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Roxy Music – artigo de opinião / retrospectiva do grupo

Pop Rock

29 de Novembro de 1995

Retrospectiva dos Roxy Music
EM CADA SONHO UMA INQUIETAÇÃO


LONDON - JULY 05: Andy Mackay, Paul Thompson, Bryan Ferry, Brian Eno, Phil Manzanera, Rik Kenton, Roxy Music posed group shot at the Royal College Of Art in London on July 5 1972 (Photo by Brian Cooke/Redferns)

LONDON – JULY 05: Andy Mackay, Paul Thompson, Bryan Ferry, Brian Eno, Phil Manzanera, Rik Kenton, Roxy Music posed group shot at the Royal College Of Art in London on July 5 1972 (Photo by Brian Cooke/Redferns)


Odeon, Rialto, Plaza, Gaumont, Ritz… De entre os vários cinemas disponíveis, a escolha recaiu no Roxy. Roxy Music, mais do que uma banda, foi um conceito, único na história do rock. Desde o início, Bryan Ferry sabia o que queria. O rock como arte de conciliação de sons, imagens e estímulos antagónicos.

Nos Roxy Music, sobretudo na discografia compreendida entre 1972 e 1975, dos álbuns “Roxy Music”, “For Your Pleasure”, “Stranded”, “Country Life” e “Siren”, encontramos a projecção dos delírios artísticos e pessoais de um estudante de Arte a transbordar de ideias, Bryan Ferry. Os Roxy Music, mesmo admitindo a razão dos que não se esquecem de apontar a importância de decisiva de Brian Eno nos três primeiros discos, foram sempre propriedade e campo de sonhos pessoal e intransmissível de Ferry.
Tudo começu, ainda nos anos 60, no Newcastle Art Centre. Foi aí que o Ferry estudante, que já nessa época dava nas vistas pelo modo elegante e afectado como se vestia, travou conhecimento com duas figuras que ajudaram a criar a estética visual do futuro grupo: Richard Hamilton e Nick de Ville. O primeiro era um pintor pop que tentava anular a diferença entre a arte popular e a arte erudita, além de admirador ferrenho da mitologia da Hollywood dos anos 40. O segundo foi discípulo de Hamilton e aplicou os ensinamentos recebidos no “design” de todas as capas dos Roxy Music até “Siren”.
O seu estilo caracterizava-se pela exposição crua de mulheres, ora “glamourizadas” ao limite do “kitsch”, como a mulher-bombom de “Roxy music”, ora de uma beleza agressiva e quase masculina, como as duas amazonas de “Contry Life”, tapando/destapando as partes estratégicas das respectivas anatomias, passando pela sereia escandalizada de “Siren”, a mulher-elementar de “Stranded” e a mulher-predadora de “For Your Pleasure”.
Em 1968, Ferry trocou Newcastle por Londres. Foi já na capital inglesa que ensaiou os primeiros passos com o baixista Graham Simpson. Ferry tocava piano e órgão de pedais. O seguinte a entrar foi o guitarrista Roger Bunn, de imediato substituído por David O’List, ex-Nice, o grupo de “rock sinfónico” de Keith Emerson, anterior aos ELP. O trio gravou um par de sessões para John Peel. Andy MacKay chegou pouco tempo depois, introduzido no grupo por outro artista plástico, Tim Head.
MacKay nem sequer tocava saxofone. Na sua bagagem trazia uma formação clássica, um oboé e um sintetizador. Ferry aconselhou-o a ser mais “funky” e a ouvir King Curtis. Mas Andy trouxe ainda consigo um amigo, de ar efeminado e com um gravador constantemente às costas. O amigo, cuja missão, de início, era gravar as actuações do grupo, chamava-se Brian Eno. Do circuito dos clubes chegou Paul Thompson, baterista profissional. Entrou para os Roxy Music através de um anúncio num jornal. Nessa altura já os jornalistas andavam intrigados, como Richard Wiliams, do “Melody Maker”, que arriscou incluir os Roxy na secção “novos nomes que podem quebrar a barreira de som”.
Quando actuaram no 100 Club já se criara o ambiente, simultaneamente retro e futurista, que se tornaria imagem de marca da banda. Perante uma assistência predominantemente feminina enfiada em “hot pants” e roupas apertadas, Ferry experimentava as tácticas do fingimento e da sedução, obedecendo a uma necessidade de estimular não só pela música como visual e sexualmente os fãs. Antony Price teve um papel importante no desenho da indumentária, cheia de brilhos e reflexos, e dos penteados, cortados rente e esculpidos em brilhantina, dos cinco Roxy Music.
O choque maior, porém, foi causado pela música. “Roxy Music”, o disco de estreia, com data de 1972, incluía já o novo guitarrista Phil Manzanera, antigo companheiro de Robert Wyatt nos Quiet Sun. Inclassificável, o álbum misturava o rock ’n’ roll dos anos 50, a pop dos 60 e o Progressivo dos 70 com o minimalismo e a experimentação mais ousada. Em estúdio sucederam-se os malabarismos e os truques em nome da originalidade e da provocação. O tema de abertura, “Re-make/re-model” é todo um enunciado dos propósitos musicais dos Roxy Music, uma sucessão alucinante de estilos, quase numa montagem em “cut up” que termina com solos, não menos vertiginosos e concisos, de todos os músicos. O refrão era a entoação de uma matrícula de automóvel, a célebre “CPL 593 H”. Os ruídos iniciais, de uma festa, indiciavam já, por seu lado, o universo concentracionário onde Ferry se viria a enclausurar após o crepúsculo do primeiro período da banda, cujo ciclo encerraria em 1976, com o álbum ao vivo “Viva!”.
Na Island, etiqueta na qual “Roxy Music” acabou por ser editado, começaram por torcer o nariz à proposta, inovadora em demasia, dos Roxy Music. Algo espantoso, para quem acolhia nessa época nas suas fileiras a nata do Progressivo e um grupo como os King Crimson. Cite-se, a propósito deste grupo, que em 1970 Bryan Ferry esteve prestas a tornar-se no substituto de Greg lake como cantor da banda de Robert Fripp. Este afirma ter ainda em seu poder as fitas com as gravações dos ensaios. De referir também que outro dos candidatos ao lugar de voz principal dos Crimson foi Elton John…
Os King Crimson tiveram, aliás, uma proximidade estreita com os Roxy nos anos da gestação. O produtor de “Roxy Music” foi Peter Sinfield, letrista dos Crimson até ao álbum “Islands”. Há quem critique o seu trabalho, por não ter feito justiça à excitação e coesão instrumental que caracterizavam as prestações ao vivo do grupo de Ferry, Eno e Manzanera. O próprio Sinfield assume os seus erros, chegando mesmo a admitir que os Roxy Music não precisavam de um produtor mas apenas de um engenheiro que lhes garantisse um “som decente”.
O álbum seguinte, “For Your Pleasure”, é para muitos, Ferry incluído, o melhor de sempre da banda. Abandonado o lado “kitsch” e a tónica do excesso, a música abre as portas ao que o jornalista Tony Palmer, do “The Observer”, chamou então o “lado obscuro do rock ‘n’ roll”. Da cena nocturna nas traseiras da cidade retratada na capa – com a mulher e a pantera, ambas de negro, à espera da vítima – até à narrativa de uma relação amorosa com uma boneca insuflável, no crescendo semideclamatório de “In every dream home, a heartache”, “For Your Pleasure” puxa para o abismo e para as conotações eróticas obscuras. Arrepiante e, ao mesmo tempo, de um humor refinadíssimo é o clímax final do referido tema: “I blew up your body, but yu blew my mind!”, jogando com a ambiguidade dos verbos “soprar” e “explodir” (‘eu fiz explodir o teu corpo, mas tu insuflaste – ou fizeste explodir – o meu espírito’).
“Stranded” explora a vertente de “crooner” de Ferry, como na paródia ao festival da Eurovisão, “Song for Europe”, só que aqui ainda mantendo a distância e a pose irónica, ao contrário do que acontece a partir de “Manifesto” e dos seus álbuns a solo mais recentes, onde a imagem se confunde com a pessoa e Ferry passa a levar a sério uma personagem que no início não pretendia ser mais do que uma caricatura. “Country Life” anuncia já a decadência “chique”, num álbum de ressacas, entre a ilusão do “Champagne” e a excitação fugaz da cocaína, com Ferry a sofrer precocemente a angústia do envelhecimento e da andropausa, numa fuga para a frente, em direcção ao sexo sem futuro nem freio, dramaticamente exemplificada no tema “Casanova”. A idade de ouro culminaria com “Sirens”, um álbum desvalorizado por muitos, mas onde se encontra um dos melhores lotes de sempre de canções dos Roxy.
Depois, seria o ponto final e a ressurreição, em 1979, para a segunda vida, da maturidade e da elegância. Mas esses eram já outros Roxy Music e outro Ferry, tão atentos à evolução do mercado como à sua própria interior. “Manifesto”, “Flesh and Blood” e “Avalon” fizeram as delícias dos adolescentes e das rádios de todo o mundo, servindo de cobertura a reuniões de negócios, anúncios de televisão e repasto geral dos “tops”, com Ferry, cada vez mais gordo e ar de galã saloio, no papel de “gigolo” engatatão que a sabe toda. Mas tomara todas as bandas decair e morrer com a dignidade dos Roxy Music. “The party is over?” Nunca se sabe.



Nico – “Miss Viagem Da Morte Da Câmara Obscura” – artigo de opinião e discografia

Pop Rock

7 de Junho de 1995

MISS VIAGEM DA MORTE DA CÂMARA OBSCURA


nico

Philippe Garrel continua vivo e a fazer cinema. Nico, a “deusa da lua”, como Andy Warhol lhe chamou um dia, deixou a vida na berma de uma estrada. Em Julho de 1988, em Ibiza, num dia de Verão, encontraram-na caída ao lado da sua bicicleta.

A exibição de “O Berço de Cristal” (“Le Berceau de Crystal”), incluída na programação dos Mistérios de Lisboa, foi cancelada, por “motivos de ordem pessoal”, invocados pelo seu realizador, Philippe Garrel. Em sua substituição, será exibido “Le Lit de la Vierge”, de 1969, primeira colaboração entre o cineasta francês e a cantora e actriz germânica. De Garrel e Nico, poderemos ainda ver “La Cicatrice Intérieure”.
“Le Berceau de Crystal”, o tal que o cineasta insiste em manter interdita a sua exibição, merece uma menção. É um filme simultaneamente belo e perturbante. Tivemos a oportunidade de o ver há muitos anos numa “segunda matinée” especial no cinema Nimas. À saída não eram poucos os rostos que ostentavam sinais visíveis de perturbação, de tal forma o filme consegue criar uma atmosfera de opressão e tragédia. Dele recordamos a ausência de quaisquer diálogos (a única voz humana que se ouve é precisamente a de Nico, a declamar um poema), os vermelhos, roxos e dourados carregados e a banda sonora, assinada por Manuel Göttsching, guitarrista e compositor de música electrónica berlinense e um dos expoentes da “Kosmische muzik” alemã do início dos anos 70. Mas recordamos sobretudo o terrífico ruído final, quando a música, uma longuíssima “mantra” de sonoridades planantes e pretensamente elevatórias é cortada pelo som seco de um tiro de pistola. Talvez assim se compreenda melhor as razões da interdição da sua exibição pelo seu autor, se recordarmos as palavras, proferidas nessa época: “Faço filmes para não me suicidar.”
Philippe Garrel continua vivo e a fazer cinema. Nico, a “deusa da lua”, como Andy Warhol lhe chamou um dia, deixou a vida na berma de uma estrada. Em Julho de 1988, em Ibiza, num dia de Verão, encontraram-na caída ao lado da sua bicicleta.
Não vimos mais nenhum filme de Nico, realizado por Garrel. Mas podemos fantasiar sobre “La Cicatrice Intérieure”, cujas canções foram retiradas do álbum da cantora “Desertshore”. A capa, uma imagem do filme, mostra-a em pose de abandono, montada numa mula, guiada por uma criança, cuja voz imaginamos ser a mesma que canta na pseudo-“nursery rhyme” “Le petit chevalier”. “Je suis le petit chevalier, j’ irais te visiter”, diz a voz infantil e, em vez de ternura, sentimos um arrepio.
Nico, de seu nome verdadeiro Christa Pavlovski, depois Paffgen, nascida em Colónia em 1939, notabilizou-se por ter feito parte dos Velvet Underground, nos anos de 1966 e 1967, por vontade de Andy Warhol, que queria contrabalançar, nos espectáculos ao vivo do grupo – então, a orgia “multimedia” “The Exploding Plastic Inevitable” -, a imagem “feia” projectada por Lou Reed. Sem ela, o mítico álbum da banana, “The Velvet Undergound & Nico”, seria sem dúvida algo diferente. Menos luminoso. E menos gélido.
Antes dos Velvets, Nico desempenhou por algum tempo vários papéis. Foi amante de Bob Dylan, manequim, em Ibiza, com o nome Nico Otzak, apareceu na TV no programa Ready. Steady. Go! e gravou um “single”, “I’m not saying”, em 65, com Jimmy Page e Brian Jones. No cinema, estreou-se como actriz secundária no filme de Fellini, “A Doce Vida”, seguido de “Strip Tease”, de J. Poitrenaud.
Depois da saída dos Velvets, assinou uma série de álbuns a solo, onde impressiona sobretudo a sua personalidade fatalista (o termo “mulher fatal” ganha na sua pessoa um significado especial…) em canções que anteciparam a estética “gótica”. Nos espectáculos ao vivo que realizou, em que se fazia acompanhar pelo seu inseparável “harmonium” (órgão de pedais), não era só a voz mas a sua figura, vestida de negro, e o seu rosto lívido que causavam calafrios. Alguém que assistiu a um dos seus raros concertos a solo, em 1974, na catedral de Reims, em França (onde, na mesma ocasião, também tocaram os Tangerine Dream…) jura que durante a actuação viu o rosto da cantora transformar-se numa caveira. Já nos anos 80 fez as primeiras partes de concertos dos Siouxsie and the Banshees. No ano da sua morte, foram os Sugarcubes que fizeram a primeira parte dos seus.
John Cale esteve alguns anos a seu lado, ajudando-a a gravar os álbuns “The Marble Index”, “Desertshore” e “The End”. Já no final de carreira, os The Faction, um duo carregado de percussões electrónicas, cumpriram a mesma função, daí resultando o álbum “Camera Obscura”, um dos melhores de sempre da cantora.
Cumprida uma vida de excessos, encharcada em “valiums” e na heroína, e de mistério, está por escrever a verdadeira biografia de Nico. Todas as que foram escritas até hoje sobre ela debateram-se com a falta de dados e a dificuldade extra de ela própria se ter escudado durante toda a sua vida em declarações contraditórias. Costumava dizer, por exemplo, que era uma “nazi anarquista”, embora o pai tivesse morrido num campo de concentração. A morte, sempre presente em toda a sua vida – além de “deusa da lua”, havia também quem lhe chamasse “Miss death trip” -, veio por fim buscá-la. No tal dia de Verão em Ibiza que imaginamos cheio de sol.
Sobre o consumo de drogas e de si própria, Nico disse uma vez: “Prefiro tomar drogas e ser encarcerada numa instituição. Sou uma niilista, portanto gosto de destruição, tenho que admiti-lo, mas tem que haver uma razão qualquer para uma pessoa não se autodestruir.”
Vamos voltar a vê-la envolta na luz negra do cinema de Garrel.

NICO NOS FILMES
DE PHILIPPE GARREL

Cinema Monumental, Lisboa
“Le Lit de la Vierge”
Domingo 25 – 24h
Segunda 26 – 15h
“La Cicatrice Intérieure”
“Athanor”
Quarta 14 – 15h
Sexta 23 – 24h

DISCOGRAFIA OFICIAL (álbuns)

Com os Velvet Undergound:
“Velvet Undergound & Nico”, 1967

A solo:
“Chelsea Girl”, 1968
“The Marble Index”, 1969
“Desertshore”, 1971
“The End”, 1974
“June I, 1974” (ao vivo, com Kevin Ayers, Brian Eno e John Cale), 1974
“Drama of Exile”, 1981
“Live in Denmark: The Blue Angel” (ao vivo)
“Camera Obscura”, 1985
“Behind the Iron Curtain” (ao vivo), 1986
“Last Concert-Fata Morgana”, 1994

Como actriz:
“La Dolce Vita”, de Federico Fellini, 1959
“Strip Tease”, de J. Poitrenaud,
“Chelsea Girls”, de Andy Warhol, 1966
“Le Lit de la Vierge”, de Philippe Garrel, 1969
“La Cicatrice Intérieure”, de Philippe Garrel, 1970
“Athanor”, de Philippe Garrel, 1972
“Les Hautes Solitudes”, de Philippe Garrel, 1974
“Le Berceau de Crystal”, de Philippe Garrel, 1975



Pascal Comelade – Entrevista a propósito de concerto em Lisboa

Pop Rock

1 de Novembro de 1995
ENTREVISTA A PASCAL COMELADE

MEMÓRIAS DE UMA BAILE DEGENERADO


pc

Pascal Comelade é único e inclassificável. A sua música gira em torne de géneros esquecidos ou menosprezados. “Música de baile degenerada”, como ele próprio a define. Embora não procure ser o “Jimi Hendrix do piano de brinquedo”, as suas notas remetem para um universo de magia e de anacronismos. Miniaturas musicais moídas por uma máquina de fazer café.

Os seus álbuns são colecções de gravuras cobertas pela “patine” de outras eras. Canções esquecidas de Robert Wyatt, Jonathan Richman, Tim Buckley ou dos Yardbirds encostam-se a uma partitura nostálgica de Nino Rota ou a um arrebatamento romântico de Consuelo Velásquez. Pascal Comelade folheou para o PÚBLICO as páginas do seu álbum de recordações.
PÚBLICO – Num dos seus álbuns, “Détail Monochrome”, há um tema intitulado “Petite mélodie”. O conceito de “miniaturização”, desempenha um papel central no seu método de criação?
PASCAL COMELADE – Imagino, como “miniatura”, uma certa forma de pequena arquitectura dos arranjos musicais, um certo despojamento (ir ao encontro do essencial) que pode ser encontrado na época dourada do rock’n’roll inglês, nos Kinks ou na sublime utilização das quatro pistas em “Sergeant Peppers”. Daí a minha tendência para compor temas muito curtos. Outra referência é uma compilação histórica, “Miniatures” [N.R.: organizada por Morgan Fisher], com peças que não ultrapassam um minuto, incluindo a esplêndida “História do rock’n’roll”, por um elemento dos XTC. Há ainda o famoso mal-entendido do “minimalismo”. Dever-se-á falar de “minimalismo” a propósito da pré-história do rock’n’roll, em que era utilizado um mínimo de instrumentação (baixo, guitarra, bateria reduzida)? E quando se toca com um mínimo de notas? Houve alguém – Satie? – que disse: “Pode fazer-se tudo com um ‘fá’!” Refiro ainda a escola de “minimalismo” inglês, na época da série “Obscure”, de Brian Eno, com os primeiros registos de Gavin Bryars, Harold Budd, Michael Nyman, etc. Esquece-se facilmente também o trabalho de Moondog sobre o jazz e a música clássica. E John Cage, evidentemente. Enfim, pode pôr-se em prática um “resumo musical”, através da digestão, depois de uma filtragem? Música para máquina de fazer café?
P. – A mesma ideia está presente num título como “Haikus de Piano”, o “haiku” entendido como miniatura poética que ultrapassa a simples lógica racional. Serão as suas canções “haikus” musicais?
R. – Existe efectivamente uma influência literária mas, mais do que o “haiku” japonês, trata-se de um paralelo com o leitor que não leria mais do que a primeira ou a última página de um livro, o resumo, o prefácio ou o título…
P. – E a utilização de instrumentos de brinquedo, tem de facto necessidade da sua sonoridade? A música não sobreviveria sem eles?
R. – Os brinquedos são utilizados pela sua sonoridade, misturados ou não com instrumentos convencionais. Não tenho, à partida, qualquer teoria para justificar a sua utilização. Tento tocar num piano de brinquedo como se fosse um piano a sério. Para um pianista limitado, como é o meu caso, torna-se um exercício físico bastante interessante. Mas não há uma utilização sistemática. O mais importante é a prática musical, o tratamento e o resultado final. Não procuro ser o Jimi Hendrix do piano de brinquedo.
P. – O “El Primitivismo” de outro dos seus álbuns?
R. – Primitivismo, no sentido de uma prática instintiva, de ouvido, de amadorismo, de autodidactas ou de situações ligadas ao acaso. Trata-se simplesmente da utilização intemporal de músicas populares de todos os tempos, sem a perspectiva de coleccionismo nem a triagem de um esteta: jazz antigo, rock’n’roll dos anos 60, músicas de filme, canção italiana, por exemplo, mas sem me limitar a um passado nostálgico.
P. – A denominada “música mecânica”, das caixas de música e dos realejos, faz parte do seu imaginário musical?
R. – A influência maior verifica-se ao nível das percussões. A “música mecânica” ancestral não é mais do que Kraftwerk acústico! As músicas de feira, de circo ou de fanfarra têm a capacidade de poetizar o instante.
P. – A sua música é inseparável dos títulos. Há alguma ligação directa entre ambos, ao nível da composição?
R. – Puro método de paranóia-crítica! [N.R.: uma invenção do surrealista Salvador Dali.]
P. – “Bel Canto” é o título de um dos seus álbuns e a designação do seu grupo actual, apesar de a sua música ser quase exclusivamente instrumental. É o gosto pela ironia e pelo paradoxo?
R. – É isso exactamente! A vingança de um afónico perpétuo!
P. – Embora camuflado, o rock’n’roll também integra o lote das suas referências, ou trata-se ainda aqui de um paradoxo?
R. – Tento não passar a vida a acumular citações. Procuro fabricar artesanalmente a minha própria linguagem. As referências e os gostos pessoais não são forçosamente influências e vice-versa. De qualquer forma, não é um paradoxo, sou de facto um velho fã de rock’n’roll, de Elvis a Alan Veja, dos Pretty Things aos MC5. Por outro lado, gosto dos músicos que souberam criar um discurso individual, idiossincrático e único, como Thelonious Monk, Sun Ra, Captain Beefheart ou Robert Wyatt.
P. – Por que motivo grava tantos álbuns de uma compilação que, em última análise, não o são, uma vez que mistura temas antigos com originais e novas versões? Para o público, pode ser um bocado confuso…
R. – Aprecio bastante essa noção de “confusão”. Eu próprio sou confuso! Há muito tempo que deixei de analisar ou teorizar sobre a minha prática musical. Os únicos aspectos em relação aos quais permaneço crítico são a encenação, as leis do espectáculo e de distribuição da mercadoria. Não sou um cínico, mas procuro distinguir o “bom” momento do “melhor” momento. Dá muito trabalho, não dá? Enfim, não me preocupo em saber o que é novo e o que é velho.
P. – “Traffic d’ Abstractions”, ainda o título de um dos seus álbuns, pode ser um resumo perfeito de toda a sua música. Concorda?
R. – Os títulos dos álbuns são, em cada caso, uma tentativa de qualificar a tal prática musical que, no fundo, não é mais do que música de baile degenerada. Daí “Traffic d’ Abstractions”, “Cabaret Galactique”, “El Primitivismo” ou “Détail Monochrome”…

PASCAL COMELADE COM BEL CANTO ORCHESTRA, SÁBADO, DIA 4, TEATRO DE SÃO LUIZ, LISBOA, 22H00