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Nick Cave + The Cruel Sea – “O Poeta Carrasco” (concerto – perspectiva)

pop rock >> quarta-feira >> 08.06.1994


O POETA CARRASCO

O “cabaret” tem agora sessões regulares, mas a experiência continua a ser única. Deixe-se entrar o amor ou o que quer que seja que queima. E dói. Nick Cave e os Bad Seeds vêm de novo atormentar Portugal.

Com certeza que não vão aparecer o Pedro, nem a Madalena, alguns dos amigos brasileiros de São Paulo, mas vão estar o compincha de Berlim, Blixa Bargeld, das demolições Neubauten, e Mick Harvey, representante dos Crime & City Solution. Senhoras e senhores amantes dos divertimentos decrépitos, aí está de regresso Nick Cave, o “entertainer” decadente, o diabo atrás da porta, o exemplo do que não queremos que sejam os nossos filhos.
Sim, Nick Cave vem de novo espalhar as suas sementes do mal a Portugal. Dois anos depois dos coliseus de Lisboa e do Porto, o “cabaret” da infâmia volta a abrir portas a este anjo do bizarro que ainda há pouco lançou no mercado nacional um novo álbum de canções, “Let Love In”. Que são “de amor”, diz ele.
Assegura quem já o viu actuar nos últimos tempos que cada espectáculo actual de Nick Cave é uma fotocópia do anterior. Segundo parece, o circo de aberrações tornou-se uma mistura inteligente de simulação e profissionalismo. Os alinhamentos, as poses, as provocações, reproduzem com minúcia um plano previamente delineado. Mas que importa, se o resultado continua a compensar o investimento emocional e a encenação da festa do horror funciona ainda como moeda de troca para mil fúrias e revoltas contidas.
Concedamos, Nick Cave também já não é o mesmo que era nos anos de fogo dos Birthday Party. O australiano intelectualizou-se, como se costuma dizer. Andou a ver bons filmes, de preferência de Wim Wenders, que até lhe arranjou trabalho, a ler bons livros, e chegou mesmo a escrever um, “And the Ass Saw the Angel”, que é como quem diz, na tradução portuguesa, “E o Burro viu o Anjo”. O carrasco virou poeta.
Depois, Cave viajou muito. Descobriu outros cenários desolados. Outros desertos além dos da Austrália e dos seus próprios interiores. Dos lugares por onde passou, Nick Cave reteve sobretudo Berlim. A sua tradição do “cabaret”, as suas ruínas e memórias de destruição, o seu passado cortado ao meio e finalmente reunificado num mutante monstruoso e sedento de Ocidente. Em São Paulo, encontrou Cave uma espécie de paz podre, a sintonia tropical com as forças da Natureza, a sensualidade hedonista sem culpa nem pecado, à flor da pele.
Nick Cave forjou então novas máscaras e envergou trajes elegantes. Tornou-se evangelista e pregador, um moralista em que não custa muito não acreditar. O sussurro abraçou o grito. Para trás, não tanto como possa parecer à primeira vista, ficaram as labaredas do inferno dos Birthday Party, substituídas por uma nova consciência e maneira de cantar as coisas. Nascia o “crooner”, o contador de histórias cheias de ambiguidade, o existencialista pós-moderno que cultiva com requinte a autodestruição, mas apenas no papel. Antes a vida doía a Nick Cave. Agora compete-lhe descrever com toda a arte que for possível os princípios metafísicos da dor.
Não que isso seja o mais importante. Nick Cave pode até transformar-se, o que decerto não é o caso, no rei dos hipócritas que tal não anula que “Let Love In” seja um álbum magnífico, talvez um dos seus melhores de sempre. Digamos antes que, pese embora a queimadura imediata provocada pelo metal em brasa de algumas faixas do novo álbum, a idade ensinou a este fabricante de sonhos empestados ema forma mais melíflua e insinuante de fazer passar o niilismo da mensagem.
O diabo, já tivemos oportunidade de o dizer várias vezes, é inteligente e sabe adaptar-se com rapidez à alteração das situações. Essa é de resto uma das suas maiores aptidões. Nada melhor então do que acenar com uma carta de amor na mão ou soltar um lancinante “perdoa-me!” para nos convencer de que o demónio se transfigurou num anjo. Mas que ninguém se iluda. Ontem como hoje, ouve-se Nick Cave por própria conta e risco.



NICK CAVE + THE CRUEL SEA
10 de Junho, Coliseu dos Recreios, Lisboa
11 de Junho, Coliseu do Porto

Os Sons Da Fala + Pedro Abrunhosa – “9 de Junho, Praça Velha de Coimbra, 21h00”

pop rock >> quarta-feira >> 08.06.1994


FUSÕES LUSÓFONAS

OS SONS DA FALA + PEDRO ABRUNHOSA
9 de Junho, Praça Velha de Coimbra, 21h00



Coimbra vai ser palco, dia 9 de Junho, das Comemorações do dia de Portugal, que por acaso até é o dia 10. Vai ser na praça velha da cidade, Às 21h, e Vitorino será o director musical de um espectáculo de genérico “Os sons da fala”, baseado na música dos vários países de língua portuguesa (incluindo a Galiza e o português antigo) e com uma série de convidados especiais. De África virá um quarteto constituído por Manuel Paris, no baixo eléctrico, João Ferreira, na percussão, Zezé Barbosa, na guitarra eléctrica, e Toy Paris, na bateria, que fará o suporte musical da representação portuguesa, formada por Vasco Gil, no sintetizador, Jacinto Ramos, tuba, Jorge Reis, saxofones alto e soprano, Carlos Salomé, adufes e cavaquinho, Edgar Caramelo, saxofone tenor, e Tomás Pimentel, arranjos de metais, trompete e filiscórnio. A lista de convidados é apelativa. Bana e Tito Paris representam Cabo Verde. O primeiro interpretará a morna “Ondas sagradas do Tejo” e uma canção do seu reportório. Uxia, a cantora galega mais portuguesa de todas, virá cantar uma canção de José Afono, “Se voaras mais perto”, acompanhada por Filipa Pais, a tocadora de gaita galega Maria José, dos Muxicas, e os três irmãos Salomé, em adufes.
Waldemar Bastos vem de Angola para interpretar o fado “Foi Deus” e André Cabaço, de Moçambique, fará o mesmo em “Diana”, um tema com letra de António Lobo Antunes. Ambos vão cantar mais duas canções dos respectivos reportórios. O Brasil faz-se representar por Carlos Lyra e os portugueses convidados são Janita Salomé, com mais duas mornas, “Saudade de Cabo Verde” e “Maria Bárbara”, e Filipa Pais de novo a fazer os apoios vocais. Sérgio Godinho completa o lote dos portugueses presentes em “Os sons da fala”.
Vitorino explica as razões de escolha do local – “Coimbra era a capital cultural do Império” – e o sentido geral do espectáculo: “Vão estar presentes em grande força cantores da lusofonia portuguesa dos PALOP a cantar nas suas línguas e nos seus dialectos, nos seus crioulos. Vai ser um som luso-africano, até porque a banda principal é mista. Uma verdadeira fusão. Fala-se hoje muito em fusão, mas a gente não só fala como a vai tornar real.”
Das funções entregues a Vitorino fazem parte “a coordenação de todo o projecto”, incluindo a organização, a sequência do espectáculo, o endereço de convites, enfim, o pôr em prática todas as ideias e sugestões. Em colaboração com Paulo Pulido Valente. Vitorino apenas lamenta a não participação de um convidado que estava nas suas intenções trazer a Portugal: “Convidei um indiano de Calecute que não pode vir porque tem um trabalho em Toulouse. É pena, porque Calecute foi o primeiro ponto tocado por Vasco da Gama na sua viagem à Índia. Vamos ter dificuldades em arranjar indianos. Ainda só não temos músicos da Ásia.”
Uma curiosidade relativa a “Os sons da fala” é que, segundo Vitorino, “será tudo ao contrário. O Janita vai cantar em crioulo, todos os cantores vão cantar depois uma canção do Zeca Afonso, em português, mas a norma vai ser os portugueses cantarem em crioulo”.
Antes de “Os sons da fala” outros sons soarão em Coimbra, dos actualmente muito falados Pedro Abrunhosa e Bandemónio.

Toni Childs – “The Woman’s Boat”

pop rock >> quarta-feira >> 01.06.1994


Toni Childs
The Woman’s Boat
Geffen, distri. BMG



Mais uma rapariga cheia de convicção que a aposta na cartada do feminismo místico (o arquétipo da mulher guerreira, a terra-mãe, a nova criança que há-de nascer, “o espírito feminino que habita em cada ser vivo”, etc.), embora a capa seja claramente menos mística, com o género de imagens que Kate Bush já havia explorado no recente “The Red Shoes”: frutos carnudos abertos e fervilhantes de sementes, uma flor-vagina, gineceus, enfim, a flora sexual como símbolo do poder no feminino. Algumas semelhanças e anacronismos de estilo colocam Toni Childs no mesmo plano de heroínas dos 70 como Grace Slick, Melanie e Buffy St.-Marie, pioneiras na militância feminista. “The Woman’s Boat” – viagem de um ser humano do nascimento até à morte – começa cheio de força, com inflexões à Marianne Faithfull e incursões no experimentalismo da solagem e “samplagem”, em “Womb”. Há uma aposta forte no exotismo das sonoridades, com particular incidência na música indiana e nas rítmicas tribais. Não espanta, por isso, a presença neste disco de convidados como as Zap Mama e Nusrat Fateh Ali Khan, ao lado da guitarra e “fripertronics” de Robert Fripp (bem como Trey Gunn, acompanhante do ex-King Crimson no seu recente álbum com quinteto de guitarras), sem esquecer as colaborações de Karl Wallinger, dos World Party, Martin Tillman, dos Siouxsee & The Banshees, e Kate St.-John, companheira habitual de Roger Eno. Quanto a Peter Gabriel – presente até porque “The Woman’s Boat” foi gravado nos estúdios da Real World -, faz, no dueto amoroso com Toni, “I mete a man”, a mesma figura de parvo que já havia feito em idêntico “sketch” com Kate Bush, em “Don’t give up”. Demasiado obcecada na contemplação do umbigo, a música de Toni Childs acaba por fatigar na medida em que os temas, entre o falso étnico e o manifesto feminista, não conseguem sobreviver para além da tal aura de exotismo. Toni Childs é, no fundo, uma “hippie” recauchutada e “The Woman’s Boat” um grito que, infelizmente, acaba por não ter muito eco. (6)