é tempo de fazer as malas, rumar ao Porto e viver um fim-de-semana diferente. Num tempo e num local que parecem ter sido tocados pela magia de Merlin. Na companhia das fadas, duendes e elfos que existem, porque a imaginação os materializa. O Festival Intercéltico é essa teia cruzada do mito com a actualidade, do ancestral com o moderno. Ritual de comunhão com a nossa identidade mais profunda.

O DESPERTAR DOS MÁGICOS



Barzaz e Battlefield Band preenchem o cartaz musical do primeiro dia do festival. Vibrantes os primeiros, transportam consigo a força dos rochedos e das ondas do mar que esculpe as costas da Bretanha. Mais serenos os segundos, abrigados de momento na calma enseada de um lago escocês.
Inseridos no movimento de renovação da tradição musical bretã encetada nos anos 70 por Alan Stivell, os Barzaz resultam da confluência de projectos anteriores dos seus membros, investidos da missão de levar a música da Bretanha aos círculos exteriores do mundo celta. Assim, na árvore genealógica do grupo descobrem-se os ramos Skolvan, Galorn, Kornog e La Mirlintantouille. Os Barraz fazem da beleza, por vezes rude, da música bretã uma arma contra aqueles a quem a história da Bretanha, “secreta e controversa”, incomoda, os mesmos que “ocupam os lugares do poder” e que interpretam essa História “de forma a melhor poderem dispor das suas gentes e do seu tempo”.
Os Battlefield Band são a instituição folk por excelência da Escócia. “Forward with Scotland’s Past” é o seu lema. Existem há décadas e passaram incólumes pelas tempestades. Da formação original resta o vocalista e teclista Alan Reid. O espírito, esse, manteve-se. Traçaram ao longo de uma vasta discografia os contornos da tradição escocesa sem nunca voltarem costas aos problemas sociais do presente. Juntam o canto da tragédia à dança e aos ritos da terra. O novo álbum, “Quiet Days”, é mais intimista que os anteriores. Uma pausa e um segredo entre o clamor da batalha.

A Voz E O Fogo

Sexta-feira é dia ibérico. Actuam Uxia e os Sétima Legião. Para a cantora galega Uxia significa o regresso ao Intercéltico, depois da sua aclamada participação, no ano passado, no projecto “Bailia das Flores” de Tentúgal. Uma voz, belíssima, com frequência desaproveitada. Esteve ligada ao grupo Na Lua onde a sua luz depressa começou a ofuscar os restantes músicos. Disse uma vez numa entrevista: “o importante nun cantor ou cantora é que prevaleza a voz; caquera instrumento que a oculte dificulta a sua comprénsion.” Não por acaso, o melhor trabalho dos Na Lua, “Estrela de Maio”, é aquele em que as vocalizações de Uxia surgem com maior proeminência. Abandonou entretanto o grupo para gravar um álbum algo incaracterístico, “Entre Cidades”, onde é sensível a falta de uma direcção definida. Porque não reatar as maravilhas do seu primeiro trabalho a solo, “Foliada de Marzo”?
Quanto aos Sétima Legião, cujo último álbum, “O Fogo”, foi mal recebido por alguma crítica, vão apresentar no Intercéltico um espectáculo especialmente concebido para o efeito que privilegiará as conotações célticas da sua música. Ao vivo, costumam criar um ambiente festivo, bastante diferente da melancolia que caracteriza os trabalhos discográficos da banda. Veremos se é desta que acendem o fogo.

Celebração

Absolutamente a não perder, o terceiro e último dia do Intercéltico. Com dosi grupos de passdo diferente mas ambos de qualidade musical fora de série: Barabàn, de Itália, e Chieftains, os reis magos da folk irlandesa.
Formados em Milão em 1982, os Barabàn dedicam-se ao estudo e interpretação da música do Norte de Itália, em particular da Lombardia e do Piemonte. Em disco, assemelham-se em sonoridade aos La Ciapa Rusa, seus vizinhos piemonteses. Baladas, canções de embalar, cantos satíricos e militares ou de protesto, cantigas de jograis e outros modos característicos da tradição (jigas, valsas, alessandrinas, monferrinas, curentas, sestrinas, “carmagnolas”, tuninas, “saltarelos”, …), recolhidos, na maioria, por Aurelio Citelli e Giuliano Graso, compõem o reportório básico dos Barabàn, servido pela utilização de instrumentos típicos da região: o “organetto” diatónico, flautas, ocarinas, sanfona e, claro, o “piffero” e a “musa” (incluindo a variante solista, a “piva”), a gaita-de-foles do Piemonte. Vão ser decerto, a par dos Barzaz, uma das revelações do festival.
Finalmente, os Chieftains encerram em glória o festival. Já não há palavras que cheguem para traduzir a importância desta banda lendária. Hoje, os Chieftains, como se tivessem uma varinha mágica, transformam em ouro tudo em que tocam. Depois de anos e anos a levarem ao mundo a música da Irlanda, passaram a trazer a música do mundo para a Irlanda. E a transformá-la por dentro. Levaram os caminhos da Irlanda ao encontro da China (“The Chieftains in China”), da Bretanha (“Celtic Wedding”) e dos Estados Unidos (“Another Country”). Cumpriram o ciclo nesse ritual apolíneo de convergência dos povos celtas que é “Celebration”.
Autêntica universidade da tradição onde leccionam alguns dos melhores instrumentistas da Irlanda, os Chieftains iluminaram diversos aspectos da cultura e da História desta nação onde ainda habitam as divindades antigas. O rock presta-lhes actualmente vassalagem. Eles retribuem e convidam músicos dessa área para participar nos seus álbuns, mantendo intacta a originalidade e a magia. Mas acabam sempre por regressar ao altar verde da única religião que professam – a música da ilha que lhes é exterior e interior, a Irlanda. O novo álbum, “The Celtic Harp”, tem a participação da Belfast Harp Orchestra. Nesta segunda vinda dos Chieftains a Portugal, ouçam-nos com os sentidos alerta, mas também com o coração.

Todos os espectáculos no Teatro Rivoli, com início às 21h30.

ACTIVIDADES PARALELAS

CONFERÊNCIAS: “L’Art des Celtes”, 1 de Abril, no Institut Français do Porto, e “L’Europe des celtes, V ème-Ier siècle a, C.”, dia 2, na Faculdade de Letras do Porto, ambas por Venceslas Kruta.

EXPOSIÇÕES: “Instrumentos Populares Portugueses”, 26 de Março a 18 de Abril, na Rua da Reboleira, Ribeira.
“Suonatori e Strumanti Popolari de’llApenninni”, 30 de Março a 3 de Abril, no Teatro Rivoli.

ARTESANATO: “Pablo Leal – um artesão galego”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

VIDEORAMA: “Imagens Musicais Intercélticas”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

DISCOS / REVISTAS: “A música celta e a folk europeia”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

TEMPO LIVRE: “Vidicuestla – o jogo de xadrez celta”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

Cuarteto Cedron – “Luzes De Buenos Aires” (concertos | antevisão)

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993


LUZES DE BUENOS AIRES

O Cuarteto Cedron cultiva a paixão trágica por Buenos Aires e pelo tango, “esse tango irremediavelmente urbano, que exalta a dor, as ilusões perdidas, os rostos de todos os exílios e que é o reflexo e a síntese da cidade”, nas palavras de Jorge Luís Borges. Juan Cedron (guitarra), Roman Cedron (contrabaixo), Miguel Praíno (violeta) e Daniel Cabrera (bandoneon) relatam, ainda segundo as palavras de Borges, a mesma “viagem através do tempo” de “memória e esquecimento” pela pela alma argentina empreendida por Astor Piazzola durante toda a sua vida.
Como Piazzola, os músicos do Cuarteto Cedron reflectem a convergência de culturas alheias com a realidade social da capital argentina, Buenos Aires, uma das metrópoles mais populosas do planeta. Assim o tango se assume, como sempre foi, dança de sedução e desafio, mas também manifestação de luta e afirmação individual. Encadeamento de tensões capaz de tornar únicos e provocantes os movimentos de um par que rodopia impelido pelos requebros de um bandoneon.
Formado em 1964 na capital argentina, o Cuarteto Cedron abriu no ano seguinte, nessa cidade, o café-concerto Gotan, tendo aí tocado com Eduardo Ravira, Osvaldo Tarantino, Astor Piazzola e Steve Lacy. Ao longo da década de 70 lançou uma série de álbuns, nos quais musicaram as palavras de Brecht, Dylan Thomas e dos seus compatriotas Cortázar, Gonzalez Tunon, Gelman e Jorge Luís Borges. Um deles, em sintonia com a tradição do Sul de França – gravado no ano seguinte, em 1975, ao seu estabelecimento neste país -, de canções de amor da Occitânia. Anos antes tinham sido as digressões com o espanhol Paco Ibanez e o gaulês François Rabbhat.
Na sua obra mais recente, “Tango Primeur”, o Cuarteto Cedron recupera os primórdios do tango argentino e as “milongas” que, em diferente contexto, Paolo Conte costuma levar ao absurdo. Carlos Gardel, se fosse vivo, aprovaria.
Hoje e a 1, 2 e 3 de Abril, em LISBOA, Instituto Franco-Português, 21h30
PORTO, dia 5, Teatro Rivoli, 22h
Preço dos bilhetes: 2000$00, 1500$00 (estudantes) e 1200$00 (Carte Plus)