Arquivo da Categoria: Rock

Paolo Conte – “Tournée”

pop rock >> quarta-feira >> 12.01.1994


Paolo Conte
Tournée
CGD, distri. Warner Music



Senhoras e senhoras, percam a vergonha, a sisudez e os preconceitos e ouçam para nunca mais parar a música de Paolo Conte. O inconfundível, incomparável e inclassificável Paolo Conte, o decadente, o trágico, o da voz tão rouca como o bagaço ou tão terna como um licor. O das varandas e ressacas ao nascer do Sol, dos sonhos de Hollywood sonhados numa viela sórdida abraçados a uma prostituta. “Tournée” apanha o cantor e compositor em grande forma, ao vivo em várias salas durante uma digressão pela Europa realizada entre 1991 e 1993. Estão aqui todas as marcas do seu génio, impressas nas vocalizações de “crooner” que canta em italiano, inglês e francês um mundo com a trama dramática de um filme de Fellini, nos arranjos para “big band” onde as memórias de Benny Goodman e Duke Ellington se cruzam com a cançoneta italiana, os blues, o “boogie woogie” ou simplesmente as canções de amor etilizado que de tão trôpegas inventam para si próprias um estilo inteiramente novo. Com a música de Paolo Conte só há duas hipóteses: ou não se conhece ou, conhecendo-se, fica-se para sempre preso ao seu fascínio. Tocante. (8)

Residents – “O Evangelho Dos Homens Sem Rosto” (livro)

pop rock >> quarta-feira >> 12.01.1994


O Evangelho Dos Homens Sem Rosto

Duas décadas de anonimato. Uma obra ímpar, expressa em conceitos, imagens e discos de pura alucinação / camuflagem / subversão. A música pop e os seus derivados dissecados até ao absurdo. Os autores de tudo isto e muito mais são os Residents, a banda mais estranha do universo. Agora também em livro.



O livro chama-se “Uncle Willie’s Highly Opinionated Guide to the Residents”, é apadrinhado pela Cryptic Corporation (há muito editor e produtora da banda) e historia 20 anos de “anonymous fame”, entre 1972 e 1992, do grupo de cujos membros ninguém conhece os nomes, as vidas ou sequer o número de calçado. Lê-se de um jacto e, no final, fica-se a saber mais e menos sobre eles do que no início. O mistério, tudo indica, permanecerá para sempre inviolável. Sobre o anonimato apetece perguntar como é possível, entre gravações no estúdio e múltiplas operações de “marketing”, manter em segredo os nomes, as profissões, o dia-a-dia destes músicos fantasmas? Entre tantas pessoas que contactam com a banda, não há ninguém que deixe escapar informações? Ninguém sabe nada? Tratar-se-á de uma cabala? No livro avançam-se algumas pistas que servem para baralhar ainda mais a questão.
Progredindo na leitura entra-se aos poucos na catedral da bizarria. “A verdadeira história dos Residents”, primeiro capítulo, assinado por Matt Groening, o criador dos Simpsons, é o bilhete de ingresso nesta viagem no comboio-fantasma, um texto originalmente publicado pelo clube de fãs “oficial” dos Residents, o WEIRD [esquisito, bizarro], ou seja, “We endorse immediate Residents deification” [‘apoiamos a imediata deificação dos Residents’], onde o autor se propõe contar toda a verdade sobre o mito, para logo de seguida dizer que “não existe uma verdadeira história da banda”. “The true Story” é então, como diz o subtítulo, “um breve sumário de factos conhecidos, ‘top secrets’, detalhes nebulosos, alusões veladas e mentiras espalhafatosas”. Segue-se, para aumentar a confusão, uma “Yet Another true Story”, desta feita da autoria de Uncle Willie, pseudónimo de nova personagem anónima que até poderá ser um dos próprios elementos da banda. Abandonada toda a esperança de racionalidade, resta-nos devorar a biografia conhecida e ficar estarrecidos com as fotografias. Das primeiras experiências com gravações caseiras, a teoria da obscuridade (editar um disco apenas quando toda a gente já se esqueceu dele…) e o encontro com o misterioso mestre da fonética, N. Senada, até à manipulação das novas tecnologias interactivas (um CD-ROM baseado no álbum “Freak Show”, de 1991, contendo vários argumentos a que os Residents chamam “novelas gráficas” sobre esta parada de monstros da idade tecnológica – edição prevista para este ano, pela Voyager Company) e filmes de animação realizados para a MTV. Perturbantes são as diversas máscaras e camuflagens com que, ao longo de todos estes anos, os Residents disfarçaram a sua identidade: fatos de camarões, escafandros anti-radioactivos (precaução que utilizaram numa sessão de compras num supermercado, contra possíveis alimentos contaminados…), capuzes ao estilo Ku Klux Klan ou os mais conhecidos globos oculares vestidos de fraque e cartola.
Segue-se pelo labirinto dos discos. Divididos em dois blocos, cada um abrangendo dez anos de carreira. O jogo é infinito, a desmistificação da pop, total. Um humor inspirado nos dadaístas faz de ferramenta para a desmontagem do cenário e artificialidade da pop. Os Residents começaram por destruir a imagem dos Beatles, logo no álbum de estreia, “Meet the Residents”, uma paródia violenta ao quarteto de Liverpool em que se aproveitam do título e da capa de “Meet the Beatles”. Forma deixando outros escombros pelo caminho. Em “The Third Reich’n’Roll” esventram os clássicos dos anos 60. Elvis Presley é crucificado em “The King And Eye”, “The American Composers Series”, uma série de obras dedicadas à memória de compositores americanos, é o veículo onde, à sua maneira, os Residents “homenageiam George Gershwin, James Brown, Hank Williams, John Philip Sousa.
“Mark of the Mole” e “The Tunes of Two Cities”, os dois únicos volumes de uma “The Mole Trilogy” até hoje sem conclusão, narram os combates épicos travados entre toupeiras e humanos, no que pode ser encarado como uma metáfora de múltiplas e perturbadoras leituras. Vídeos de pesadelo, como “Vileness Fats”, tão ou mais arrepiantes de que “Eraserhead” de David Lynch, um tratado sociológico sobre os ritos dos esquimós, “Diskomo” (de que existe igualmente uma versão “disco”), um álbum de “jingles” comerciais, “Commercial Album”, com temas de um minuto cada, a inversão demoníaca da Santíssima Trindade operada em “God in Three Persons” (recorde-se que a estreia absoluta, em 1972, dos Residents coincidiu com a edição do “single” duplo “Santa Dog”, um cartão de Natal em disco (em que é visível o anagrama “santa dog / satan god”, que os Residents enviaram na altura pelo correio, entre outros, a Frank Zappa e ao então Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon), e recuperação de uma banda pop inexistente, em “The Big Bubble”, são outros exemplos que ilustram uma imaginação delirante e uma vontade inquebrantável de mostrar o lado oculto do fenómeno e ideologia pop.
O livro vem acompanhado por um CD colectânea com 25 temas que abarcam os 20 anos de uma ”bad trip” sem igual, de “Santa Dog” ao álbum de 1992, “Our Finest Flowers”. Quem são os Residents? Ser ou não ser, continua a ser a questão.

Art Zoyd – “Marathonnerre I & II”

pop rock >> quarta-feira >> 12.01.1994


Art Zoyd
Marathonnerre I & II
Atonal, import. Contraverso


Poucos grupos além dos Art Zoyd se poderão orgulhar de possuir uma discografia em que não se vislumbra qualquer ponto fraco. Com efeito, esta banda francesa ocupa hoje uma posição privilegiada na música deste século, naquele lugar onde se cruzam todas as épocas e as etiquetas “popular” e “erudita” deixam de fazer sentido. “Marathonnerre” é a nova obra de fôlego dos Art Zoyd, actualmente um trio formado por Thierry Zaboitzeff, Gérard Hourbette e Patricia Dallio, editada em dois compactos separados, composta para um espectáculo “multimédia” do mesmo nome, com 12 horas de duração, apresentado ininterruptamente entre o meio-dia e a meia-noite, segundo coreografia e realização de Serge Noyelle. À semelhança dos anteriores “Berlin” (uma das obras-chave, senão a maior, da música alternativa dos anos 80) e “Nosferatu”, sobre a obra do expressionista alemão Murnau, “Marathonnerre” é uma obra desmesurada com a dimensão mítica de Wagner, a alma presa à memória dos Magma e a disciplina férrea própria dos Laibach. A electrónica e a manipulação dos “samplers” ganham aqui importância crescente, com algumas sequências a recordarem as sínteses electro-étnicas da dupla Musci-Venosta. A música evolui por ciclos amplos, em alternância de tensões e clímaxes instrumentais. Música de câmara do século XXI por uma dupla francesa, Thierry Zaboitzeff e Gérard Hourbette, que é a digna sucessora da parelha, igualmente gaulesa, formada nos anos 70 por Christian Vander e Jannick Top, o núcleo de fogo dos Magma. Fundamental. (9)