Arquivo mensal: Março 2011

Mia Doi Todd – “The Golden State”

18.04.2003
Mia Doi Todd
The Golden State
Columbia, distri. Sony Music
7/10

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Apesar do nome induzir em associações maliciosas, Mia Doi Todd é um daqueles segredos bem guardados do território da pop no feminino. Com produção de Mitchell Froom e a guitarra do neo-hendrixiano Nels Cline, “The Golden State”, primeiro álbum eléctrico após uma sucessão de três acústicos, é, nas palavras da autora, um “pequeno mantra” que tanto tem a ver com os montes relvados que rodeiam a Interstate 5 na Califórnia, como o Jardim do Paraíso ou uma sociedade perfeita inspirada nos ideais de Platão e Confúcio. Desprende-se um idealismo inato da música desta californiana com raízes no Oriente e na Irlanda que estudou teatro “butoh” no Japão. Fruto de uma tensão construída com base na contradição entre racionalidade e emoção. “In my age of reason/ complicated by feelings/ I dream of impossible things/ I dream of impractical things”, canta em “Age of Reason”. Como em Aimee Mann ou Nico – que Mia parece retratar compondo uma versão “quente” da diva lunar dos Velvet na faixa “Like a knife” – a violência não é explícita mas parte de um processo de auto-descoberta. Que esse processo se ilumina numa espécie de ikebana musical, eis o toque de Midas de “The Golden State”.

Lisa Germano – “Lullaby For Liquid Pig”

18.04.2003

Lisa Germano
Lullaby For Liquid Pig
Ineffable, distri. Edel
8/10

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Quase sempre os lugares mais interessantes da pop são os mais misteriosos e difíceis de encontrar. Não é fácil descortinar entre os vultos do bosque a cabana onde Lisa Germano se esconde e projecta, em noites de insónia, os fantasmas da sua fantasia. O chão está molhado, forrado de vermes e cetim apodrecido. Das paredes tombam farripas de papel de cores indefinidas, desbotadas pela chuva, como as canções e as palavras que escorrem tristemente de “Lullaby for Liquid Pig”. Podemos imaginar uma sessão de espiritismo. Podemos imaginar “The Lodge” – a capela do medo que Lynch instalou no meio do nada de “Twin Peaks”. Podemos mesmo ver, nas fotos da capa, um corpo suspenso no ar ou encurralado a um canto de um quarto vazio. Ou a floresta onde Lisa corre como uma noiva perdida. Predominam a melancolia, sombras coleantes, cânticos de solidão e amores de sentido único, pianos bolorentos, correntes de ar electrónica a compor o mesmo tipo de emoções veiculadas pelos This Mortal Coil. Lisa sussurra-nos ao ouvido farrapos de melodias decalcadas dos seus discos anteriores, como um carrocel que não pára de girar no mesmo sítio mas continua a salpicar-nos de sangue.

At-Tambur – “At-Tambur”

20.06.2003
At-Tambur
At-Tambur
Ed. Tradisom
8/10

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Depois dos Vai de Roda, Gaiteiros de Lisboa e dos Realejo, eis a mais recente revelação da folk portuguesa. Têm vários pontos a seu favor, o menor dos quais não será o de todos os seus membros saberem tocar, aliando a formação clássica de alguns deles e muito trabalho de ensaios. Inseridos numa tradição nobre da folk europeia, de grupos como Blowzabella, Lo Jai ou La Ciapa Rusa, os At-Tambur cultivam o gosto pelo ecletismo e pela improvisação, sem que isso implique o esquecimento das regras e das pulsações tradicionais. A partir de um reportório que inclui composições próprias, tradicionais portugueses (os únicos vocalizados), sefarditas e escandinavos, ao lado de um “jig” de Paul James (Blowzabella) e um “bourrée” de Gilles Chabenat (arranjado e executado de forma superlativa, os grandes grupos atrás citados fazem assim!), e utilizando uma paleta instrumental rica (sanfona, violino, flautas, acordeão, gaita, cordas, etc.) os At-Tambur criam “tradições imaginárias”, passam pelo minimalismo, pela música de sabor antigo e pela excelência de baladas como “D. Fernando”, com um sentido estético inultrapassável que apenas pecará por certas “adiposidades” ao nível da improvisação. Nada que o próximo disco não lime. Um clássico instantâneo.