PÚBLICO DOMINGO, 23 DEZEMBRO 1990 >> Cultura
Annette Peacock deu concerto único em Lisboa
Fogo que arde sem se ver
Arde devagar a música de Annette Peacock, em combustão lenta.
O concerto de anteontem à noite na Aula Magna da Universidade de Lisboa foi assim – o contacto de uma voz lânguida que se elevou, devagar, de um corpo esguio e hierático, até à abóboda do firmamento.
Ao contrário do fogo, cuja queimadura é instantânea, o gelo leva o seu tempo para fazer arder. Mas queima na mesma. Vestida de negro, sapatos de salto alto, chapéu a envolver os cabelos escuros, a cantora americana Annette Peacock surgiu na sala como uma estátua, gelada e distante. Surgiu só e só permaneceu durante os primeiros temas – um sintetizador e uma voz.
A máquina falhou logo de início (também ela gelada, como calmamente explicou). A voz, essa, desde as primeiras notas levantou voo. Annette canta o mundo inteiro, filtrado pelo eterno feminino. O poder, o sexo, o poder do sexo e as perversões do poder político, as relações entre os seus atores, são dissecadas ao ponto de se poder, de novo, recuperar sem vergonha o conceito de “mensagem”.
Annette Peacock não vai ter com as pessoas. Espera que estas venham ter consigo. Assim tem sido sempre, assim continuará a ser, enquanto tiver voz e o universo para cantar. Quando ocorreu a já citada falha técnica no sintetizador, limitou-se a pedir à assistência para esperar. Esta, numerosa, embora não suficiente para encher a sala, paciente, esperou. Ninguém se enervou. O tempo não existe.
Aos poucos, foram entrando em palco os restantes músicos: Michael Mondesir (baixo) e Simon Price (percussão), primeiro. Finalmente Amit Mukhergee, o guitarrista. Acelerou-se a velocidade do degelo. A teia enfeitiçante aprisionava atenções e emoções. A estátua não mexia um músculo. Mas a voz e a dança das mãos sobre o teclado ardiam cada vez com mais fulgor. Só o homem da guitarra, de longa cabeleira como já não se usa, se entusiasmava por fora, pulando sobre o palco.
Sensação, para muitos de estranheza, aumentada por “Memory Is”, com as suas armadilhas circulares, a voz sintetizada repetindo “remembering” e a outra, a mesma, procurando fugir à prisão das imagens e das palavras inacabadas. O risco, como ela gosta. A aventura. E logo a seguir “We Are Adnate” (“estamos ligados”) – “o inimigo real é a natureza humana/(…)/não nos podemos permitir ser pacientes nem acomodarmo-nos por mais tempo à mentira/desta vez não temos um futuro infinito à nossa frente”, a guitarra desvairada, acentuando o dramatismo das palavras, de “Abstract Contact”.
A autora de “Sonhos X” funciona como um recetor de energia. Percorrem-na fluxos ora negativos, ora positivos. Antena. Eixo. Espada. Em palco, a horizontalidade do teclado cruza-se com a verticalidade aprumada do corpo. Como uma cruz, por cujo centro tudo flui e passa. É por aqui que se pode e deve avaliar o sentido da arte e postura da cantora – centro extático de um turbilhão por si gerado, sem a atingir. Movimento de projeção centrífuga, de dentro para fora, do silêncio para a vertigem dos significados. As emoções nascem da impassibilidade, a energia eclode da quietude.
O próprio jogo instrumental dos restantes músicos resolve-se nesse jogo de tensões, construídas a partir de pequenas frases, súbitas pulsões, numa estrutura paradoxalmente sólida e precária, desfeita imediatamente após a cessação dos sons. Explosão-implosão – respiração que deu vida ao concerto da Aula Magna.
Em “Pride” (de “Sky-Skating”, talvez a sublimação apoteótica da sua arte), a voz apoiou-se no registo de vibrafone do sintetizador, acentuando o tom vibrátil da interpretação. Não é só o tempo que é vencido por Annette Peacock. A gravidade também. Momentos altos foram ainda “Taking It as It Comes” e “Still Too Far”, cabais demonstrações de que força não é sinónimo de violência. O clímax atingiu-se com a sequência “Lost In Your Speed” e, à sua maneira, o “rap”-manifesto, “Elect Yourself”, longos minutos em que a palavra derrubou os preconceitos e, pela gramática, o mundo se reconstruiu de novo.
A assistência pediu mais. Annette consentiu mas avisou, no seu tom calmo, que seriam apenas dois “encores”. Assim foi, com “My Mama Never Taught Me How to Cook” (de “X-Dreams”) e “Express Yourself”. Não se sabe se os presentes, rendidos, seguiram o conselho. O gelo tinha derretido. Ficava a noite, ardendo em fogo lento.