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Egberto Gismonti – “Infância”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


EGBERTO GISMONTI
Infância
CD, ECM, distri. Dargil



O pecado de Egberto Gismonti é querer parecer europeu. Em “Infância”, o músico perde muito da magia a que nos habituara em trabalhos anteriores à fase ECM e parte do fulgorbita ainda obras já gravadas com o selo alemão. Aqui a intuição dá lugar a um discurso mais analítico, mesmo quando títulos como “A fala da paixão” ou “O amor que move o sol e outras estrelas” parecem sugerir o contrário. Álbum de progressões lentas e de assumida contenção, “Infância” prova que o reconhecido virtuosismo instrumental de Gismonti, ao piano ou na guitarra acústica, por si só não chega para entusiasmar, soando forçado e perdendo-se não poucas vezes em exercícios de estilo destituídos de chama interior, como acontece nas danças finais, nºs 1 & 2, ou na construção dos edifícios harmónicos com o violoncelo de Jacques Morelenbaum, falhos de originalidade e de inspiração. Bastante mais compensador é escutar Gismonti em “Kuarup” – reeditado ao mesmo tempo que esta “infância” desvalida que até vai buscar, na capa, um poema de Pessoa – encontro do músico com as raízes e o mistério da tradição e cultura do povo Xingu da Amazónia. Onde as águas e o génio fluem com a naturalidade que só a convivência com a verdade permite. (6)

Chico Buarque De Hollanda – “Chico Buarque Fala De ‘Estorvo, O Seu Primeiro Romance – ‘Talvez Eu Tenha Vivido O Pesadelo'”

Secção Cultura Terça-Feira, 12.11.1991 (entrevista)


Chico Buarque Fala De “Estorvo”, O Seu Primeiro Romance
“Talvez Eu Tenha Vivido O Pesadelo”


“Estorvo” representa a estreia “a sério” de Chico Buarque na literatura. No Brasil o aplauso foi unânime. O romance, que obrigou o seu autor a abandonar a música por mais de um ano, conta-nos uma história interminável de fuga e alienação. O livro encontra-se à venda em Portugal desde o final da semana passada.



Metáfora ou não, “Estorvo” incomoda pelo tom obsessivo da personagem principal, à deriva num universo de violência que o autor não deixa de comparar ao Brasil. Ao longo de uma narrativa em que a musicalidade da escrita está sempre presente, é todo um desfilar de fantasmas e desencontros que termina na morte. Mas o autor prefere falar da forma e das virtualidades da linguagem. O “filme-nefro” confunde-se com o romance psicológico.
PÚBLICO – “Estorvo” é um livro em que se nota um grande pessimismo, um tom desesperado, mesmo. Esse estado de espírito corresponde a uma fase da sua vida?
CHICO BUARQUE – Eu não me identifico a tal ponto com a personagem do livro. O tom geral é certamente de pessimismo. Talvez eu seja um pouco pessimista, se não tiver a música por perto.
P. – Mas houve alguma situação concreta que o angustiasse nessa altura?
R. – Talvez eu tenha vivido o pesadelo, durante a ecrita do livro, pelo próprio trabalho de o escrever. Foi um trabalho que mexeu bastante com alguns fantasmas. Mas digo isso hoje, porque já estou de fora. Na época não tinha muita consciência disso. Às vezes tinha até a impressão de me estar a divertir, de estar a escrever um livro cheio de humor. E quando o terminei, mesmo a partir da observação de outras pessoas, comecei a notar que está muito carregado de angústia.
P. – O livro começa por surpreender pela forma: a escrita na primeira pessoa do singular traduz-se na visão subjectiva da realidade. Os personagens não têm nome. Nesse sentido, “Estorvo” pode considerar-se um romance psicológico?
R. – Tem tudo a ver com o inconsciente. Cheguei a um certo ponto em que não vi qualquer necessidade de dar nome às personagens. Pareceu-me artificial. De resto, tenho uma certa dificuldade de dizer porque fiz de uma maneira e não de outra. Acredito que o uso da primeira pessoa facilite uma certa ambiguidade – a da realidade filtrada por uma única personagem. A sua imaginação e a minha acabam por se confundir.
P. – Um pouco à semelhança de “Barton Fink”, nunca sabemos se acção é “real” ou se se passa apenas na cabeça da personagem.
R. – Na minha cabeça, tenho uma história real, com princípio, meio e fim. A passagem da realidade para a imaginação da personagem, às vezes é marcada pelo tempo de um verbo. Mas para o leitor imagino que seja confuso. No fundo não pretendo esclarecer mais do que o necessário essa divisória entre o real e a fantasia.
P. – O romance começa com o “herói” num estado de “semi-vigília”. Não sabemos se está acordado ou a sonhar…
R. – Começa e termina nesse registo.
P. – A ambiguidade geral de “Estorvo” levou vários críticos a considerá-lo uma metáfora sobre a actual realidade brasileira. Concorda?
R. – Não tive a menor intenção nem preocupação metafórica. Por exemplo, a geografia da cidade é claramente a do Rio de Janeiro. Há sem dúvida coisas que dizem respeito à realidade concreta brasileira de hoje; elementos do seu dia-a-dia, se bem que romanceados.
P. – Mas é legítimo estabelecer um paralelo entre a personagem sem destino do romance e o cidadão brasileiro?
R. – Nesse aspecto, o cidadão brasileiro, hoje, está perdido, perplexo. E eu, como os outros brasileiros, também me sinto um pouco assim. Então aí, sim, “Estorvo” retrata o momento.
P. – Ao contrário do romance tradicional, em que o herói age sempre em nome de um ideal ou de um valor, em “Estorvo”, não existe qualquer tipo de motivação. Não há acções; apenas gestos…
R. – Há gestos, modificações, mas são movimentos sem intenção. O herói não tem intenção de interferir nos acontecimentos. Assiste a tudo, impotente.
P. – De onde vem essa sensação de impotência?
R. – Bem… As acções foram surgindo como consequência da linguagem. E ela é que determinou muitas vezes a maneira como as coisas se sucediam. Se as personagens tinham determinadas intenções, estas por vezes não se chegaram a concretizar porque na escrita soavam a falso. A linguagem não permitiu. Portanto, foi a própria escrita que determinou a acção, ou inacção, do livro. A questão da linguagem, para mim, é mais importante do que qualquer outra coisa. Num livro pequeno como “Estorvo”, passei meses a fio a reescrevê-lo. Só parava quando chegava a um resultado que me satisfizesse em termos de linguagem e não de enredo.
P. – Não receia que, com tal processo, “Estorvo” possa ser visto como mero exercício de estilo?
R.- Talvez tenha corrido esse risco, mas tenho a impressão que a própria linguagem criou uma tensão própria, um ritmo, que acaba por ser musical. Acho que o livro é musical, apesar de não ter nada a ver com a minha música. Mas tudo isto, agora, são especulações posteriores à criação.
P. – Há quem se refira ao enredo de “Estorvo” como sendo a descrição de uma fuga. Fuga de quê?
R. – Não sei se o personagem foge, se é escorraçado ou se é simplesmente um desajustado. É alguém que não se sente bem em lugar algum. Vai sempre para outro lugar, percorrendo um círculo vicioso, sabendo de antemão que não vai chegar a lado algum. Não sei se isso é uma fuga ou se é uma procura.
P. – Procura que no final cessa apenas com a cena do esfaqueamento como se o “herói” pudesse apenas ser aceite e redimido pela dor.
R. – Essas são impressões do livro. Penso nelas e é como se estivesse a pensar no livro de uma outra pessoa…
P. – Que impressão tem do seu livro, na perspectiva do leitor?
R. – A dificuldade é que eu ainda não consegui distanciar-me nem separar-me, do livro e da personagem. Ainda me sinto envolvido. Vivi essa saga. A facada no fim parece-me natural. Esse desejo de exibir o sangue vivo na camisa, para mostrar à ex-mulher, na tentativa de comunicar com ela através dessa ferida, faz parte da linguagem natural da personagem. Não foi numa perspectiva psicológica que fiz a leitura do que escrevi. Foi sobretudo ao nível da linguagem.
P. – Essa insistência no aspecto formal não esconderá o desejo inconsciente de afirmar perante a crítica a sua faceta de escritor?
R. – O reescrever e a obsessão formal são resultado de um grande prazer interior que tive em escrever. Não de inventar uma “cena” nova. Isso implicaria um sofrimento muito grande. Houve, quando muito, o desejo de ser aceite como escritor e não como compositor. O receio que tinha em relação à crítica era o de ser lido justamente enquanto autor de canções. E isso ter-me-ia parecido uma injustiça. Para ser assim, preferia ter feito um disco.
P. – O sucesso instantâneo de “Estorvo”, no Brasil, implica um redobrar de responsabilidade. Como pensa a partir de agora conciliar as facetas de escritor e compositor?
R. – Já me começaram a perguntar pelo próximo livro. Por outro lado, tenho contratos com editoras discográficas que estão preocupadas com este meu “desvio” para a literatura…
P. – Poderá haver um benefício recíproco entre a música e a litera?
R. – É um grande mistério que eu gostaria de desvendar. Julguei que, quando terminasse o livro, iria voltar para a música com muita sede. Mas fiquei exausto. E a música foi um bocado atingida. Como se todas as minhas energias tivessem sido sugadas pelo livro.

Marisa Monte – “Marisa Monte Traz Novo Espectáculo A Portugal – ‘Ao Vivo É A Hora De Ser'”

Secção Cultura Quarta-Feira, 23.10.1991 (entrevista)


Marisa Monte Traz Novo Espectáculo A Portugal
“Ao Vivo É A Hora De Ser”


Há qualquer coisa em Marisa Monte que apela aos sentidos. A cantora brasileira impressiona pel voz envolvente, mas também por uma presença física que, na pose distante, sabe atear o desejo. Arto Lindsay, John Zorn e Ryuchi Sakamoto sucumbiram ao fascínio, no novo disco da jovem diva. Lisboa e Porto vão vê-la, escutá-la e pedir “Mais”.



“A minha música e a minha presença em palco, são extensões do que eu sou” – explica ela. Talvez resida aí o segredo desse algo indefinível que “encanta as pessoas” e que os portugueses terão oportunidade de verificar “in loco”, dias 25 e 26 em Lisboa, na Aula Magna, e a 28 no Coliseu do Porto.
PÚBLICO – Em relação aos concertos de Lisboa e do Porto, quais serão as diferenças quanto à actuação de há um ano, no Festival “Sons do Mar”?
MARISA MONTE – Isso foi antes do meu segundo disco [“Marisa Monte”]. A principal diferença é que, desta vez, vou apresentar um maior aparato cénico. Trazemos alguns panos de fundo do Brasil, algumas projecções em 16 mm. É um “show” reduzido, diferente do que faço no Brasil mas, mesmo assim, bem melhor que a minha apresentação do ano passado. Vai ter uma hora e meia de duração.
P. – Que reportório escolheu para os dois espectáculos?
R. – Basicamente o meu reportório dos dois discos e músicas inéditas. Ao todo, o “show” vai ter umas 18 músicas, incluindo canções de Tim Meyer, “Não quero dinheiro, só quero amar”, Johnny Nash, “I can see clearly now”, Lennon / McCartney, “Dig a pony”, uma de Tom Waits, “Temptation”. E uma ópera, “La Sonnambula”, de Bellini…
P. – Trata-se de um regresso às origens de cantora lírica?
R. – Há muito que tinha vontade de o fazer. Mas agora cantarei a ária sobre uma base totalmente contemporânea, sem o menor compromisso com a orquestração original de Bellini. Canto a melodia sobre uma base de banda, mesmo. É uma coisa que vou estrear aqui em Portugal.
P. – Em termos de apresentação visual, como será a imagem que vai dar de si ás plateias portuguesas?
R. – É isso aí, quem vier verá…
P. – Costuma afirmar que não pretende assumir-se como estrela. Mas o facto é que, aos 23 anos e com apenas dois discos gravados, o seu sucesso já é imenso…
R. – Tenho que ter muita lucidez, porque o sucesso é uma coisa que, por pouco que nós mudemos, leva toda a gente a mudar em relação a nós. Então, não posso perder a noção de compromisso que tenho com a música, e não com a minha imagem, nem com essa coisa de ser estrela. Acredito que o meu sucesso se deve sobretudo ao trabalho.
P. – É por isso que tem o hábito de controlar até ao mínimo pormenor todos os aspectos da sua carreira, desde a preparação dos espectáculos, aos discos e à imagem?
R. – É uma característica importantíssima. O meu trabalho tem cada vez mais um traço não de compositora mas de autora. Escolher o produtor, a encenação, o reportório, ensaiar a banda, tudo isso são coisas que eu faço, pedindo sempre a opinião das pessoas que estão perto. Mas cada vez mais tenho maior autoridade sobre o meu trabalho. Autoridade, não autoritarismo.
P. – Com a sua idade revela uma grande maturidade…
R. – Não é fácil, porque se está a lidar com interesses diversos: da editora, da banda… Certas coisas podem parecer óptimas para toda a gente, mas não para você. Podem gritar “está óptimo, vamos nessa” e isso não ser realmente o melhor. Tenho o cuidado de não me expor demais. Acredito que o consumo é uma coisa perigosa por isso não o fomento: não vou à televisão, não faço “playback”. Sou uma pessoa que preza os princípios e a própria integridade.
P. – Essa recusa tem relação directa com a imagem de distanciação que parece cultivar?
R. – Mantenho essa distância em relação a certas coisas, e proximidade em relação a outras. O que não fomento é a imagem de estrela, para mim pejorativa. Sou uma pessoa normal e faço questão de o ser. Só assim é possível ter liberdade de movimentos e um mínimo de vida privada.

“Playboy”, Não

P. – Ao vivo, essa distância desaparece, anulada pela gestualização extrema e por uma entrega total ao espectáculo, que lhe são características…
R. – Ao vivo é a hora de ser. Se há um momento em que eu tenho de estar exposta, esse momento é no espectáculo. Agora não faço campanha política, nem apareço “pelada” na “Playboy”. Não faço fotografia de moda, nem cinema, nem “comerciais” na televisão. Existem muitas solicitações e oportunidades, mas nem todas são boas. Às vezes é preciso saber perder uma oportunidade…
P. – Até agora a escolha do seu reportório tem incidido em “standards” ou em temas de outros compositores. Considera-se uma intérprete de música brasileira ou apenas uma intérprete que, por acaso, nasceu no Brasil?
R. – Ah sim, o Brasil no mundo! Não o Brasil para dentro do Brasil. O Caetano fez isso no estrangeiro, entrou em contacto com a Pop internacional, com outros músicos. Lá porque sou brasileira tenho de cantar só músicas brasileiras?
P. – Mas o Caetano manteve-se de certa forma fiel às origens brasileiras. Não receia o perigo da descaracterização?
R. – Mas o meu segundo disco [“Mais”, produzido por Arto Lindsay e com a colaboração de nomes sonantes da “downtown” nova-iorquina, como John Zorn e Bernie Worrell ou o japonês Ryuchi Sakamoto] é muito mais brasileiro do que o primeiro. Acho fundamental manter essa ligação, senão teria sido uma cantora lírica. Há em mim toda uma formação ligada à música brasileira, ao Cartola, à Carmen Miranda, ao Assis Valente, compositores de todos os tempos. O Caetano, o Gilberto Gil, o João Gilberto gritam dentro de mim. Não tenho qualquer intenção de ir viver para fora do Brasil e de fazer uma carreira em inglês, tipo Cindy Lauper. Antes de ser cantora, sou brasileira.
P. – Agora que cada vez mais se fala em “world music”, apetece lembrar uma frase de um jornalista brasileiro: “estar na moda é saber renovar a tradição”. Esta frase aplica-se à sua música?
R. – Acho que sim. O mundo está cada vez mais ligado. É um só planeta. As distâncias tornaram-se menores e as músicas de cada país influenciam-se mutuamente. No Brasil isso aconteceu muito. “Mais” é um disco gravado em Nova Iorque e no Brasil mas, apesar disso, destina-se ao mercado brasileiro. Não seria louca ao ponto de fazer um disco para o mercado internacional sem ninguém me conhecer. Só que a qualidade técnica, de produção, permite o lançamento em qualquer parte do mundo.
P. – Com uma carreira ainda curta, pode dizer-se que chegou, viu e venceu. Como encaram os seus colegas da MPB, que demoraram anos a chegar ao topo, essa sua ascensão quase instantânea?
R. – É apenas uma questão de trabalho.
P. – Trabalha então mais que todos eles?
R. – Pelo menos mais do que a média… acho que sim.