pop rock >> quarta-feira >> 26.01.1994
QUIMANIA | LETRA A LETRA
QUIM BARREIROS E TUNA UNIVERSITÁRIA DO INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO
Dia 26, Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, 22h
É impossível alguém manter-se indiferente, sem esboçar pelo menos um sorriso, ao ouvir as letras de “O sorveteiro (chupa Teresa)”, “Vais ter um de cada lado”, “Lição de dactilografia”, “Queres é levar com o chouriço” ou o clássico “Bacalhau à Portuguesa”. A música de Quim Barreiros, quer queiramos quer não, existe, vende e é um fenómeno de massas. O homem é um profissional a cem por cento e goza à brava com o que faz, que é no fundo a música popular do país real. Mais importante ainda, faz-nos gozar a nós e rir a bandeiras despregadas com palavras em que a malícia nunca chega a vias de facto e as notas são enfiadas a metro, nas chulas, corridinhos e alguns híbridos de “world music” em versão chancho.
É como uma doença cujo contágio atinge camadas sociais que vão do homem do povo, de Alguidar-de-Baixo, até ao estudante universitário, convertido mais recente à “quimania”, que promoveu o cantor de “Mariazinha, deixa-me ir à cozinha cheirar teu bacalhau” a doutor “honoris causa” da universidade mais popular de Portugal, artista dos artistas, alfa e ómega da desbunda sem barreiras, mas necessariamente com Barreiros.
Há, como é óbvio, o factor moda a condicionar o funcionamento da coisa. Quim Barreiros é “kitsch” e, como tal, um valor que tem piada ostentar e defender. É chocante, de bom tom e ninguém leva a mal dizer-se que se gosta de Quim Barreiros. É também a maneira de uma pessoa mostrar que não tem preconceitos, que está acima deles, sinal de inteligência. “Afinal, a música é só uma, não é?” O argumento, esgrimido como algo que não passa pelo gosto e muito menos pela arte, joga com uma forte dose de perversidade. Claro que ninguém acredita que um jovem universitário, em teoria culto e letrado, goste realmente de Quim Barreiros, da mesma maneira que gosta dos Pearl Jam, U2, GNR ou outro nome qualquer, bom ou mau, dos que fazem música “para ser levada a sério”. Quim Barreiros não é para ser levado a sério. Mesmo sabendo que José Afonso o convidou um dia para fazer um arranjo, mesmo verificando que alguns dos seus discos foram exportados para o estrangeiro com a etiqueta “Portuguese folk music”, mesmo levando em conta que teve a sua fase interventiva logo a seguir ao 25 de Abril, em canções como “Agricultura em progresso”, “A batalha da prodoção” (sic) e “O malhão não é reacionário”. As canções de Quim Barreiros são piadas com banda sonora.
Claro que somos o país que somos e que, nas festas e bailes que se realizam do Minho ao Algarve, do adro da igreja à sociedade recreativa, Quim Barreiros é de facto o rei. Sem segundas leituras, com plena cumplicidade de quem se revê na sua malandrice como num espelho. Rei que por acaso vai nu e se calhar por isso é que lhe acham piada. Porque Quim Barreiros não tem jogo escondido. É meia bola e força. O grau básico da escrita. Como na “Lição de Dactilografia”: “a professora a ensinar” e ele “a bater por letra”…
PÚBLICO – Preparou algum espectáculo especial para a Aula Magna?
QUIM BARREIROS – Quando me telefonaram para ir tocar à Aula Magna perguntei onde ficava essa terra, pensava que fosse uma terra lá para o Alentejo ou para o Algarve. Não conhecia. Só depois é que vim a saber que era uma sala de espectáculos em Lisboa.
P. – Sabe que é uma sala diferente daquelas onde normalmente costuma tocar?
R. – Não sei. Fiquei contente porque é sempre bom tocar numa sala para quem está habituado a tocar em cima de atrelados ou de tractores. Tocar numa sala que tem camarins, casa de banho, que tem tudo, é uma maravilha.
P. – Que músicos o vão acompanhar na Aula Magna?
R. O Rui, o baixista, o Nucha, o baterista, e o Zé Figueiras, o teclas.
P. – Vai apresentar alguma canção nova?
R. – Vão ver só coisas já conhecidas. Eu não modifico assim muito. Acho que é mau modificar. Vou metendo de vez em quando uma nova. Porque a malta vai lá é para ouvir o “Bater por letra”, o “Está a nascer um negócio na tua cabeça”, “O bacalhau”.
P. – Há quem diga que os estudantes universitários, que “adoptaram” a sua música, só conseguem apreciá-la quando estão com os copos…
R. – Não, não é só pelos copos, porque quando vou para a terra deles, tocar para os pais deles e para os avós, ninguém está com os copos e eles divertem-se na mesma. É lógico que se vou a uma Queima, aparecem alguns com uns copinhos, os borracholas do costume.
P. – A sua popularidade deve-se só ao picante das letras?
R. – Aliado ao “rítimo” da música, ainda há mais essa.
P. – Em relação aos estudantes universitários, não estará na moda gostarem de si?
R. – Os estudantes descobriram-me há coisa de uns seis anos. Andei muitos anos da minha vida fora. Tocava mais para a emigração, aqui não se ganhava nenhum. Quando foi o 25 de Abril, estava tudo muito parado. Fui para a América, Canadá, Venezuela, Brasil, Austrália, Caraíbas, toda a Europa. Quando decidi regressar, há seis anos, fui convidado para ir às Queimas do Porto e de Coimbra. Foi a partir daí que comecei a ter sucesso e penso que isto nunca mais vai parar. Quando vejo crianças de três, quatro anos, a cantarem as minhas músicas, é porque são populares. “O bacalhau”, daqui a dez, vinte, trinta anos, vai ser como o “Malhão Malhão”, toda a gente vai cantar.
P. – Os seus primeiros discos davam mais relevo à música folclórica, sem preocupação de serem provocantes…
R. – Repare que tive há muitos anos “O pito da Maria”… Sempre gravei com grandes folcloristas do país e, quando podia, metia a parte mais brejeira. No Brasil – o meu pai é brasileiro, toca acordeão, é sanfoneiro, tenho uma forte pancada pela música brasileira do Nordeste -, o homem que me disse onde estava o filão para mim foi o Luís Gonzaga.
P. – Mas não acha que a música folclórica é mais qualquer coisa do que o que faz?
R. – Claro, eu tenho que ser comercialão. Sou um grande comercialão. Só gravo aquilo que à partida sei que vai vender. Porque fiz bons trabalhos ao longo da minha vida – sou capaz de ter uns cinquenta “long-playings” ou mais – e não se venderam. As coisas brejeiras têm outra saída que não tem uma boa obra que eu faça.
P. – Quer dizer que neste momento para si o mais importante é mesmo só vender?
R. – Não é neste momento, toda a vida fui assim. A parte mais cultural deixo para os outros. Só que os outros não têm dinheiro para pagar a renda da casa e eu tenho.
P. – O que faz ao dinheiro que ganha?
R. – Invisto em imóveis.
P. – A seguir ao dinheiro, o que é mais importante para si?
R. – A família, o amor, a amizade. As relações humanas são o mais importante.
P. – E o sexo?
R. – Ó bacano, sem o sexo o que éramos nós? O sexo é a coisa mais importante que há, a relação entre um homem e uma mulher.
P. – Disse uma vez numa entrevista que dinheiro e sexo deviam andar sempre separados. No entanto, nas suas canções, são as referências ao sexo que lhe dão dinheiro…
R. – Não me venhas cá com essa. Ó bacano, ora bem, eu não te sei responder a essa pergunta, mas não… Eu canto aquilo que nós gostamos, que, ao longo dos anos, tem sido falar de sexo. Hoje em dia já se vêem filmes de sexo, já se vêem aulas no liceu de sexo. É uma coisa que está a abrir e portanto aparece o Quim Barreiros com aquelas musicazinhas e toda a malta gosta daquilo.
P. – Tem opinião sobre a sida?
R. – Ó pá, acho que devíamos seguir o conselho dos homens mais velhos, quer dizer, de quem sabe, que é preciso ter cuidado, mas, eh pá, isso vive muito da altura. Há certas alturas em que um homem nem se lembra da sida.
P. – Nesse aspecto arriscava-se, arrisca-se ou toma as devidas precauções?
R. – Ó pá, já não sou novo mas já fui, portanto a mim podiam-me dizer que há a sida e não sei quê que um gajo naquela altura, quando está de pau feito, qual sida qual carapuça, vai sida vai tudo [risos].
P. – Quer dizer que não tem medo?
R. – Não, acho que temos que ter cuidado, e que ensinar o caminho à rapaziada mais nova. Mas é muito mais perigoso andar na estrada do que contrair sida, meu filho!
P. – Já teve algum acidente grave na estrada?
R. – No Canadá ou na América, volta e meia, com o gelo, ia pela ribanceira abaixo. Mas aquilo, como há tanta neve, graças a Deus nunca tive nada.
P. – Costuma e vai tocar para estudantes. O que pensa do problema das propinas?
R. É um problema político. Mas não acho bem eles pagarem. Propina é uma forma do verbo propinar. Um gajo para estudar ter que propinar não faz sentido. Sobre essas coisas que tem havido para aí, não gostei daquela manifestação onde eles levaram pancada. Conheço muito bem os estudantes. São irreverentes mas não são agressivos, são educados. Por outro lado, a polícia também não vai arraiar porrada por dá cá aquela palha. Sou capaz de acreditar que deve haver indivíduos no meio daquilo tudo a fomentarem a desordem. Depois quem leva são os estudantes.
P. – Tem algumas preocupações políticas?
R. – Estou-me nas tintas. Andei agora a fazer campanha política para os partidos todos.
P. – Sobre aquela história de se candidatar à Presidência da República, já desistiu?
R. – A malta ao princípio queria que eu me candidatasse, mas agora já me estão a dizer para não me candidatar, porque se eu ganhasse ficavam sem o Quim Barreiros. Ainda estou na dúvida.
P. – O que pensa dos seus rivais, com um estilo parecido com o seu, como o Artur Gonçalves?
R. – O Artur Gonçalves é um homem que eu admiro. Os primeiros discos que gravou foram comigo. É um velho amigo meu. Assim como há o Crispim, o duo Ele e Ela, o Leonel Nunes, da Guarda, que tem muita graça.
P. – Mas o Quim Barreiros é o maior de todos. Tem algum segredo?
R. – Por vezes uma anedota, contada por um gajo qualquer, não tem piada. E há outros que, com a mesma anedota, mal abrem a boca já toda a gente está a rir-se.
P. – É tão bem disposto na sua vida particular como é em palco?
R. – Acordo e deito-me sempre bem-disposto. Para mim não existem problemas. Sou um aventureiro, nunca estou parado. Não sou capaz de estar sentado a ver um jogo de futebol na televisão. Gosto de ver é o Telejornal.
P. – Que música costuma ouvir em casa?
R. – Gosto de toda a música que me entra bem dentro do coração. Música tocada com “feeling”. Não gosto de música tocada com técnica, só dedos, isso não aprecio. Gosto de um bom cantor, de um Andy Williams, de um Sinatra, do Iglésias, do Carlos do Carmo.
P. – Considera-se um romântico?
R. – Sim, no fundo sou um romântico, não sou nada daquilo que às vezes vocês pensam, por causa das minhas cantigas.
P. – Era capaz de manter com uma mulher apenas um amor platónico?
R. – Não. Sei lá. Falar da mulher é um assunto muito delicado, ainda para mais em entrevistas.
P. – Qual é para si a mulher ideal?
R. – Não existem mulheres ideais nem homens ideais. Gosto de uma mulher inteligente, honesta, não importa se bonita ou não, as mulheres são todas bonitas.
P. – Não acha que as letras de algumas das suas canções dão uma imagem da mulher um bocado diferente dessa?
R. – Quando se fazem essas músicas, o objectivo não é pisar a mulher, mas sim o gozo, a cantiga em si. “Chupa Teresa”… Não estou a rebaixar a Teresa… Porque nós os homens não somos nada sem as mulheres. A mulher é a coisa mais importante que a gente tem na vida. Primeiro as mulheres, depois é que vêm as crianças. Sem mulher não há crianças, só batíamos por letra, ah ah ah ah!