Nos 25 anos de carreira, um auto-retrato em forma de ópera-rock. António Manuel Ribeiro, Joad, numa viagem que se inicia no rock e não se sabe onde termina. “La Pop End Rock”
35 episódios sobre droga, solidão, estrada, amores, separações. E sobre os putos – os fãs “número um”.
2003 não é boa altura para se fazerem óperas rock. Aconselha a prudência a que se apague, pelo menos, o termo “ópera”. Os UHF fizeram ouvidos de mercador e foram para a frente com o seu último projecto, uma “ópera rock” intitulada “La Pop End Rock”, lançada – oh, heresia! – em duplo CD, com o rótulo a assinalar 25 anos de carreira.
Os UHF podem não ser o grupo mais sofisticado do mundo mas serão, e sobre isso haverá poucas dúvidas, um dos mais coerentes e corajosos. Sempre fizeram o que acahavam que devia ser feito, sem olhar a preconceitos nem se deixando levar pelos ventos da moda. “La Pop End Rock” é, segundo os próprios, uma “obra ficcionada sobre a carreira oficial e a vida não documentada dos UHF”. Ficcionada ou não, as letras e as notas informativas sobre cada tema, que podem ser lidas no “livrete” fornecido independentemente (não cabia na caixa de plástico) do CD, remetem para ou descrevem episódios nos quais é difícil não descortinar peripécias e personagens reais que atravessaram a vida do grupo.
António Manuel Ribeiro (AMR) é Joad, o herói, como Peter Gabriel o fora, com o pseudónimo Rael, em “The Lam Lies Down on Broadway”. As restantes personagens incluem uma fada, Ana, um crítico, um fã, o velho pastel, Dhi, um dealer, o agente e duas groupies. E um coro (personificado num “grito de mãe”, no “home da garagem” ou na “voz da serpente”), que a intervalos sublinha ou antecipa a acção, proclamando em registo épico: “genial”, “hospital”, “anormal”, “tribunal”. O tema de abertura, “Nascer/Os Primeiros Acordes”, conta com a intervenção de uma orquestra sinfónica e, lá mais para a frente, é possível escutar-se naipes de cordas, além das guitarras de António Côrte-Real, o piano de Jorge Manuel Costa e, claro, a voz, mas também os sintetizadores, de AMR.
Ao todo são 35 histórias/episódios/fragmentos, em registos que vão do confessional ao descritivo, do esoterismo místico dos contactos com uma misteriosa fada ao realismo exacerbado da vida na estrada – “Mais frango, não”, brada AMR em “uma história com (a)gente”. Histórias que falam da droga, do álcool, da noite, da solidão, das ressacas, do desencanto, da desistência, do abandono e da reconciliação. De amores passageiros e amores que deixam marcas para sempre. Encontros e separações. Glória e rotina. Da alegria e das pulsões suicidárias. Dos palcos, das terras por onde se passa até se lhes esquecer os nomes, e dos hotéis. Dos críticos e de canções. Dos putos – os fãs, todos “número um”. Da raiva, de quimeras e de guitarras eléctricas. De Joey Ramone. Do rock ‘n’ roll. E, em epílogo, do DJ que “como ninguém, quer matar a cantiga”.
Um Género Que Fez História
Foi nos anos 70 que o género “ópera rock” levou ao absurdo a fórmula do “álbum conceptual” que animou uma fatia razoável do rock progressivo. Se o rock progressivo era sonho, ambição e literatura, a “ópera rock” foi tatro e exagero. “Tommy” e “Quadrophenia”, dos The Who, permanecem como paradigmas de um género que, já no ocaso da década, originou “The Wall”, dos Pink Floyd e que antes passara, mais ou menos camuflado, por “Tje Lamb Lies Down On Broadway”, dos Genesis. Já “Hair”, “Oh, Calcutá” ou “Jesus Christ Superstar” inserem-se sobretudo na tradição do teatro musicado, no “music hall”, imbuído do espírito “hippie”, mais do que no teatro popular, de cabaret e cariz ideológico marcadamente de esquerda, desenvolvidas por Brecht, Kurt Weill e Hans Eisler. Antepassados da ópera rock, encontramo-los recuando aos anos 60, em obras como “S. F. Soeeow”, dos Pretty Things (da qual se diz ter influenciado Peter Townshend na idealização dos seus projectos megalómanos com os The Who) ou “The Story of Simon Simopath”, da banda inglesa de pop psicadélica Nirvana.
Na actualidade, músicos/escritores como Philip Glass, Laurie Anderson, Robert Ashley, Meredith Monk, Heiner Müller ou Tod Machover subtrairam ao género o “rock”, substituindo-o por “vídeo”, “multimédia”, “perfomative art”, “programático”, etc., de acordo com concepções que revertem as formas tradicionais do teatro para os novos moldes permitidos pela introdução das novas tecnologias electrónicas, tanto ao nível gráfico e cenográfico como musical. Os UHF apenas pretenderam contar uma história. A sua história. Com circunstância e alguma pompa. “Ópera rock” oblige…
Pela Estrada Certa
As pretensões dos UHF são mais modestas. Embora AMR, referindo-se à efeméride do 25º aniversário do grupo, afirme, sem falsas modéstias: “Se fôssemos americanos estávamos a caminho de sermos carimbados no rock ‘n’ roll hall of fame!”. Em vez de um álbum de tributo (“significa em geral que já se está com os pés para certo sítio!…”) preferiu a “provocação” do formato “ópera rock”. “Resolvemos ser nós a fazer a nossa história antes que aparecesse alguém a fazer alguma parvoada”.
Fazer este duplo álbum exigiu dedicação a tempo inteiro. Só “La pop end rock”, chave do álbum, garante o veterano rocker nacional, “passou por três arranjos diferentes”. “La Pop End Rock” é álbum que permitirá aos admiradores do grupo, além da música, deliciar-se com a decifração das charadas que se encontram disseminadas pelas letras (quem é “Aime eme ra”?). “La Pop End Rock” tem orquestra, tem canções com a força de “Cavalos de Corrida”, tem uma mística que o grupo, a mal ou a bem, tem conseguido manter intacta e bem colada ao corpo.
Há quem odeie, quem encolha os ombros com desdém, mas também quem sinta uma curiosidade irresistível de espreitar para dentro de “La Pop End Rock”, nem que seja para avaliar o estado do rock em Portugal. Históricos ou dinossáurios, não desistem de dar o salto em frente e de não estancarem o fluxo de adrenalina que continua a escorrer sempre que se liga uma guitarra eléctrica à corrente. AMR, Joad, é o herói com uma causa, o sobrevivente, o noctívago-agora-menos que fala dos Velvet, dos Doors, de Neil Young, de Keith Richards e de Peter Hammill, que afirma que “o rock português é do mais bem escrito do mundo” e que permanece à boca de cena a cantar “Do céi ao inferno, pode ser assim, do céu ao inferno, sem sair daqui!”. Provocatório, “La Pop End Rock” é um álbum sem papas na língua que obrigou mesmo a que se lhe colasse na capa o rótulo “linguagem explícita”. AMR é um pedaço vivo da tradição do rock ‘n’ roll em busca, ainda e sempre, da redenção. “Por três minutos na vida/ Acharei a felicidade/Na canção prometida/ A minha felicidade”.
Entre os naipes de violinos, o piano introspectivo, as guitarras galopantes e melodias que não cessam de dar a volta ao que sempre se trauteou dos UHF, descobrem-se boas canções: “Um Anjo no meu quarto”, “Fora da garagem, já!”, o sarcástico “Quero um lugar no top inglês”, “Uma história com (a)gente”, “joey Ramone”, “A noite inteira”, “A lágrima caiu”, “Por uma guitarra eléctrica”, “Aqui vamos nós/sem disfarce”, a velvetiana “Memórias de hotel”, “Por três minutos de vida”, “Ai eme ra”… Joad há-de continuar a procurar, pela estrada, a que seja perfeita. A cantar “Eu escolhi a estrada certa”. A máscara de AMT é transparente.
Traz a Coimbra “NYC Man” e “The Raven”, peças do “puzzle” da vida de um homem do tamanho de Nova Iorque.
“Duas guitarras, baixo, bateria. Qualquer banda os pode tocar. É disto que gosto nas minhas canções: Pode-se ter o QI de uma tartaruga e tocar-se uma canção de Lou Reed. É também o que aprecio no rock ‘n’ roll. Qualquer um consegue tocar rock ‘n’ roll, incluindo eu. Três acordes chegam-me perfeitamente. Não me interessa aprender mais nenhum. Prefiro dominar estes três. Se são suficientemente bons para John Lee Hooker, também são bons para mim”.
É deste modo que Lou Reed comenta “Heroin”, uma das canções emblemáticas da sua carreira, incluída na antologia “NYC Man”, que serve de base ao alinhamento do duplo concerto em Coimbra, hoje e amanhã, pelas 22h, no Jardim da Sereia. Atitude de modéstia que, de certa forma, é contrariada pela grandiloquência de “The Raven”, o seu mais recente álbum, com as suas orquestrações e uma complexidade, musical e poética, que desmente a teoria dos três acordes. Já nos estávamos a esquecer: Lou Reed também é capaz de contar uma boa anedota.
Claro que a voz é monocórdica e que a estrutura das canções permanece, regra geral, fiel aos mandamentos do rock ‘n’ roll, o que não obsta a que a obra gravada de Lou Reed possa ser considerada um dos blocos de apontamentos – onde este nova-iorquino de 59 anos anotou de tudo um pouco – mais ricos da música popular dos nossos dias. Entre as excepções, contam-se a descarga de ruído eléctrico em bruto de “Metal Machine Music” (cuidadosamente remasterizado numa edição recente, Lou Reed dá muita importância à qualidade de som), “The Bells”, que o próprio define como uma “mini sinfonia rock” (cuidado, António Manuel Ribeiro), com a participação do trompetista oriundo do “free jazz” Don Cherry, e o novo “The Raven”, obra conceptual inspirada na literatura fantástica de Edgar Allan Poe.
É igualmente claro, ou escuro, que discos como “Berlin”, uma daquelas obras que nos faz provar o sangue e a noite por um cálice do mais puro cristal, “Transformer”, que alguns arrumaram rapidamente na gaveta do “glam rock”, ou “Magic and Loss”, requiem, de uma beleza dolorosa, por um amigo morto, estão longe de se confinar à constelação do rock ‘n’ roll e que aquela asserção deReed deverá ser entendida à luz da ironia. Ou, melhor dizendo, do sarcasmo.
Auto-Retrato
O que Lou Reed apresentará ao vivo em Coimbra, depois do concerto semifalhado que constituiu a sua anterior apresentação em Portugal, no encerramento da Expo-98, foge às regras de funcionamento habituais dos concertos “antológicos”. À semelhança de “NYC Man”, não se trata tanto de um “best of” de propaganda dos “maiores êxitos”, mas de uma espécie de filme (ou documentário, Reed chama-lhe um auto-retrato) em que cada canção se relaciona com as que lhe estão próximas, segundo um encadeamento onde prevalecem as conotações subterrâneas, as afinidades psicológicas ou geográficas (em que Nova Iorque aparece, obviamente, como uma das personagens em destaque) ou inusitadas coincidências da matéria sonora propriamente dita (o “riff” de guitarra de “Ecstasy”, de 2000, remete e é o prolongamento natural de um outro “riff” de guitarra, de “Sweet Jane”, dos VU de 1970).
Funcionar de acordo com estes parâmetros até às suas últimas consequências, no disco e em concerto, requer a consciência de um vigilante e um pulso de ferro. Assim se compreende que tenha sido o próprio Lou Reed a determinar um alinhamento onde as evidências são passagens através de buracos negros, ligando mundos que a olho nu parecem tão afastados entre si como o sonho da rotina do quotidiano.
De que outra forma se poderá explicar que, na compilação, “Who am I?”, de “The Raven” (2002), desemboque em “Sweet Jane”, dos Velvet, ou que “Killing Your Sons” (gravação ao vivo de 1984) se interponha entre “Walk on the Wild Side” e “Vicious”, ambas de “Transformer”, embora neste caso, a própria sequência de títulos atire já a imaginação para um enredo perturbante? Ou que a evocação termine nos recônditos, mas tão actuais, sons de “Pale blue eyes”, dos Velvet do álbum homónimo de 1969 (ao vivo será “Candy Says”)?
Ainda o comentário mordaz: “Quando se faz uma compilação, a última pessoa com quem se fala é o artista. Geralmente até se espera que ele já esteja morto de maneira a não incomodar com as suas sugestões.” Em “NYC Man”, pelo contrário, Lou Reed foi contactado e foi ele quem seleccionou e sequenciou esta história de 25 anos na qual se interligam e justapõem – numa imagem de aparente caos que será, afinal, uma ordem, a mesma ordem babilónica sobre a qual se constroem os múltiplos ritmos e existências de Nova Iorque -, como se diz no disco, o melodrama e a tragicomédia, rock visceral e música ambiental austera. Tudo isto que nos concertos de Coimbra estará representado através do mítico “The Velvet Underground & Nico” – com a inclusãp no alinhamento de “Sunday morning”, “Venus in Furs” e “All Tomorrow Parties” (Laurie Anderson suportará a presença do fantasma de Nico?) – e da obra-prima de 1973, com “Men of good fortune” e a desolação de “The bed”.
O Artista Está “Alto”
Há quem diga que o estranho da história é o facto de Lou Reed ainda estar vivo. Que o “anjo do bizarro”, parafraseando o título de um conto de Edgar Allan Poe, sorria ainda ao explicar que o “lado negro” e o “lado claro” não são mais do que os dois lados de uma mesma moeda a que chama a “vida real” e que é impossível sermos sempre infelizes ou felizes (embora uma canção como “Perfect Day” mostre que é possível ser-se ambas as coisas ao mesmo tempo), ou que canções que nos habituámos a associar a um estado de depressão crónica do artista sejam afinal como “Vicious”, o resultado de bons momentos e de “great fun” vividos no estúdio na companhia de amigos como Mick Ronson ou Bowie.
Sobrevivente dos tempos em que a sua única amiga era a heroína ou diletante hedonista, cronista pop da fauna da “Big Apple” ou poeta iluminado que ousa comparar as palavras de “Street Hassle” a um monólogo de Tennesse Williams, Lou Reed é o puto sem grande voz que queria ser o artista que matou a arte, no circo dada antipsicadélico com o cartaz Velvet Underground, mas que acabaria por se tornar o grande edifício urbano, tão “alto” como o “empire state human” de que falavam os Human League. Lou Reed, o escarro, e Lou Reed , o esteta. Lou Reed, que se atrapalhou quando, em 1972, na gravação do álbum de estreia, “Lou Reed”, lhe puseram pela frente dois dinossauros do rock progressivo, Rick Wakeman e Steve Howe (ambos dos Yes!), e, anos mais tarde, viria a casar-se com a avatar da vanguarda chamada Laurie Anderson. Um corpo, dois rostos. Laurie Anderson, a autora do megadocumento multimédia “United States of America”, Lou Reed, capaz de injectar na veia de uma canção de três minutos o reservatório completo de ADN (ácido defoxirribonucleico, embora o autor de “Heroin” tivesse especial predilecção pelo pó branco) do rock & roll. Cada um deles alter-ego do outro. Ambos representantes dos estados unidos da música popular. Mais especificamente: estados alterados.
Metal e Magia
Lou Reed, que se pode gabar de, por sugestão da heroína, ter gravado o álbum mais inaudível da música popular, o atrás citado “Metal Machine Music”, cuja audição, na íntegra (coisa que, diz-se à laia de anedota, até ao presente ninguém logrou aguentar), equivalente a uma radiografia sonora do cérebro de um condenado à cadeira eléctrica no momento da execução. Lou Reed, o contador de histórias ternas, das tardes que assassinam o tempo, a ver “the animals in the zoo”. Lou Reed das fantasmagorias, nas asas do corvo alimentado com os poemas putrefactos, o álcool e o ópio de Poe, em “The Raven”. Lou Reed, sem receio de empunhar o escalpelo de Édipo em “Rock minuet”. Lou Reed, a fazer soar os sinos subliminares da loucura, em “The Bells”. Lou Reed, a dançar nos mais datados “nightclubs” de “disco sound” de NYC, em “Sally Can´t Dance”. Lou Reed da grande perda, que em vez de se abandonar ao abraço uterino da morte, e correr para a porta de saída, optou por seguir a seta a indicar a (re)entrada na vida, em “Magic and Loss”. E, no entanto, a sua voz continua a ser monocórdica. Quantas histórias cabem numa só corda da garganta?
Lou Reed virá a Coimbra acompanhado por Fernando Saunders (baixo), Mike Rathke (guitarra), Jsane Scarpantoni (violoncelo) e Antony (o “crooner” do momento, com voz de “castratto”, que actuou recentemente em Portugal ao lado dos Current 93). Sentado algures no palco estará o mestre Guang Yi Ren, professor de artes marciais e terapeuta. Terapia por terapia, antes ouvir “Metal Machine Music” de ponta a ponta.
Os Discos Do Concerto
Na actual digressão, o “NYC Man” recuou aos primórdios da sua obra, dela tirando a percentagem maior de canções para o alinhamento dos concertos. Com o corvo a sobrevoar.
O álbum da banana é o álbum que jamais teria existido sem o patrocínio de Andy Warhol, o homem-banana. Geralmente considerado como um marco e das obras mais seminais do rock contemporâneo (seria fastidioso enumerar as bandas para quem os VU são a fundação), “The Velvet Underground & Nico” desvia-se apenas por esse pequeno senão de não ser um álbum rock. O tribalismo rítmico deriva antes dos mantras minimalistas de LaMonte Young e do monolitismo hipnótico de Tony Conrad, outro frequentador do “Teatro da Música Eterna”, do qual John Cale fizera parte, aliada ao dadaísmo do circo Exploding Plastic Inevitable (Warhol, hidra de muitas cabeças). Só que “VU&N” desce à praça pública da música popular, servida com uma violência inaudita. E uma voz sem fundo reflectida nas águas do poço. Sem Nico, a música deste disco teria sido raiva e pedregulhos. Com ela, a passagem do veludo pela pele deixa a sensação da cobra. Fria. Porém, tão pura como a noite.
A ideia era fazer de Lou Reed uma estrela de rock. Missão cumprida. “transformer” entrou nos tops rodeado de uma aura de vício e “glamour”, tudo o que Warhol lhe ensinara mas que só a produção e os arranjos da dupla David Bowie (também ele fascinado por Warhol) e Mick Ronson conseguiram transformar num objecto apelativamente pop. O inesquecível solo de guitarra de Ronson em “Vicious”, os coros de “Andy’s chest”, de construção ostensivamente bowieana, a inexorabilidade melódica de “Perfect Day” e “Walk on the wild side”, clássicos eternos, polos apenas aparentemente contrários de uma única viv~encia no fio da navalha, não fazem esquece ro “vaudeville” ressacado de “Goodnight ladies”, o martelo-pilão dos Velvets, “Hangin’ round”, ou o “flash” que daria capa de revista, “New York telephone conversation”. “Transformer” poderia ter sido um disco de Bowie. Elegância e teatro. Reed imprimiu-lhe algo mais: a crueldade.
Não é um disco para se ouvir muitas vezes. Faz-nos sentir como neve. Quando o gravou, Lou Reed nunca tinha estado nesta cidade. Que importa, se o resultado é fiel? Álbum da solidão e decadência, começa com a recordação impossível de uma última valsa do pós-guerra dançada num cabaré de espectros, mas logo um eco isola a voz numa cápsula de vazio e ausência. Eis a Berlim onde cada um desce quando nada resta, pátria dos isolados, seringa de sonhos sem cor. Desprende-se de “Berlin” uma atmosfera de desolação grandiosa, de perda da inocência. “Man of good fortune” é um estalo desferido por quem diz “I don’t care at all”. E quando o corpo se deixa cair em “The bed”, sentimo-nos deslizar para o interior de um caixão. Escutando-se ainda a voz de uma mulher que já lá não está. “This is the place where we used to live…”. Adeus. “What a feeling”. O que sobra desta obra-prima intemporal é dito como se não pudese ser de outra forma: “Sad song”. Com orquestra, bandeiras e foguetes a disfarçar a dor.
The Raven (2002)
Em Poe viu Lou Reed uma alma gémea. Às mesmas perguntas: “Quem sou eu?”, “Porque é que amamos aquilo que não podemos ter?”, “Porque nos apaixonamos pelas coisas erradas?” responderam ambos com o excesso. “The Raven” reúne material composto por Reed para um projecto mais vasto, “POE-Try”, com encenação de Robert Wilson. Duas edições distintas divergem no conteúdo. Versão simples composta maioritariamente por canções. Versão dupla com texto declamado, passagens instrumentais e uma visão mais lata do universo de Poe onde cabem o sexo e as drogas. Duas canções antigas, “Perfect Day” e “The bed”, foram objecto de novos arranjos e a lista de músicos inclui Laurie Anderson, David Bowie, Kate & Anna McGarrigle e a lenda do “free jazz”, Ornette Coleman.
O Corvo Ou A Pop Nas Asas Do Horror
Reed não foi o único, na pop, a perder-se nos horrores de Poe. Também Peter Hammill e Diamanda Galas traduziram a decadência e a morte que ensombram os seus contos.
“The Raven”, o corvo que Lou Reed arrancou do túmulo de Edgar Allan Poe para sobre ele construir uma sinfonia lúgrube que é como um manto de sombras tombado sobre uma Nova Iorque crepuscular, de símbolos e entes decaídos, inscreve-se numa linha de “rock fantástico”, que deve a sua inspiração sobretudo, aos escritores simbolistas do séc. XIX. Entre estes, o novelista e poeta norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) exerce um poderoso fascínio sobre a cultura pop, enquanto transdutor de mitologias em que o medo, o mistério e o sobrenatural assumem papel de relevo.
Poe (como H.P. Lovecraft, outro construtor de horrores, no limite da racionalidade mais alucinada, que poucos se atreveram a assumir como brasão da pop, ainda que um grupo psicadélico americano, dos anos 60 se tenha apropriado do seu nome), fornece, através da sua obra, maioritariamente composta por narrativas curtas, todo um imaginário em que o sobrenatural surge não tanto como uma emanação da transcendência, mas como uma deformação do real – o monstro da irracionalidade que se infiltra por uma brecha no cérebro e provoca a alteração das percepções. O corvo que traz as más novas do Inferno e amaldiçoa a normalidade. A apropriação deste imaginário por Lou Reed seria então mais do que uma fuga para mundos idealizados ou a queda nos abismos infernais, a fixação/sublimação do hiper-realismo que desde sempre pautou a sua produção discográfica. As alucinações de ópio do autor de “O anjo do bizarro”, “Berenice”, “O poço e o pêndulo” e “O barril de amontillado” vivem em paralelo com as mutações e aberrações da Nova Iorque das mil e uma taras, da heroína e da paranóia, das criaturas marginais, “freaks” perdidos nessa outra alucinação que advém da alienação, da separação e, em última instância, da esquizofrenia que corta em absoluto as amarras que ligam o indivíduo ao tecido social.
Outros exemplos se podem apontar da relação entre o universo literário fantástico de Poe e a pop. O músico e poeta Peter Hammill, ex-líder dos Van Der Graaf Generator, preparou durante mais de 20 anos aquele que poderia ter sido – mas não foi – o seu “opus” máximo, uma ópera inteiramente baseada em “A Queda da Casa de Usher”, escrita pelo escritor natural de Baltimore em 1839. Duas versões diferentes deste trabalho comprovam a inadequação entre duas personalidades demasiado próximas ou mesmo irmãs. Hammill, considerado por alguns um dos grandes poetas ingleses vivos, quebrou a sua imagem contra a reflexão que o espelho de Poe lhe devolveu. O seu “In Camera”, álbum de 1974, é uma obra tão aterradora como os piores pesadelos do escritor simbolista e, de igual forma, uma prova de génio. Deste álbum, a passagem dos demónios “Gog” e “Magog” pelo espírito deixa marcas difíceis de apagar. Hammill é o Poe dos tempos actuais. Igualmente capaz de gelar não o espírito, mas o sangue é a maneira como a cantora e compositora Diamanda Galas ajustou uma das metáforas de Poe sobre a peste, a morte e a punição divina, “A Máscara da Morte Vermelha”, à sua própria trilogia sobre a maldição e a sida, “Mask of the Red Death”, obra sanguinolenta, no sentido infectado, tanto literal como metafísico do termo.
Considere-se ainda, como “fait-divers”, o álbum “Tales of Mystery and Imagination”, de Alan Parsons Project, inspirado em contos sortidos de Poe, que, apesar de provocar tantos arrepios como uma viagem de comboio-fantasma na feira popular, consegue, mesmo assim, ser o melhor álbum entre a fraca discografia do engenheiro de som de “Dark Side of the Moon”, dos Pink Floyd.
E se, no campo do minimalismo, Philip Galss baseou uma das suas óperas-a-vapor também em “A Queda da Casa de Usher”, registe-se, como final tenebroso, que os Dark Runner aspiraram os miasmas da obra de Poe para regurgitar a sua electro-tecno-industrial nos álbuns “Master Save Us” e “Gentle Sin…”. O corvo exulta com a putrefacção.
Nos anos 80, a editora belga Crammed provou que a música popular podia voltar a ambicionar ser obra de arte. Ou, se não, a pôr um bigode no nariz do classicismo. Afinal de contas, Dada também se podia dar ao luxo da luxúria.
Os “eighties” foram mais do que o reservatório de óleos pesados, faíscas eléctricas e quinquilharia “glamour” que hoje, devidamente reciclados, tomaram a forma de “electroclash”, “tecnocoisa” e outras designações estapafúrdias que mais não servem do que para embalar produtos, na sua maioria, absolutamente destituídos da menor mais-valia musical.
Havia, é certo, os Human League, Orchestral Manoeuvres In The Dark, Tubeway Army ou Berlin Blondes para fazer a ligação entre a monstruosidade industrial dos Throbbing Gristle, Test Dept., SPK e os primeiros Cabaret Voltaire, e as afectações dos chamados neo-românticos (Spandau Ballet, Duran Duran, Classix Nouveux, etc.). Era a maneira de tornar inofensiva uma atitude que levava a rebeldia “punk” aos extremos da ideologia, da tecnologia e da magia. A par destas manobras mais ou menos subversivas, a pop, claro, continuou a sua viagem de longo curso.
No continente, porém, uma terceira via emergiu, o lado “arty” dos anos 80, ponto de cruzamento de mil e uma estéticas, da pop à música contemporânea, da étnica à electrónica, da clássica ao minimalismo, do jazz Às sínteses mais inverosímeis – repondo a questão, deixada em aberto com a irrupção explosiva do “punk”, de como continuar as experiências direccionadas para uma música, dita “pretensiosa”, encetadas na década anterior pelo rock progressivo.
Em Inglaterra já havia quem tratasse do assunto, na cooperativa, editora e distribuidora Recommended que, a partir das sementes lançadas pelos Henry Cow e pelo movimento RIO (“Rock In Opposition”), criara o chamado “rock de câmara”, personificado por bandas como os Art Bears, News From Babel, Present, Conventum, Univers Zero e Art Zoyd.
Na Bélgica constituiu-se a sede do contrapoder, com a criação, em 1981, por Marc Hollander e Véronique Vincent, da editora Crammed, rapidamente extensiva a uma sua subsidiária, a Made To Measure, vocacionada para a divulgação de propostas mais elitistas e totalmente desfasadas da “normalidade”. A Cramworld, especialista em “world music” surgiria anos mais tarde. Tinha assim início uma aventura “com base em encontros, paixões, rupturas e flirts musicais”, mas também resultante de uma rede de cumplicidades que viria a envolver ainda Hann Gorjaczkowska, responsável pela direccção artística e gráfica, Vincent Kenis e Samy Birnbach, dos Minimal Compact, hoje operativo nas pistas de dança com a designação DJ Morpheus.
Marc Hollander e Véronique Vincent eram, são, ambos músicos. Marc fundou um dos grupos mais importantes dos anos 80, situado na charneira entre o pólo Recommended e o europeísmo “dandy” da sua própria editora, os Aksak Maboul. Véronique era a cantora dos The Honeymoon Killers. Grupos que, curiosamente, permaneceram até à data com dois dos seus trabalhos a não merecerem honras de reconversão para CD. O presente pacote de 12 reedições, genericamente embalado com o rótulo “Crammed Global Sounclash, 1980-1989” (mais duas colectâneas, uma centrada nas fusões “world”, outra na “electrowave”) disponibiliza-os, enfim: “Onze Danses pour Combattre la Migraine”, que tanto pode ser encarado uma protoencarnação dos Aksak Maboul como um trabalho a solo de Hollander, e “Les Tueurs da la Lune de Miel”, álbum único dos Honeymoon Killers.
Feito À Medida
A Made to Measure, subsidiária da Crammed, coube a tarefa de abrir os portões de um novo mundo. De súbito, a Europa começou a reparar na existência de uma nova música, luxuosamente embalada e produzida, que escapava às habituais catalogações de estilo. Álbuns “feitos à medida” de uma concepção estética que poderíamos designar por “neoclássica” de acordo com o propósito da criação de uma colecção de objectos únicos – obras de arte na verdadeira acepção da palavra. Foi, além disso, uma das primeiras editoras, senão mesmo a primeira, a lançar o conceito de “série”, englobando a diversidade em caixas com selo de marca num misto de obscurantismo quase esotérico e apelo gráfico irresistível. Mais importante que tudo: as músicas que ostentavam na capa a tira “Made to Measure” eram garantia de surpresa e de associações musicais sem paralelo.
O cartão de visita, com número de série MTM1, veio à luz em forma de antologia, com a participação dos Aksak Maboul, Tuxedomoon, Minimal Compact e Benjamin Lew em inéditos compostos de propósito para ela. O destino estava traçado e os números da série seguinte dariam a conhcer algumas obras marcantes da música alternativa dos anos 80. Os melhores: “Reixax au Bongo”, de Hector Zazou (faz parte do actual pacote), “Colorado Suite, de Blaine L. Reininger e Mikel Rouse, “western spaghetti” em forma de “opus” minimalista (“Philip Glass meets Bonanza”, como escreveu alguém), a “Walk in the Woods”, de The Mikel Rouse Broken Consort, minimalismo com electrónica e costela romântica, “Sedimental Journey”, de Peter Principle, fragmentos quebrados e incongruentes dos Tuxedomoon, misturados com poemas e interferências cósmicas.
“Géographies”, de novo Hector Zazou, Wagner, Raul Ruiz e ZNR em sinfonias de ópio, “Stranger than Paradise”, de John Lurie, “Desert Equations: Azax Attra”, de Susan deyhim e Richard Horowitz (incluído no pacote), “Music for Commercials”, de Yasuaki Shimizu, electroanúncios para televisão, “If Windows They Have”, de Daniel Schell & Karo, neo-tudo e obra-chave dos anos 80, “Down by Law”, de John Lurie, mais BSO em formato de jazz “downtown” de câmara, “Douziéme Journée: Le Verbe, la Parure, l’Amour”, segredos e romances electrónicos, outro clássico e a sua sequela, “A Propos d’un Paysage”. “Tone Poems”, de Peter Principle, o título diz tudo e não diz nada, “Géologies”, de Hector Zazou, na linha de “Géographies”, “Pretty Ugly”, de Peter Scherer e Arto Lindsay, “noise” e “no rock” domesticados mas não menos sinistros para um “ballet” da Amanda Miller, “Arrows”, de Steve Shehan, “world music” de uma galáxia distante.
Mais recentes: “Le Secret de Bwlch”, de Daniel Schell e Karo, refinamento da nova “chamber music” deste grupo suíço, “Domino One”, de Ramuntcho Matta, “kitch”, vudu, carnaval, sons de água e de galinhas. Mais convencionais, semi-fracassados ou “excêntricos” pelos motivos errados (exibicionismo sem nexo nem propósito), encontram-se discos de Benjamin Lew, Samy Birnbach e Benjamin Lew (“Nebka” e “Le Parfum du Raki” não estão ao nível dos duetos com Steven Brown), Fred Frith (a BSO, pouco gratificante, “The Top of His Head”), Steven Brown & Delphine Seyrig, Zelwer, Gabor G. Kristof, Karl Biscuit, Seigen Ono, David Cunningham (fez bem melhor do que aqui, com “Water”), ainda Hector Zazou (o redundante “Sahara Blue” e “Glyph”, com Harold Budd), Brion Gysin (neste caso a conversa é mais que música…) e John Lurie National Orchestra.
Tudo somado, dá para uma quantidade de horas de audição, deslumbramento e, eventualmente, desorientação. As medidas da Made To Measure variavam com a mesma facilidade que a arquitectura das cidades obscuras em BD de Shwitens e Peeters. Mas a Crammed reservou outras das suas preciosidades para o seu próprio catálogo. O bolo teve mais do que uma cereja no topo.
Doze Danças Para Combater a Enxaqueca
Aksak Maboul
Onze Danses pour Combattre la Migraine
(1977)
8/10
Fica finalmente disponível em CD o antecessor de “Um Peu de l’âme des Bandits”. Marc Hollander assegura a quase totalidade da composição e instrumentação deste disco em que o rock de câmara ganha as tonalidades de música de feira, com as suas caixas-de-ritmos de primeira geração, minimalismo “kitsch”, divagações de jazz e variedades impressas em cartões de visita desbotados que evocam os “orgues de barberie” de Pascal Comelade. Um álbum que ditaria algumas das vias posteriormente seguidas por outros artistas do catálogo
Exilados na Europa, os norte-americanos Tuxedomoon abandonaram o pós-punk erudito que marcou o seu álbum de estreia na Ralph, inevitavelmente influenciado pelo som dos Residents, para mergulharem no crepúsculo de uma música que aliava a nostalgia ao futurismo. Ritmos automáticos, o violino “alien” de Blaine L. Reininger, o arsenal de efeitos electrónicos desconjuntados de Peter Principle e os teclados e sopros de Steve Brown, capazes de se infiltrarem no sangue de um jazz doente como um antibiótico, servem canções sobre a decadência do amor e do Ocidente.
Honeymoon Killers
Les Tueurs de la Lune de Miel
(1982)
8/10
Os assassinos da lua-de-mel, bizarra formação franco-belga liderada pelo saxofonista, já falecido, Yvon Vromann, não são assim tão violentos, embora se inspirassem no “punk” e na “new wave”, mas seguindo um figurino francês. O lado “arty” emerge, porém, quando menos se espera, nas aproximações jazz/burlescas de uns Etron Fou Leloublan enquanto o sorriso pop chega a ser pateta numa faixa como “Histoire à suivre”, com sabor a Jane Birkin. Tudo estaria bem se não houvesse um saxofone a gritar “free jazz”. E há coisas como faziam os Kas Product (lembram-se?) e os Alésia Cosmos (ninguém se deve lembrar…). Electrónica no batedor e ritmos Recommended integram igualmente este curioso objecto que agora surge aumentado por temas extra, entre os quais um “live” com os Aksak Maboul.
Benjamin Lew
Compiled Electronic Landscapes
(1982)
8/10
Antologia de fragmentos e paisagens electrónicas extraídos dos álbuns a solo “Nebka” e “Le Parfum di Raki”, bem como das anteriores e francamente superiores colaborações com Steven Brown. Os tírulos e ambientes dir-se-iam recortados de um filme de Marguerite Duras ou do “Marienbad” de Resnais. Portos do Mediterrâneo, ventos do deserto, as aventuras de Adéle Blanc-Sec e de Arsène Lupin na Paris da Belle Époque em quadros electrónicos onde a influência de Eno se veste com o onirismo dos filmes do inconsciente.
Desta colaboração entre Hector zazou, previamente nos ZNR, o cantor congolês Boni Bikaye e o grupo de electrónica Cy1 resultaria um dos primeiros exemplares de etnotecno, antes da queda na variante etnoseca. As programações, imbuídas do calor próprio dos sintetizadores e sequenciadores analógicos, seguram danças dervíshicas enfeitiçadas pelos cânticos afro de Bikaye. Absolutamente hipnótico ou, como alguém descreveu na altura esta fusão de prototecno e arvoredos “world”: “Fela Kuti meets Kraftwerk on the dance floor”. Arrumar ao lado da variante kraut e, inevitavelmente, mais fria, “Zero Set”, de Dieter Moebius, Conny Plank e Mani Neumeier.
Samy Birnbach e a israelita Malka Spiegel fizeram dos Minimal Compact uma das bandas da Crammed com maior projecção fora de portas. A mistura de elementos rock com melodias e sonoridades do Extremo Oriente, onde alguém, mais excitado, viu o encontro de Ian Curtis com a cantora folk egípcia Oum Kalsoum, não resistiu ao tempo, ouvindo-se hoje como um típico objecto dos anos 80 pós-Joy Division, já impregnado pelo espírito electro.
Karl Biscuit era uma figura enigmática que aparece na capa de “Secret Love” a fazer o número do manequim romântico. Apesar das referências aos Depeche Mode e aos Human League e da graça de lhe terem chamado “Julien Clerc em três dimensões”, a pop electrónica e as “torch songs” de pacotilha servidas em bandeja de mambo e electrobeats baratos é pouco convincente enquanto testamento musical deste francês hoje responsável pela companhia de dança Castafiore.
Registado originalmente na Made to Measure, “Reivax au Bongo” é um daqueles discos que parecem saídos do sonho de um louco. Composto como banda sonora para uma telenovela imaginária (!9, o “primeiro lado” experimenta, num contexto de desenhos animados, as vocalizações étnicas de Boni Bikaye, Kanda Bongo Man e Ray Lema. Tão delirante como exótico, este primeiro segmento não faz prever o que se segue: naipes grandiosos de música coral cantada por donzelas e querubins que se levam nas alturas como um madrigal pré-barroco de Gabrielli ou Heinrich Schütz.
Pop electrónica com dose de excentricidade q.b. pelo ex-vocalista dos Wire, em colaboração com John Bonnar, Malka Spiegel e o engenheiro de som/produtor e alicerce do chamado “som belga”, Gilles Martin. A par de canções padronizadas na pop electrónica da época, a presente reedição junta-lhes um inédito com Newman a falar da sua música, sobre fundo sonoro. Os mais exagerados viram neste álbum as mesmas qualidades de “Rock Bottom”, de Robert Wyatt, e de “The Madcap Laughs”, de Syd Barrett, mas a verdade é que a este “suicídio comercial” falta tanto a tragédia como a loucura.
Disco de uma beleza fora do vulgar a deste baile de debutante de uma cantora japonesa com a voz de boneca caóda no jardim de Virginia Astley. O som de dar corda a uma caixa-de-música dá o mote a uma colecção de melodias frágeis, por vezes arrebatadoras, que incluem uma mutação cândida de “Cheree”, dos Suicide, modificada para “Cheri cheri”, uma letra de Shakespeare, uma dedicatória a Brigitte Bardot, “La poupée qui fait non”, de Michel Polnareff, música de igreja, um requiem de Gabriel Fauré (1888) e uma arrepiante, porque falsamente ingénua, versão de “In heaven”, da banda sonora de “Eraserhead”, de David Lynch. No filme o tema é cantado por uma bailarina que vive dentro de um radiador, ao mesmo tempo que pisa espermatozóides: “In heaven everything is fine”.
Étnica, técnica, tecno, cânticos da Pérsia, programas de computador, “drones” e dunas. Danças electro em contraponto com uma voz planetária. O escritor Paul Bowles perguntou, a propósito, se esta música foi composta sob a influência de algum alucinogénico, enquanto Jaron Lanier, cientista, compositor e inventor da realidade virtual fala de uma genuína viagem dos corpos através de uma paisagem hi-tech. “Azax Attra” percorre-se como se pisássemos o solo de uma ilusão e subitamente sentíssemos no rosto o choque da areia empurrada pelo vento.
Muito antes dos icebergs imóveis dos Sigur Rós, os noruegueses Bel Canto, da cantora Anneli Marian Drecker, lançavam ao mar o conceito de pop ártica que viria a ramificar-se na actualidade por nomes como Biosphere, Chiluminati e Röyksopp. Apesar da rótmica ser de gelo, chovem melodias capazes de inflamar os corações, como “Blank sheets”. Fizeram-se comparações com os Cocteau Twins, Sara MacLachlan, Dead Can Dance e Talk Talk, mas é mais singelo do que isso.