Arquivo mensal: Abril 2017

Anamar – “M”

Sons

3 de Outubro 1997
DISCOS – PORTUGUESES

Anamar
M (7)
RCA, distri. BMG


m

Dez anos passaram sobre a edição de “Almanave”, oito sobre “Feia-bonita”. A seguir, o silêncio e o recolhimento, quebrados por esporádicas aparições como actriz. Numa delas (“O Ensaio”, de Jean Anouilh), Tiago Torres da Silva, produtor de “M”, sugeriu-lhe que cantasse o fado, revisto sob uma nova luz. Anamar acedeu, ressurgindo transfigurada, por dentro e por fora. “M”, gravado em tempo real numa igreja, é uma oração, interiorização de um tempo e de um lugar que atravessam as idades. “Do coração aqui ao coração além”, como diz uma das canções. O ambiente é, por vezes, de música antiga, de uma reunião secreta no templo. Sente-se que há uma partilha e uma partida, no dar as mãos de todos os músicos envolvidos – André Louro de Almeida, Joaquim d’Azurém, Florêncio de Carvalho, José António Santos e Gabriel Mateus. São temas que flutuam pelas vielas do fado que se canta no mundo astral. Ventos e água e pássaros, ciúmes e beijos vibrando num ar de paixões rarefeitas. Passam por aqui os choros góticos dos Dead Can Dance e os ecos distantes da civilização e da tecnologia. “Os grandes nomes” fixa Laurie Anderson numa onde de esoterismo, “Via láctea” descreve-se a si mesma numa mistura de ciência e misticismo, “Pulsar” é pura música do espaço. Só é pena que a voz de Anamar não tenha, por vezes, a firmeza e focagem exigidas por uma completa exposição à luz. No geral, “M” soa ao que seria um disco de fado gravado na editora Hearts of Space.



Madredeus – “O Paraíso”

Sons

3 de Outubro 1997

Madredeus
O Paraíso (8)
Ed. e distri. EMI – VC


madredeus

Onde fica o paraíso? Em Itália, onde o disco foi gravado? Em Portugal, depois que o menino vier trazer o Quinto Império? No coração dos músicos do grupo? Num comprimido para dormir? As respostas não são, nunca foram, fáceis, quando se trata dos Madredeus. Talvez tudo funcione como um palimpsesto, com níveis de compreensão sobrepostos (ou concêntricos), cada um escondendo e revelando o anterior, numa progressão até ao âmago da música do grupo. Entre o fogo e o vazio. Numa primeira camada, superficial, “O Paraíso” apresenta-se como uma música simples, destinada a descontrair, muito próxima da “new age” e do “easy listening”. Neste aspecto, os arranjos de teclados de Carlos Maria Trindade são exemplares de contenção. Nem a permanente serenidade com que as guitarras de Pedro Ayres e José Peixoto se cruzam para dizer a saudade sugere que na alma destes músicos alguma onda mais alterosa se levante. E, no entanto, algo nos toca. Talvez seja este o principal defeito e a principal qualidade da música dos Madredeus. A proximidade excessiva, a familiaridade com que escutamos estas melodias que parecem nascer dentro de nós. Torna-se fácil distrairmo-nos, olhar para lá do horizonte, reduzindo a música à banda sonora de um sonho. O efeito é o mesmo que provocava a “ambient music” de Brian Eno, uma música na qual se podia entrar e sair a qualquer momento. O fado, ou a morna, em “Andorinha da Primavera” e “Não muito distante”, suspenso nas notas de um falso vibrafone, a influência clássica na suave descida de meios-tons (como em “A tempestade”) em “Claridade”, a canção popular salpicada de maresia e de Renascimento, em “A praia do mar”, a “new age” pura de “À margem”, a valsa de cristal de “Carta para ti” estão unidos numa estética que, cada vez mais, se aproxima da sua essência: O Tempo (sem querer meter Abrunhosa ao barulho…), omnipresente em cada faixa. O Presente, o Passado e o Futuro, o tempo perdido, a passagem ou, pura e simplesmente, a sua suspensão. O perigo, já o dissemos, pode estar na excessiva ternura do embalo, mas, se outras delícias não tivesse para nos oferecer, “O Paraíso” revela-se, de facto, não só nas “Coisas pequenas”, mas, sobretudo, em quatro canções que entram directamente para a lista de clássicos de sempre da música portuguesa: “Os dias são à noite”, “A tempestade”, “O fim da estrada” e “O sonho”, em que a força da composição se casa com rara felicidade com as vocalizações de uma Teresa Salgueiro em estado de graça.



BALANÇO 1997: Música portuguesa – Popular – “O inferno e o paraíso” – Artigo de Opinião

Sons

2 de Janeiro 1998
BALANÇO 1997
Música portuguesa – Popular

O inferno e o paraíso

Para a música portuguesa mais ou menos ligada às raízes tradicionais, em termos editoriais, 1997 foi o ano de algumas confirmações, umas poucas desilusões e, sobretudo, muitas reedições.

Entre o triunfo do segundo álbum dos Gaiteiros de Lisboa, as viagens de dois Martins, o algodão doce dos Madredeus e um certo desencanto que rodeou a dedicatória de Né Ladeiras a Fausto, ficaram as oportunas reedições de trabalhos antigos de Amália, Brigada Victor Jara, Vai de Roda e Ronda dos Quatro Caminhos. E o enigma da não edição do segundo álbum dos Realejo, sabendo-se que o disco está pronto há quase um ano…
A instituição Brigada Victor Jara, de Tentúgal, depois de nos anos transactos terem lançado novos álbuns, respectivamente, “Marcha dos Foliões” e “Polas Ondas”, viram completada este ano, em CD, a sua discografia mais antiga. “Tamborileiro” e “Monte Formoso”, ilustrativos de duas fases distintas do grupo de Coimbra, e “Vai de Roda”, disco de estreia do colectivo do Porto, entraram logo em Janeiro para a lista de candidatos a reedições do ano, enquanto passava despercebido o segundo capítulo de “cante” alentejano dos Ganhões de Castro Verde.
Rui Júnior, maestro percussionista, mergulhou de cabeça no seu projecto de percussões portuguesas para as escolas, com a Expo no horizonte. Árvore que já dá frutos, na contramão ao laxismo habitual que teima em vigorar em Portugal. Cesária Évora, outra árvore, “perfeita como o passado”, deu-se de novo, oceânica, a ouvir, em “Cabo Verde”. Águas de Fevereiro.
Águas de Março escorreram da guitarra solitária de José Peixoto, nas suas “Vozes dos Passos”, pela primeira vez a solo. E o solo de Trás-os-Montes estremeceu, na colectânea, “Mirandun, Mirandela…”, obra de franceses, outra das reedições do ano, a fazer corar de vergonha o nosso desinteresse. Ainda nesse mês, choveu uma nova estrela, que o futuro de encarregará de fazer despontar ou não, Inês Santos, a dar voz ao projecto Segredo dos Deuses. “Graça de Tchega”, de Tito Paris, manteve quente e morna. Que aqueceu ainda mais, já em pleno Verão, com Ildo Lobo e “Nós Morna”. Ildo Lobo e Cesária Évora encontraram-se, ao vivo, no Coliseu dos Recreios, já perto do final do ano.
Morna esteve Né Ladeiras, quando, logo a abrir o mês de Abril, se entregou às canções mais esotéricas de Fausto e à defesa dos lobos. “Todo este Céu”, o álbum daí resultante, veio provar que, afinal, às vezes as “más” companhias dão melhores resultados que as “boas” e que os amigos nem sempre são para as ocasiões. Também morno e amigo do seu tio, com voz frágil e enfiado entre os dentes da engrenagem, esteve João Afonso. As suas “Missangas”, embora coloridas, primaram pela falta de nervo. O seu mítico tio daria um murro na mesa.
No pólo oposto à voz de filigrana de João Afonso, vibrou o tenor telúrico do açoriano José Medeiros, trazendo, por fim, as músicas para filme de “O Feiticeiro do Vento” para o mercado discográfico do continente. Mas os Açores também sabem dar-se a ouvir baixinho, tão baixinho como as “Instrumâncias” oferecidas pelos Almma, que, ao vivo, nos Encontros de Algés, preferiram abrir as goelas e a romaria, espalhando-se ao comprido num registo que não é o do álbum.
Ainda assuntos de família: Gil do Carmo não desmereceu a tradição do seu pai, rompendo embora com o fado, em “Mil Histórias”. “Miséria!”, bradaram aos deuses, ao ouvirem esse mostrengo Adamastor “inventado” a martelo pelos V Império, para meter medo aos Madredeus. O logro não vingou e a única coisa que mete medo em “Mar de Folhas” é a música.
O Império contra-atacou, com não menos pretensões mas, pelo menos, rodeado por uma saudável polémica, através dos Sacerdotes de Alquimia. 1997 foi então o ano dos replicantes e dos segredos mal contados, nessa zona de sombras onde o roxo do gótico casa mal com a brancura da pomba do Espírito Santo.
Do Branco ao Negro é um salto. Dado pelos angolanos African Voices, que em “Freedom”, o seu álbum de estreia, juntaram os espirituais negros com o dialecto angolano. E do negro ao branco é outro salto. De negro se vestia Anamar. De branco se veste agora. Em “M”, letra de mil mistérios, pressente-se a vontade dos astros, tentando dirigir uma voz ainda demasiado selvagem e em busca de uma via aberta do lado de dentro para o lado de fora.
E quando as primeiras folhas tombavam, anunciando o Inverno, o azul chegou. E com ele “O Paraíso”, dos Madredeus, cada vez mais um grupo centrado em torno da voz de Teresa Salgueiro, e aglutinador de paixões extremadas, entre a adoração e a rejeição, quando não estes dois sentimentos sobrepostos. Mas a felicidade, mesmo se servida em pastilhas, ou principalmente porque servida em pastilhas, vende e sacia as almas enfartadas de materialismo. Soa a “new age” a visão cada vez mais retocada de Pedro Ayres de Magalhães, mas as raízes continuam mergulhadas na noite dos tempos.
A viagem, conceito omnipresente na cultura portuguesa, foi retomada de forma inteligente, com uma sensibilidade também ela genericamente rotulada de “new age”, pelo saxofonista Carlos Martins com o guitarrista e teclista cabo-verdiano Vasco Martins. Com “Outras Índias”, a música portuguesa de fusão viajou até uma ilha onde Rão Kyao chegou a atracar, mas que cedo abandonou para se dedicar a voos mais ligeiros pelo seu Oriente pessoal.
Paulo Bragança provou, ao vivo, no Centro Cultural de Belém, que a música tradicional e o fado têm arcaboiço para aguentar o seu vampirismo “kitsch” e a sua comédia de horrores. Sons polémicos por um dos mais mediáticos cultores do escândalo nacional.
De palavras e poemas se alimentou o projecto Os Poetas, que no álbum “Entre Nós e as Palavras” e nas suas apresentações ao vivo restabeleceram o elo perdido – virtual mas não menos belo – entre a poesia e a musicalidade das vozes dos mortos e dos vivos. “Bocas do Inferno”, dos Gaiteiros de Lisboa, demonstrou que a barreira do segundo álbum pode ser ultrapassada sem sobressaltos, quando a criatividade se junta à originalidade e ao método. Um dos álbuns portugueses do ano. Para nós, o melhor. E que tudo mais vá para o Inferno, como, a propósito dele, escrevemos.
“Bum tum pom tchim”. As baterias dos Tim Tim por Tim Tum passaram de esguelha por um tema popular. José Salgueiro e restantes Tintins da bateria poderiam ter batido com mais força. Como bateu José Mário Branco, catedrático da dúvida e da revolta, numa acutilante série de concertos cujo disco deles resultante, “Ao Vivo em 1997”, não faz justiça ao seu teatro da crueldade.
Já ao cair do pano, foi reeditado outro dos momentos mais conseguidos da música portuguesa de raiz tradicional: o segundo álbum da Ronda dos Quatro Caminhos, “Cantigas do Sete Estrelo”, outra das reedições do ano, que em breve será objecto de recensão. Bem como o volume seis da série Música Tradicional, com incidência na “Terra de Miranda”.
Amália e José Afonso, os dois contrafortes da música popular lusitana, fizeram descer a noite. Da primeira, o seu “Segredo” a par de mais uma colecção de material de fundo de catálogo repuseram a sua verdade da música portuguesa. Amália é mãe do nosso fado. O segundo, trazendo para a luz do dia o seu trabalho mais antigo, em forma de “Baladas e Canções” que continuam a ter na poesia a sua arma principal.
Rio Grande e “Vozes e Guitarras”, dois megaprojectos, dirigem-se a um megamercado de um país que é mais melga do que mega. Uns copiam, outros preguiçam, alguns facturam, muito poucos triunfam. E os novos, onde estão?