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Os anos 80 não foram gentis para Joni Mitchell nem ela foi gentil para os anos 80. “Wold Things Run Fast” (1982), “Dog Eat Dog” (1985), “Chalk Mark in a Rain Storm” (1988) e “Night Ride Home” (1991) foram (des)considerados desfasados da época. A cantora canadiana retorquiu, queimando os “eighties” como a década da decadência e do materialismo. Mas Joni condescendeu e estes quatro trabalhos podem ser considerados os mais fracos da sua discografia. Afastada da veia jazzística e experimental de “The Hissing of Summer Lawns”, “Hejira” e “Mingus”, entrou de cabeça na pop mas deu-se mal com a superficialidade de uma música formatada no lado mais plastificado da electrónica. Se “Wild Things” pode ser apreciado como operação de simplificação, com entrada no rock FM, “Dog Eat Dog” desce aos baixos da electropop e “Chak Marks…” afunda-se no lodo de colaborações pouco enriquecedoras (Peter Gabriel, Willie Nelson, Tom Petty, Billy Idol). Em “Night Ride Home”, felizmente, Joni sacudiu a poeira e as ramelas dos olhos e arranjos, despertando de novo para as grandes canções. Os discos, remasterizados, ressurgem em caixa e capas de cartão que são simplificações das originais.
Dan Ar Braz fez pela vida. O guitarrista bretão que acompanhou Alan Stivell nos primeiros anos deste harpista, palmilhou a estrada que conduz ao castelo das estrelas. Hoje, como Carlos Nunez ou os Chieftains, Braz é uma estrela que se pode permitir estourar orçamentos gordos, convidando artistas folk e rock de nomeada. O fundador do megaprojecto “Heritage dês Celtes” enveredou a partir desse disco pelo caminho mais fácil, tentando chegar às massas pela via do choradinho “new age” e do postal do misticismo céltico, cozidos no caldeirão das fusões. Em “A Toi et Ceux”, sem grandes trutas no estúdio (só Martin O’Connor, no acordeão), Braz vende mais um bocadinho da alma ao diabo. “Mary’s Dancing”, cocktail ligeiro de celtismo e música africana, com arranjo pindérico, e “Look around you” não abonam a favor. Do outro lado, “Dan’s fisel” oferece um bom desempenho de Ronan Le Bars nas “uillean pipes” apesar do tema, bem como “Orgies Nocturnes” (com boa bombarda e guitarra eléctrica prog), recuarem exactamente ao ponto, nos anos 70, em que Alan Stivell anunciou ao mundo o folk rock bretão, no álbum “Chemins de Terre”. O resto, quase tudo, foi de mais.
Before And After Science
10/10
Virgin, distri. EMI-VC
Brian Peter George St. Baptiste de La Salle Eno. Brian Eno para os amigos. Derrubou, remodelou e fugiu a sete pés da pop, criando com a sua “música discreta” as fundações de um edifício novo, com a etiqueta de “ambiental”, para a electrónica dos nossos dias.
Mas no princípio era o artifício e a experimentação com as cores e formas da pop, lidas, relidas e regurgitadas como algo desfasado das normas ou, para usar o léxico do próprio, desenhadas de acordo com as “estratégias oblíquas2. Eno acabara de abandonar os Roxy Music, onde a força da sua imagem fazia espumar de ciúmes o “dandy” Bryan Ferry. Plumas e lantejoulas e um sintetizador de trazer por casa transitaram para “Here Come the Warm Jets”, álbum de fazer torcer o pescoço no esforço de encontrar referências apaziguadoras. Não havia. Aqui a pop desta Ruth Marlene aristocrata de cabelo ralo e pintura borrada era convulsão, as melodias pareciam existir desde sempre para se acoitarem em arranjos de um “não músico” que integrava o erro e o acaso no seu modo de agir. Alguns temas são demolidores. Directos, lancinantes e, apesar disso, correndo ao pé-coxinho, como “Blank Frank” e o hino que arde, “Baby’s on Fire”. As guitarras de Robert Fripp e Phil Manzanera serviam de rastilho. Pelo meio, experimentação e falsas baladas, orgulhosamente pimba como “Some of them are old”. Bowie aprendeu a lição.
“Taking Tiger Montain (by Strategy”” é a primeira obra-prima. Inspirado nas “estratégias oblíquas” e na pintura de Peter Schmidt, refina a pop do disco de estreia. Impossível classificar estas canções que soam familiares e alienígenas, simples e incrivelmente complexas. Eno, o não-músico, descobria em cada nota, em cada reviravolta nas manipulações de estúdio, o prazer da criança que brinca com o desconhecido. “The true wheel” utiliza uma máquina de escrever para fazer o ritmo e a hipnose final, “Taking tiger mountain”, é uma lenta ascensão em espiral, “trompe l’oeil” auditivo cujos círculos sugerem um movimento que é pura ilusão.
Com “Here Come the Warm Jets” (uma das bíblias do pós-rock) Eno inicia o seu processo de afastamento da pop para se aproximar de uma música feita de fragmentos. A voz apaga-se para deixar brilhar a electrónica e os efeitos especiais, as melodias ocultam-se e revelam-se em jogos de cabra-cega mas tudo se ilumina numa saudade de ouro em “Golden Hours”, pura evocação não se sabe bem de que passado glorioso. Fripp, Phil Collins e John Cale são alguns dos participantes deste álbum feito de coincidências e confidências sussurradas demasiadamente baixo para lhe furtarmos um sentido único.
“Before and After Science” deve ser arrumado na estante dos discos fundamentais dos anos 70. É o retorno às canções construídas como colagens, mas agora envoltas na névoa minimalista resultante do contacto entre Eno e a dupla germânica Cluster, num tema como “By this river”, influência decisiva nos dois sentidos, já que também Moebius e Roedelius se deixaram enredar nas malhas do inglês nos seus “Cluster & Eno” e “After the Heat”. “Before and After the Science” anuncia ainda a new wave, no esplendor da sua energia concentracionária. “King´s lead hat” é uma homenagem com título em anagrama, aos Talking Heads e “No one receiving” e “Kurt’s rejoinder” fazem boa companhia ao lado da trilogia de Bowie de Berlim, para quem este disco viria a constituir leitura obrigatória.
Eno inventou a sua própria ciência e passaria os anos seguintes a teorizar sobre ela. Viria a seguir a fase dos murmúrios, das metamorfoses do céu sobre Manhattan e da música sonhada num leito de hospital com a qual reinventaria, como John Cage, o silêncio. Antes, porém, vale a pena agarrar estes quatro álbuns que fazem a pop abrir a boca de espanto.