21.05.1997
Vários
Sacrilege (6)
2XCD Spoon, distri. BMG
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Filme de Monstros
Sacrilégio ou não, o projecto de remisturar a música dos Can, há muito acalentado por Daniel Miller, patrão da Mute e admirador da banda germânica desde “Monster Movie”, não é tanto a recriação da música do grupo, como uma derivação dos seus métodos de trabalho. Daniel Miller prefere, aliás, chamar-lhe “reinvenção”, em vez de “remistura”.
Dos 16 temas que compõem “Sacrilege”, poucos são os que se preocupam minimamente em preservar o material original. Não se trata, pois, de um álbum de música dos Can, como Daniel Miller também faz questão de salientar, mas de uma sua extensão, etapa do “work in progress” que, em última análise, e segundo Irmin Schmidt, constituiria a essência de toda a música do grupo. Nesta operação de manipulação e apropriação não espanta que tivessem sido os representantes da música de dança a responder aformativamente ao convite formulado por Miller. Do lado do rock, a disponibilidade foi menor. Julian Cope, Mark E. Smith, dos The Fall, ou John Lydon, assumidamente influenciados pelos Can, recusaram participar no projecto, alegando ser a música dos alemães demasiado boa para ser modificada.
Uma questão moral que não se levantou a gente como A Guy Called Gerald, Sunroof, System 7, Carl Craig, 3P ou Air Liquide, atendendo à facilidade com que transformaram em exercícios “jungle”, “drum ‘n’ bass” e tecno ambiental a organicidade de temas como “Tango whiskyman”, “Oh yeah”, “Blue bag (inside paper)”, “Future Days”, “Flow Motion” e “You do right”. Todos eles se inserem numa estética corrente que faz coincidir as noções de “composição” com as de “reciclagem” e “manipulação”.
Ao desafio de fazer música utilizando o material de uma banda que se situou nos antípodas desta estética, só era possível responder de duas maneiras: ou com o total desrespeito evidenciado pela “dance people”, cujas versões tornaram irreconhecíveis os temas originais (“Não reconheci ‘Tango whiskyman’”, disse a propósito da versão deste tema, pelos A Guy Called Gerald, Irmin Schmidt), ou a devoção. No primeiro caso tanto fazia que fossem os Can ou outro grupo qualquer a servir de pretexto. No segundo, o resultado saldou-se num esvaziamento dos originais, do qual é paradigmático a técnica de maquilhagem aplicada pelos UNKLE a “Vitamin C”. Mesmo sabendo-se que a música gravada dos Can foi, quase toda ela, obtida a partir de um trbalho de edição de horas de contínua improvisação. Só que a filosofia era outra.
Compreendeu bem o problema, Brian Eno, que revela a posição mais lúcida diante desta encruzilhada. Numa carta endereçada aos homenageados, escreveu: “Melhor do que ninguém, vocês capturaram o espírito de uma época e de um lugar, indissociável de uma comunidade musical específica, revelando uma atitude em relação ao acto de tocar, uma filosofia. Não era só a música.” E, mais à frente: “Se querem fazer discos para outras pessoas misturarem, então não os façam tão brilhantes em primeiro lugar!2 Em consonância, Eno optou por não remisturar material prévio, mas pela composição de um tema original que tenta reproduzir esse mesmo espírito. Com modéstia, propôs a sua utilização como interlúdio. O tema de abertura que assina em “Sacrilege”, “Pnoom”, dir-se-ia extraído das “Ethnological forgery series”, constituindo a excepção, num álbum saturado de “breakbeats” que trocam a batida hipnótica dos magos de Colónia pela sucessão monótona de bits agitados pela neurose, segundo a já estafada fórmula da “tensãp do pré-milénio”. O espírito de “jam session” tribal dos Can não se resolveu nessa tensão.
Ressalvem-se ainda as prestações dos Sonic Youth, em “Spoon”, uma clonagem do original a sustentar pinceladas de guitarras em estado de decomposição, dos Westbam e The Orb, com mutações subtis, respectivamente de “I want more” e “Hallelujah”. O computador “Deep Blue” venceu Kasparov. Mas a programação não derrotou o ritual.