Arquivo mensal: Novembro 2020

Tadao Sawai w/ Sawai Koto Academy – “Degraus De Água Desceram Até Ao Céu” (concerto / institut franco-portugais

Cultura >> Quarta-Feira, 04.11.1992


Degraus De Água Desceram Até Ao Céu



Anunciava o programa para a noite de segunda-feira, no Institut Franco-Portugais, música tradicional japonesa. Tal não aconteceu. Toda a segunda parte foi preenchida por obras contemporâneas da autoria de Tadao Sawai, que tocou acompanhado pelo seu grupo Sawai Koto Academy.
Antes do intervalo o senhor Hideo Takahashi proferiu uma conferência em japonês, subordinada ao tema 2ª cultura musical japonesa e a sua origem”. Partindo do princípio de que alguns elementos do público pudessem não dominar suficientemente a língua japonesa, a organização providenciou a presença de um intérprete. Não era necessário. A musicalidade do japonês tornava a significação das palavras irrisória. O senhor Takahashi falou sobre as boas relações e afinidades culturais existentes entre o Japão, o país mais oriental do Oriente, e Portugal, o país mais ocidental do Ocidente. E do koto, o mais típico instrumento tradicional japonês que esteve sempre no centro das atenções.
Tadao Sawai, envergando o traje samurai, passou à prática, num solo de koto e em duo com Kuniyoshi Sugawara, em shakuhachi, uma flauta vertical de bambú. Quanto ao koto é um instrumento de cordas, de linhas aerodinâmicas, tocado na horizontal, cuja sonoridade oscila entre a harpa, o saltério, a guitarra portuguesa e a “steel guitar”.
Depois do intervalo, o encantamento. Tadao Sawai e os restantes músicos da Koto Academy – Kazuhiro Izeki, Hiroshi Nakasone e Hiraku Sawai – começaram por mostrar as virtualidades deste instrumento ancestral, numa peça minimalista inspirada nas combinações de um caleidoscópio. Vale a pena citar a propósito as palavras do compositor: “… sentia-me como se estivesse a passar por uma espécie de alucinação, à medida que observava as mutações imprevisíveis dos desenhos, um sentimento que provocava em mim uma excitação fascinante. Eram deliciosas as cores que mudavam ao regular a entrada de luz (…) era também um deleite para o ouvido, o som levemente sussurrante que emergia à medida que os pedacinhos de vidro se entrechocavam quando fazíamos rodar o tubo”. Neste texto encontra-se implícito o espírito profundo japonês. A imersão na vibração pura. A intuição do instante. O contacto com a luz. O toque delicado nas texturas da matéria.
Polirritmias e jogos de cristal. Degraus de água descendo em cascata até ao céu. Paradoxos melódicos. Glissandos e ciclos de infinito. Quatro kotos transportaram-nos a dançar para o lugar exacto onde nos encontrávamos. Expandidos pelos quatro cantos do mundo. Impossível não sentir as ondas, a proximidade, a distância.
Seguiram-se três peças interpretadas com o mesmo virtuosismo, sensibilidade e a-tensão. “Ginga”, duo de koto e shamisen (espécie de banjo de três cordas), “Jogen no Kyoku”, para koto e shakuhachi (“a imagem que ocupava o meu espírito”, diz a propósito dela o compositor, “era própria de pessoas que, em tempos recuados contemplavam e confiavam os seus pensamentos à misteriosa lua”) e, finalmente, nova interpretação assombrosa de koto solo, por Tadao Sawai, em “Tsubasa ni notte”.
Público em delírio, o que contrariou um pouco a atmosfera zen do momento, mas enfim, pode-se admitir que o baque das palmas servia de despertador das consciências… – e o pedido, satisfeito, de um “encore” que trouxe consigo a surpresa: um arranjo para quarteto de kotos e shakuhashi das “Quatro Estações”, de Vivaldi, numa leitura subtil da música barroca, aquela que, na ess~encia, mais contraria a natureza íntima do ser japonês. O zen é também este contraste. A ave e o raio.

Yello – “Essential Yello”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 04.11.1992


A PIADA ASSASSINA

YELLO
Essential Yello
CD, Mercury, distri. Polygram



Não há muitas bandas como os Yello. Misturam tudo. Não respeitam nada. E ainda por cima divertem-se. São dois, suiços, e provaram que a electrónica pode ser uma anedota bem contada. No início, Boris Blank, o mago dos circuitos integrados, e Dieter Meier, o vocalista do bigode que gosta de se passear pelos casinos da Europa, deixaram-se fascinar pelos Residents, os tais americanos de que ninguém conhece os nomes. “Solid Pleasure”, a estreia, gravada no selo Ralph, o mesmo dos criadores de “The Third Reich ‘n’ Roll”, não escondia o fascínio. Depois de um álbum de transição, “Claro que Si”, e outro de excepção e imaginação transbordante, talvez o seu melhor de sempre, “You Gotta Say Yes to Another Excess”, os Yello tornaram-se coqueluche das pistas de dança e a sua música foi-se aos poucos tornando mais previsível. “Stella”, o duplo de remisturas “1980-1985, the New Mix in One Go”, “One Second”, “Flag” e “Baby” inflectiram decididamente na vertente dançante, sem que com isso os Yello deixassem de carregar em força na tecla do humor e da diversidade. “Essential Yello” inclui temas de todos estes discos, considerando como “essencial” precisamente a tal faceta acessível, herdada dos ritmos robóticos dos Kraftwerk e acrescida do “pico” de decadência elegante (e muito europeia) e do espírito de síntese que permite aos Yello condensarem os seus delírios no formato de canções. Opção, discutível e subjectiva como qualquer outra, que talvez se justifique por ter sido essa acessibilidade que projectou a banda na cena internacional. Os Yello juntaram duas atitudes que na aparência se julgaria serem incompatíveis: o experimentalismo e o “kitsch” típico da genuína música de variedades. Nesta dialéctica entre a seriedade (nunca inteiramente assumida, nem sequer no primeiro álbum, em que as pistas já começavam a baralhar-se) e uma ironia muito fina, que abre as portas ao niilismo e à destruição dos lugares-comuns da música popular (e nisto os Yello mostram que aprenderam com os Residents), se joga todo um equilíbrio de formas e conceitos. Eles são diabos disfarçados, “jokers” cómicos e simpáticos, vestidos de muitas cores, como nos vídeos, e de muitas músicas, que assassinam e vampirizam até não lhes sobrar pinta de sangue. Que outra banda, senão os Yello, conseguiria convocar para as suas orgias Frank Sinatra, Bowie, as orquestras de mambo, as bandas “mariachi”, o cha-cha-cha, Kraftwerk, o sado-masochismo, o heavy metal, o som Stax, o disco-sound, o swing, Roxy Music, o tango, Afrika Bambaata, corridas de automóveis, ritmos africanos, Residents, Donna Summer, a voz de um gorila, o “film noir” e um romantismo de puxar às lágrimas? “Essential Yello” é tudo isto a um ritmo desenfreado, presente nalguns dos temas mais populares destes suiços sem fronteiras: “Oh yeah”, “The race”, “Vicious games”, “Tied up”, “Of course, I’m lying”, “Lost again”, “I love you” ou o emblemático “The rhythm divine”, vocalizado por Shirley Bassey e no qual a música dos Yello encontra a sua verdadeira essência. (7)

Chieftains, Battlefield Band e Barabàn – “Pela Lei E Pela Grei” (Festival Intercéltico)

Pop Rock >> Quarta-Feira, 04.11.1992


PELA LEI E PELA GREI

Chieftains, Battlefield Band e Barabàn são os nomes já confirmados para o Festival Intercéltico do Porto, cuja quarta edição terá lugar nos próximos dias 1, 2 e 3 de Abril, no Teatro Rivoli. Este ano vai ser possível conhyecer os “suonattori” dos Apeninos e participar num torneio de xadrez celta. Se levar cartas, tenha cuidado. Se é mulher, prepare-se, ou não, para gritar. E nunca, mas nunca, puxe os cabelos a um padre.



Para além daquelas bandas, encontra-se em fase de negociações a vinda de um grupo da Bretanha (que poderá bem ser um dos nomes sonantes da editora Keltia) e outro da Galiza. Prevê-se ainda, à semelhança das edições anteriores do festival, a actuação de uma banda portuguesa.
Algumas actividades paralelas – que muito contribuíram para o sucesso e ambiente de festa que caracterizaram as anteriores edições do Intercéltico, este ano, como sempre, organizado pelo MC – Mundo da Canção – estão já confirmadas, como uma exposição sobre os “suonattori” ou tocadores de “piffero” (instrumento de palheta dupla parente da bombarda) e “musa” (gaita-de-foles) dos Apeninos, que será acompanhada de um “workshop” dirigido por Giuliano Grasso, membro dos Barabàn.
Para os estudiosos, apreciadores ou simples curiosos de tudo o que se relaciona com a cultura celta, está reservada uma surpresa: a apresentação e realização de um mini-torneio de xadrez celta, uma variante deste jogo com regras próprias, descoberta a partir de estudos e recolhas efectuadas na Irlanda e na Bretanha.

Bárbaros

Uma pequena exposição alusiva ao tema “As antigas leis da Irlanda”, com possível edição de uma brochura, dará a conhecer certas idiossincrasias da personalidade dos antigos irlandeses. Legislação que nada deixava ao acaso e sobre matérias tão díspares como os direitos cívicos do gado bovino e da mulher (desde que gritasse) ou ofensas dirigidas a um membro do clero (desde que fosse virgem). Por exemplo, era ilegal “expor uma vaca ao perigo derivado dos cães vadios e dos piratas”. Sobre as práticas, presumivelmente sexuais, levadas a cabo sobre lençõis ou sobre a relva, a lei era um pouco mais elaborada: “se uma mulher concordar em ir para a cama ou para trás de uma sebe com um homem, este não pode ser considerado culpado mesmo que ela grite. Mas se ela não concordou, ele é culpado, desde que ela grite”. Dos desagravos aos membros do clero se diz que “por puxar os cabelos a um bispo casto, a multa é de um bezerro de um ano por cada vinte cabelos arrancados”. Estas leis permaneceram em vigor até ao século XVI e ao reinado de Isabel I, altura em que foram abolidas por terem sido consideradas “bárbaras”.

Embaixadores

Dos grupos já agendados no programa, os Chieftains, cabeças de cartaz da edição número quatro do Intercéltico, são o que se pode chamar uma lenda viva da Irlanda e os representantes legítimos da música tradicional desta Ilha, no resto do mundo. Estiveram em Portugal em Setembro passado, na Festa do “Avante!”, onde rubricaram uma actuação com sabor a alguma frustração. Nem o local nem o contexto eram os mais propícios para uma música feita de pormenores e subtilezas estilísticas, manifestando os Chieftains, logo nessa ocasião, o desejo de voltar. Em condições diferentes, de modo a poderem tirar o máximo partido da excelência instrumental em que são mestres. Até Abril, vale a pena recordar ou descobrir discos como “The Chieftains 5”, “Bonaparte’s Retreat”, “Boil the Breakfast early”, “The Chieftains 10”, “Celebration”, manifestos inspirados da tradição musical da Irlanda. Enquanto não chega o novo disco, intitulado “Another Country”, no qual os Chieftains voltam a desempenhar o papel de anfitriões, num trabalho de levantamento das relações entre a música irlandesa e a “country” americana que inclui como convidados, entre outros, Emmylou Harris, Ricky Scaggs, Chet Atkins, Willie Nelson e os Nitty Gritty Dirt Band.
Não menos importantes, os Battlefield Band desempenham na Escócia o mesmo papel que os Chieftains na Irlanda, de embaixadores da música tradicional do seu país no estrangeiro. Autêntica instituição, a banda chegou ao ponto de organizar anualmente um festival próprio, o “Battlefield Band’s Highland Circus” e de emprestar o seu nome a uma corrida de cavalos. Da formação original dos Battlefield Band, e ao fim de 15 anos de carreira, apenas resta o teclista e vocalista Alean Reid que virá a Portugal acompanhado por Alistair Russell (guitarra, cistro, voz), Iain MacDonald (Highland pipes, flauta, whistle) e John McCusker (violino, whistle, acordeão, teclados).
Nos concertos, os escoceses são um espectáculo de energia e entusiasmo. Sempre imprevisíveis, é frequente alternarem em “medleys” diabólicos, temas tradicionais com outros estilos jusicais, desde canções dos Beatles e dos Creedence Clearwater Revival a clássicos do rock ‘n’ rol, versatilidade essa patente no álbum ao vivo “Home Ground”, gravado em 1989. De uma discografia que compreende até à data 10 álbuns de originais, recomendam-se “Home is where the Van is” (1980), “There’s a Buzz” (1982), “Celtic Hotel” (1987) e o volume dois de “Music in Trust” – de parceria com a harpista Alison Kinnaird -, banda sonora de uma série televisiva sobre os patrimónios arquitectónico e paisagístico da Escócia. Todos eles com o selo Temple e disponíveis no nosso país.

Lombardos

Originários da região de Milão, os Barabàn poderão ser uma das revelações do festival. Movendo-se numa área próxima à dos piemonteses La Ciapa Rusa, os Barabàn fazem o levantamento de temas tradicionais da Lombardia, região do Norte de Itália, a Leste do Piemonte, adaptando-os, numa fase seguinte, a arranjos da sua autoria que incluem o uso imaginativo dos computadores. A música resultante é ao mesmo tempo complexa e espontânea, terna e extrovertida, sem nunca perder de vista a visão intuitiva do mundo e o telurismo que caracterizam o modo de ser tradicional. Os Barabàn são Vicenzo Caglioti (acordeão, voz), Guido Montaldo (“pifero”, flautas, clarinete, voz) e Paolo Ronzio (guitarra, “piva” [outra variante da gaita-de-foles], “musa”, bandolim, voz). Têm gravados três álbuns: “Musa di Pello Pinfio di Legno Nero…”, na Madau Dischi e, na editora própria Associazione Culturale Barabàn, “Il Valzer dei Disertori” (considerado pela “Folkroots” o melhor álbum de música tradicional italiana de 1987) e “Naquane”, um disco espantoso, na linha de “Faruaji”, dos Ciapa Rusa, inspirado num ritual de invocação à chuva celebrado na localidade de Vacamonica. “Naquane” e “Il Valze dei Disertori” vão ser editados brevemente em Portugal pelo Mundo da Canção.