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Oumou Sangare + Taraf De Haidouks – “V Encontros Musicais Da Tradição Europeia – Haidouks Rock” (crítica de concertos | festivais)

cultura >> segunda-feira >> 11.07.1994


V Encontros Musicais Da Tradição Europeia
Haidouks Rock


Valeu a pena esperar por sábado, em Algés. A cantora do Mali, Oumou Sangare, e os ciganos da Roménia, Taraf de Haidouks, trouxeram a melhor música dos Encontros deste ano. A primeira com o calor e a sensualidade africanos. Os romenos com um “cocktail” explosivo de velocidade, técnica e paixão de “bandidos”.



“Haidouk” era o nome dado na Roménia medieval ao “bandido” justiceiro que lutava nos campos contra a tirania do senhor feudal. Herói nacional, espécie de Robin dos Bosques do Leste, o “haidouk” simbolizava a demanda da liberdade e da justiça social. Esse espírito reviveu no jardim do Palácio dos Anjos, em Algés, na noite de sábado, quando por obra e graça de uma família de ciganos todos os acidentes de percurso dos espectáculos anteriores destes Encontros foram perdoados.
Os novos Haidouks lutaram desta feita contra a já habitual falta de qualidade do som e pela libertação da música: uma combinação diabólica de alegria, empenhamento e, quase não se conseguiu respirar por causa disso, uma velocidade de execução estonteante dos músicos que chegou a sugerir ataques de epilepsia.
Antes, com meia hora de atraso sobre o horário previsto, já o grupo da cantora maliniana Oumou Sangare preparara os espíritos e o terreno para uma noite que ficará na memória dos Encontros. Duas bailarinas, flauta, “rigoni” (cordofone da família do Kora), percussões, baixo eléctrico, guitarra e bateria entrelaçaram-se em cadências hipnóticas que aos poucos transformaram o arvoredo domesticado do jardim em selva de luxúria. Oumou, a diva africana, surgiu de vestido longo, primeiro em verde floresta, depois em refulgências de negro e luar. Dançou com a voz, acompanhada pelas duas bailarinas que dançavam com o corpo e faziam os apoios vocais. Trindade feminina envolvida num movimento único. Acentuando o ritmo da música, a três lançavam ao ar cestas, com conchas e pedras pendendo dos lados que se entrechocavam em perfeita sintonia. Música, fala e gesto fundidos num ritual de união, simbolizando uma época em que os diversos mundos não se haviam apartado. Nem sido apanhados na armadilha do racionalismo.
África derrotou a Europa no primeiro assalto. Mas a seguir veio um furacão de Leste e nada ficou de pé. Os Hedningarna fizeram sensação nos Encontros do ano passado? Ivo Papasov provou ser inultrapassável quando toca a acelerações? Os Muzsikas são senhores incontestados da folk do Leste actual? Qual quê! Os Taraf de Haidouks destilam mais energia num minuto do que os suecos numa hora, metem mais uma velocidade que o búlgaro e só não deixam a perder de vista os húngaros porque não têm uma senhora chamada Márta nem querem ser embaixadores de coisa nenhuma.
São três gerações em palco, dos 74 anos já feitos de Ion Manole à impetuosidade dos mais novos. Ao todo uma dúzia de “haidouks” da Valáquia, ardendo num fogo comum. Ao contrário do que fizeram recentemente os Vents d’ Est no S. Luiz, em Lisboa, os Taraf de Haidouks, de acordo com o significado de “Taraf” – grupo de geometria e formação variável – dividiram-se por diversos núcleos e tocaram separadamente. Saía um violinista veterano para dar lugar ao filho ou ao neto. Os “cymbalons” (saltérios) e acordeões passavam de mão em mão, enquanto o incansável Ionica Tanase mantinha no contrabaixo uma pulsação sempre acelerada em malhas do que poderíamos designar por rock ‘n’ roll “haidouk”. Uma flauta apaziguava por momentos o frenesim, cavando na vertigem um nicho onde a voz do fundo dos tempos de Ion cantava ou narrava histórias de opressão, festa e libertação, como na “Balada do ditador” que os Taraf de Haidouks “dedicaram” a Ceausescu, acompanhada por um “Viva a revolução!” gritado de muito fundo.
Foi qualquer coisa de diferente que abanou toda a gente até muito depois da hora permitida para actuações no jardim. A polícia chegou mesmo a lançar alguns avisos, mas ninguém foi capaz de parar os “bandidos”. O concerto terminou com os doze haidouks finalmente juntos em palco, numa derradeira e formidável aceleração colectiva. Mas hora e picos de actuação, para quem está habituado a tocar dias e dias em baptizados e casamentos de aldeia, não é nada. Já com os instrumentos a serem transportados para o interior do camião, os dois acordeonistas continuaram a tocar no meio da assistência, possuídos pelo demónio da música, incapazes de parar, sempre mais depressa, sem uma falha, olhando-se mutuamente noutro lugar. Em transe. Ninguém queria acreditar. Os irlandeses costumam fazer o mesmo, com a ajuda dos copos. Os Taraf de Haidouks foram mais longe. Deram a impressão que morrem se deixarem de tocar.
Os Encontros continuam hoje em Coimbra, com Oumou Sangare, e em Guimarães, com Taraf de Haidouks e Fia na Roca, terminando terça-feira, em Coimbra com os Fia na Roca.

Vários (Calicanto + Albion Band) – “V Encontros Musicais Da Tradição Europeia – Os Cães Ladram Mas A Música Passa” (concertos)

cultura >> quarta-feira >> 06.07.1994

V Encontros Musicais Da Tradição Europeia
Os Cães Ladram Mas A Música Passa

Segunda-feira, em nova jornada realizada nos jardins do palácio Anjos, em Algés, tivemos os Calicanto, de Itália, cuja música é óptima mas os músicos nem por isso, e os Albion Band, de Inglaterra, cujos músicos são óptimos e a música nem por isso. Mais as interjeições ruminadas em voz alta por um bêbedo melómano e um cão muito participativo. Encontros com o imprevisto.



Imprevisto à parte, os Calicanto trouxeram a Algés imagens e sons do carnaval de Veneza e referências à “comedia dell’ arte”. Um domador de leões, um capitão de navio, um pescador pobre e um gondoleiro rubricaram uma actuação em crescendo que só perto do final provocou a adesão sem reservas da assistência numerosa, apesar de, à mesma hora, a televisão transmitir o Brasil-Estados Unidos. Música difícil a dos Calicanto, mais teatral na própria estrutura interna do que no aparato exterior da apresentação. Mostraram-se melhores nas danças instrumentais, “branles” e pavanas, do que nas canções vocalizadas. Relevo para os dois irmãos Tondelli, um clarinetista e tocador de gaita-de-foles, de longe o melhor músico da banda, o outro seguro no contrabaixo, secundados por um vocalista, guitarrista e acordeonista de opulenta figura com tendência para os excessos histriónicos e a concertina um pouco afónica do quarto elemento. À medida que foram tocando foram aquecendo e provocando a adesão do público – pelo menos de parte dele, desconhecedora do álbum “Cartas del navegar Pitoresco” – que a princípio fora apanhado de surpresa pela estranheza da proposta musical dos Calicanto.
Maior impacte causaram os Albion Band, banda de grandes pergaminhos liderada há mais de vinte anos por uma das lendas da folk britânica, Ashley Hutchings. Os Albion Band foram, até meados da década de 70, uma formação revolucionária, por onde passaram alguns dos melhores músicos tradicionais da dita Albion, que recuperou e actualizou as ancestrais “morris tunes” inglesas, em álbuns seminais como “No Roses” (com Shirley Collins) “Battle of the Field”, “The Prospect Before Us”, “Rise up Like the Sun” e “Larkrise to Candleford”. Hoje os Albion Band são uma agremiação de profissionalões que espalham as suas habilidades por um reportório heterogéneo, onde cabe de tudo um pouco: canções “americanizadas” sobre temas tão diferentes como as árvores, um museu ou o desemprego dos mineiros, um “set” de “morris tunes”, um “sea shantie”, instrumentais arranjados ao estilo de Louisiana e até um “blues” sobre automóveis intitulado “Cars.
Deu sobretudo para entreter. Não é todos os dias que se vê em acção um veterano dos Fairport Convention, Simon Nicol, a tratar por tu a guitarra, nem a espantosa fluência de Hutchings no baixo acústico. Ou verificar o virtuosismo violinístico de Phil Beer e o bom-humor do homem do bandolim e da mandola, Steve Knightley (por sinal com um penteado à Júlio Pereira). Este último, após um incitamento de participação dirigido à assistência, recebeu como resposta o ladrar entusiástico de um cão. Knightley salvou de pronto a situação, referindo-se ao canídeo como sendo o empresário da banda. O refrão de “Cars”, por sua vez, foi acompanhado em coro por toda a gente, não sem que antes Steve Knightley tivesse explicado que Lisboa, à semelhança de outras cidades que já visitara, estava cheia de automóveis. Comentário que de imediato suscitou o aplauso de alguém da assistência, como quem diz: “É para que vejam, ó bifes, que também somos Europa!”.
Foi agradável de se ouvir, com cão e tudo, uma música descontraída e sem arrojos formais que os Albion Band tocam com uma perna às costas e a particularidade de ser acompanhada por insistentes apelos da banda, no intervalo das canções, para que no final as pessoas se dirigissem à banca e adquirissem os seus compactos trazidos directamente da Inglaterra. Enfim, fizeram pela vida.
Hoje há mais Encontros. Em Algés, com os Radio Tarifa, de Espanha, e os Fia na Roca, da Galiza; e em Évora, com Albion Band e Calicanto. Amanhã, também em Évora, tocam Taraf de Haidouks e Thierry Robin. Sexta, dia 8, é a vez dos Taraf de Haidouks actuarem em Évora; e Oumou Sangare e Radio Tarifa em Guimarães.

Vários (Thierry Robin, Romanças) – “V Encontros Musicais Da Tradição Europeia – Noite Cigana”

cultura >> segunda-feira >> 04.07.1994


V Encontros Musicais Da Tradição Europeia
Noite Cigana



COMEÇARAM os Encontros. Em Algés a música dos ciganos “manouches” de Thierry Robin, e dos portugueses Romanças constituiu um bom aperitivo. Mas o melhor ainda está para vir.
Depois do arranque oficial, quinta-feira, em Guimarães, com os Calicanto e os Romanças, os 5ºs Encontros Musicais da Tradição Europeia prosseguiram antontem nos jardins do palácio Anjos, em Algés, de novo com aquela banda portuguesa e o grupo do guitarrista francês Thierry Robin.
Atingida a maioridade, os Encontros ainda não encontraram solução para o principal problema que, desde o início, tem afectado esta iniciativa da cooperativa cultural Etnia. Um problema de localização, no que ao concelho de Oeiras concerne. É bonito, Encontros destes num jardim, só que o do palácio Anjos fica encostado a um bairro residencial, o que obriga ao controlo do tempo de actuação dos músicos, além de não proporcionar o tipo de ambiente indicado para a audição deste género de música. Depois, com a entrada gratuita, aparecem os curiosos que ali vão apenas dar uma espreitadela, comentando em voz alta “aquela música tão estranha”, já sem falar da criançada que, mesmo em frente ao palco, não prescinde das suas gritarias e folguedos.
Aspectos negativos dos Encontros – em Algés, repete-se – mas a excepcional qualidade da música, criteriosamente escolhida pela organização, permite ultrapassar tais incómodos.
Thierry Robin e o seu grupo abriram a noite com música cigana proveniente de diversas origens. O flamenco andaluz, a música dos “gitans manouche” da França mediterrânica e a rumba catalã desfilaram pelo cenário verde dos Anjos sem o rasgo que só a manifestação do “duende” proporciona, ausência no entanto compensada por eficácia e precisão notáveis. Robin não é um daqueles “virtuoses” de técnica sobrenatural. O francês revelou-se antes de mais, na guitarra, no alaúde árabe ou na bandúrria, um artesão meticuloso, atento e concentrado, ora nas tecituras milimétricas ora nas malhas da improvisação que caracterizam as músicas do Sul. A novidade e o tempero adicional vieram de Francis Varis, acordeonista inspirado e inclinado para os fraseados do jazz que entrançou melodias na rítmica intricada das arábias e brincou com jovialidade com as memórias do baile “musette”. O flamenco viveu com mais força nas vocalizações de Paco “El Lobo” e nas palmas e guitarras dos irmãos Mambo e Bruno Saadi, dois rumberos da comunidade catalã de Perpinha. Completou a formação o percussionista marroquino Abdelkarim Sami – olhos fechados, esgares de prazer enquanto os dedos saltavam na pele do bendi, ou da darbouka, entrega total à sensualidade dos sons. Um bom concerto que no final terá pendido em demasia para a a alegria fácil de uns Gypsy Kings.
Os Romanças acabaram a noite com a sua música tradicional portuguesa ou com ela aparentada, justificando os elogios recebidos por “Azuldesejo”, o seu álbum mais recente, a maioria dos temas a banda de Sintra interpretou, a partir do romance “Gerinaldo atrevido”, do disco de estreia, ou a versão de “As Sete Mulheres do Minho”, de José Afonso. Com competência, num registo mais sóbrio que o de um passado que felizmente vai ficando distante. Pedro D’Orey arrancou segredos à harpa céltica, no tema de abertura, “Romance da Mineta”. Fernando Pereira, após uma entrada hesitante, cantou de forma segura e mostrou que grande parte da alma dos Romanças passa por ele. Seguros, Fernando Molina e João Lobo, nas percussões e, presença importante no som dos Romanças, José Pedro Gil, nos teclados. Quanto a João Ramos, continua em evolução e arrisca-se a tornar-se um dos melhores violinistas portugueses na sua área. Contribuiu da melhor maneira para o som da banda, sobressaindo quando era caso disso, ou funcionando como ornamentador (e inventor, num tema em que fez soltar das cordas estranhas onomatopeias musicais) que soube encontrar o lugar certo. Os Romanças parecem ter encontrado o seu equilíbrio. A assistência, numerosa, rumou para casa feliz.
Os concertos prosseguem hoje, em Oeiras, com Albion Band e Calicanto; no dia 5, em Guimarães, com Albion Band e Thierry Robin; no dia 6, em Évora, com Albion Band e Calicanto; e ainda no mesmo dia 6, em Oeiras, com Rádio Tarifa e Fia na Roca.