Arquivo mensal: Maio 2010

Entrevista Com Meira Asher: “Vamos Lá Purificar O Mundo”

02.07.1999
Entrevista Com Meira Asher
“Vamos Lá Purificar O Mundo”

Com “Spears Into Hooks”, editado no princípio deste ano, Meira Asher pretendeu “espelhar os traumas e a violência do mundo, para que as pessoas compreendam o que se passa”. Depois de um apocalíptico concerto no Porto, o PÚBLICO falou, por sua conta e risco, com esta israelita que gosta de provocar os fanáticos e para quem o torturado se transforma, inevitavelmente, no torturador. Purificação pelo dilúvio.

LINK

A intensidade do discurso de Meira Asher tem a mesma força e o mesmo carácter de desafio que estão presentes nos seus discos e, de forma ainda mais radical, como o Porto teve oportunidade de testemunhar, nos espectáculos ao vivo. A “world music” deixou de ser uma coisa inofensiva, quando a israelita entrou em cena.
FM – No concerto do fim-de-semana passado no Porto, parte da assistência não conseguiu suportar a violência da sua música. Costuma acontecer isso com frequência?
MEIRA ASHER – Talvez não estivessem suficientemente preparados. Mas os que ficaram ouviram com atenção. Já me aconteceu tocar em recintos absolutamente vazios, em que as pessoas rejeitaram em absoluto a minha música. No Porto houve emoções desencontradas, de choque e excitação. Em todos os meus concertos há sempre gente que sai. Se isso não acontecesse é que ficaria preocupada.
FM – O que aconteceu entre “Dissected” e “Spears Into Hooks”? Não há comparação possível entre estes dois trabalhos…
MEIRA ASHER – “Dissected” representou o culminar de dez anos em que estive envolvida no estudo da música clássica o Norte da Índia e das percussões africanas. Usei processos de composição através dos quais procurei formas diferentes de expressão para a língua hebraica. “Spears Into Hooks” é um álbum conceptual. Nunca me considerei integrada na música étnica. Não se trata de uma influência, mas de uma vivência. Foi isso que fiz quando estudei música indiana. Durante sete ou oito anos dediquei-me exclusivamente a cantar no estilo “dhrupad”.
FM – Ao contrário de “Dissected”, em que os elementos acústicos eram preponderantes, “Spears Into Hooks” é um disco que, em termos formais, se pode conotar com a música electrónica industrial.
MEIRA ASHER – Deixei Israel há dois anos para ir viver no Ocidente, onde me familiarizei, de forma natural, com a electrónica. Decidi explorar a problemática das relações entre a Palestina e Israel através deste meio, o que me permitiu atingir o nível de intensidade e de ruído que procurava.
FM – Por que razão gravou “Spears Into Hooks” em Ljubljana, na Eslovénia, a cidade sede dos Laibach?
MEIRA ASHER – Conheço e aprecio bastante os Laibach. Fizeram um trabalho importante, de grande discernimento político e social. Abriram as mentes das pessoas. São artistas completos. Escolhi esta cidade por outras razões, encontrei lá métodos de trabalho que me agradaram. Depois de um curto período em que vivi em Londres, regressei a Israel já com os textos do álbum prontos. Trabalhei nessa altura com um inglês, Jeremy Azies, músico e etnomusicologista, especialista na música funerária dos Camarões. Os temas “Tiring night” e “Weekend away break”, por exemplo, foram escritos em conjunto pelos dois. Londres não me inspirou. É uma cidade demasiado virada para a moda e para as últimas tendências. Já tinha alguns conhecimentos na Eslovénia e estabeleci os meus contactos, sobretudo através do Aldo, um dos músicos do grupo Borghesia, que acabou por funcionar, um pouco, como produtor executivo na Eslovénia. Encontrei na Eslovénia a energia certa para gravar. Além disso, é um lugar com raízes balcânica, que são também, em particular, as minhas, uma vez que o meu pai é búlgaro e os meus avós maternos são russos, mais exactamente da Letónia.
FM – “Spears Into Hooks” pode ser encarado como a “música do mundo” contemporâneo?
MEIRA ASHER – A “world music” não pode ser aquilo que a indústria quer que ela seja. “World Music” pode ser facilmente aquilo que faço., embora pareça não se adaptar ao termo. A escolha da minha música para a programação do festival do Porto foi muito inteligente, já que ela reflecte a realidade actual do Médio Oriente. Há quem se contente em fazer canções com base no verso e no refrão. Eu não. Se alguém espeta uma faca no estômago de outra pessoa, eu quero que se ouça o som das tripas a sangrar.
FM – Disse que duas das doenças que afectam o indivíduo neste final do século XX são a cobardia e a apatia. São os seus principais inimigos?
MEIRA ASHER – Sim. Quando se passa sucessivamente por várias guerras, e por toda a espécie de violência, como acontece no Líbano, por exemplo, ao fim de 32 anos de ocupação, acaba por se desenvolver a apatia. E por crescer uma “pele de elefante”, como eu costumo dizer. Uma armadura de apatia que faz da pessoa um cobarde. Deixa-se de querer mostrar os ferimentos, de falar sobre o assunto. De encarar de frente o problema.
FM – Em que é que o mundo se está a tornar?
MEIRA ASHER – Caminha para a globalização, sem dúvida, no sentido do conforto económico. Funciona sobre o princípio simples da acumulação de poder. Gira tudo em torno do poder e não se pode fazer nada contra isso. Faz parte da nossa natureza, acumular mais e mais poder até nos tornarmos o vencedor absoluto.
FM – “Spears Into Hooks” reflecte experiências pessoais, sem dúvida, mas que também vão buscar material à memória colectiva…
MEIRA ASHER – Sim, acredito que uma parte da História da Europa – de há 50 anos atrás – se transferiu para o Médio Oriente, para um pequeno local chamado Israel. Foi uma das consequências do Holocausto. Daí o paralelo que estabeleço entre o holocausto nazi e o holocausto palestiniano. Quem sofreu torturas e vagueia por aí cheio de traumas, provocados pelo Holocausto, pode tornar-se facilmente o torturador. Como uma criança maltratada pelos pais que, em adulta, se torna o pai que maltrata os filhos. É um desenvolvimento natural. Ou um contradesenvolvimento… “Spears Into Hooks” espalha amor de uma maneira negativa. Pretende espelhar os traumas e a violência para que as pessoas compreendam o que se passa.
FM – No seu espectáculo, a frase “Birkenau, aqui e agora” repete-se de forma obsessiva, como um sinal de alarme.
MEIRA ASHER – Sim, tudo continua, independentemente do nome do campo de concentração. Os princípios permanecem os mesmos.
FM – Tem alguma explicação para os horrores que aconteceram na II Guerra Mundial?
MEIRA ASHER – Não se pode racionalizar. Foi uma espécie de… é difícil explicar por palavras… como se as coisas se juntassem todas num determinado sentido para dar origem a um acontecimento anormal. O mais importante foi o que aconteceu depois, os desenvolvimentos que deram origem às transformações da nação alemã e, por consequência, da Europa e do Médio Oriente.
FM – É uma pessoa religiosa?
MEIRA ASHER – Não, de maneira nenhuma.
FM – Não acredita em nada?
MEIRA ASHER – Acredito no poder que nos faz viver e agir. Acredito que existe uma energia que nos conduz. Acredito na intuição. E nas pessoas. O que tento dizer e partilhar com as pessoas é algo muito simples: “O que é que pode desenvolver-se a partir de uma realidade violenta?” e “Estamos, de facto, prontos, para trazer mais crianças a um mundo dominado pela violência?”. Somos suficientemente responsáveis? É justo?
FM – Um dos temas mais fortes de “Spears Into Hooks” é “The Flood”, o dilúvio. O Apocalipse está próximo?
MEIRA ASHER – É a história clássica da Bíblia, um grande livro de poesia. A versão em inglês soa de forma completamente diferente do original em hebraico. Gosto de provocar os fanáticos. Em “The Flood” – que, segundo a Cabala, se assemelha muito ao Holocausto, razão por que pus o tema sobre Birkenau logo a seguir -, escolhi aquela parte em que Deus diz a Noé: “’Ok, man’, prepara-te!” [Risos.] Vamos lá purificar o mundo um bocadinho.

Danko Jones – The Magical World Of Rock

17.12.2004
Danko Jones
The Magical World Of Rock
Bad Taste, distri. Musicactiva
8/10

LINK

Como este homem fala. “The Magical World of Rock” contém 70 minutos de “spoken word” do canadiano Danko Jones, guitarrista e vocalista de “hardblues”. Ele abre logo o jogo: “Fiquei viciado em estar no palco.” E como em Agosto deste ano tinha uma semana sem tocar com a sua banda, marcou sete actuações em clubes da Noruega e Suécia. Não é “stand up comedy”, não é um comício, não é um sermão – é uma mistura de tudo isto. Tecnicamente, não se pode apontar nada a Danko: voz forte e bem colocada, controlo dos tempos, equilíbrio nas entoações, facilidade de encadeamento de temas. Falando das (muitas) coisas que o fascinam, consegue manter controladas audiências culturalmente longínquas. Temos então histórias de um fanático de música. “Se me virem a falar com alguém com ar de a conversa se encaminhar para um tema sério, como a guerra no Iraque, esqueçam. O que eu estou mesmo a pensar é como seriam os Metallica se Cliff Burton não tivesse morrido.” Um CD que é uma espécie de “High Fidelity”, com “sketches” de personagens cuja função na vida é fazer listagens de discos ou comprar bonecos dos Kiss, ou que pensam que Nina Persson dos Cardigans escreveu “Erase and Rewind” para eles. A roçar o viciante.

La Bottine Souriante Lança 10º Álbum Com Título Novo – Entrevista –

25.06.1999
La Bottine Souriante Lança 10º Álbum Com Título Novo
A Bota Sorridente Porque Bebe

LINK (En Specta)

Editado há um ano no Canadá, “Xième”, o mais recente álbum dos La Bottine Souriante, só agora foi editado em Portugal, mesmo assim uma semana antes que no resto da Europa. E com um novo nome: “Rock & Reel”. Quanto à Bota Sorridente, também poderia chamar-se Os Amantes da Garrafa. O grupo actuou recentemente no festival Cantigas do Maio, no Seixal. O PÚBLICO falou com alguns dos seus membros e ficou a saber que o vinho, a par dos padres e das mulheres, é um tema recorrente na tradição do Quebeque. O partido comunista é que parece não ter grande freguesia.

Impregnados da herança céltica e temperada com salsa, a música dos La Bottine criou um estilo próprio através da utilização de um naipe de metais. O resultado é uma aliança entre a energia do rock’n’roll, a musicalidade da língua francesa pronunciada à maneira do Quebeque e uma alegria contagiante. Confira-se pelo novo álbum, “Xième”. Ou “Rock & Reel” , se preferirem.
FM – “Rock & Reel” está a ser apresentado como um novo álbum do grupo, quando o disco original saiu no ano passado…
YVES LAMBERT – O disco não tinha tido ainda nenhuma distribuição fora do Quebeque, era praticamente desconhecido. Houve pessoas, como você, que fizeram alguma confusão com a diferença de títulos e com o facto de as capas, embora parecidas, não serem exactamente as mesmas. Mas isso só aconteceu com uma minoria, que conhece a existência de “Xième”. No Quebeque continua a haver apenas a edição original.
FM – “Rock & Reel” é um título um bocado redundante, não acham?
JEAN FRÉCHETTE – Não é um álbum tão tradicional como “La Traversé de l’Atlantique”, por exemplo…
YVES LAMBERT – … Mas também não é um álbum rock. Talvez a energia seja a mesma do rock’n’roll. O termo rock, no nosso caso, aplica-se mais a um determinado tipo de pulsação.
FM – O “reel” compreende-se, até porque se trata de um dos álbuns dos La Bottine onde a vertente céltica está mais presente.
DENIS FRÉCHETTE – Sim a herança céltica está sempre presente. A Escócia, por exemplo, é uma influência determinante nos “reels” do Quebeque.
YVES LAMBERT – Sim, como a música irlandesa, que constituiu uma influência enorme em meados do séc. XIX, dando origem a uma fusão do “beat” francófono com o “beat” irlandês. Mas não são só os “reels” mas também os “airs” e as canções de origem francófona. Apesar de tudo, “Xième” é bastante mais “québéquoise”, com um som mais particular.
FM – “Xième” foi editado no Quebeque com o selo Mile-Pattes, do qual os La Bottine são os fundadores. Quais são os objectivos da editora?
YVES LAMBERT – “Mille-Pattes” foi o primeiro álbum que produzimos, em 1982. A intenção era financiarmos os nossos álbuns, e nos tornarmos independentes. A música é um meio onde há muitos “tubarões”, muita gente desonesta. Por outro lado, o facto de a EMI passar a distribuir os nossos discos constitui um apoio. Mas permanecemos independentes, uma vez que é a Mille-Pattes quem negoceia com a EMI.
FM – Até que ponto existe uma tomada e posição política no grupo? À primeira vista, parecem dar relevo, essencialmente, ao humor.
YVES LAMBERT – O nosso objectivo é ajudar as pessoas a descontraírem-se, a sentirem alegria de viver. Não somos um grupo politicamente “engagé”. Cada elemento tem as suas ideias próprias. Um álbum como “Le Trésor de la Langue”, de René Lussier, isso sim, é trabalho com um belo conceito político.
FM – E os grupos folk canadianos que começaram um pouco antes da Bottine, como os Harmonium, Séguin ou Cano, conhecem?
DENIS FRÉCHETTE – Fazem parte da nossa cultura, embora nunca tenhamos contactado com eles. Os Beau Damage eram um grupo maravilhoso dessa época. Não nos sentimos, de modo nenhum, isolados. Todos os anos, em Dezembro, fazemos uma digressão pelo Quebeque, em salas regionais.
YVES LAMBERT – Falta dizer que a música do Quebeque se encontra, mais ou menos há dez anos a esta parte, num marasmo. O que está na moda são os espectáculos com humoristas, as pessoas gostam de rir. O contexto actual torna difícil a existência de verdadeiros músicos no Quebeque. Os jovens estão a afastar-se da música tradicional e uma das causas é a rádio. Quanto a nós, já existimos há 23 anos e, por isso, gozamos de uma certa reputação, as salas em que tocamos costuma estar cheias.
Quando contratámos os músicos que tocam os metais, houve uma certa recusa, as pessoas consideravam-nos ainda como a banda que éramos nos anos 70, mais puristas e próximos da “real thing”. Mas, finalmente, chegados aos anos 2000, a Bottine é um grupo acarinhado. No estrangeiro foi mais fácil, há um público mais recente que não conhecia o nosso passado.
FM – Como é que trabalham a esse nível, na ligação dos metais com o reportório tradicional?
JEAN FRÉCHETTE – É o Denis que faz todos os arranjos, antes tocou muita salsa. Está no grupo desde 1986 e a ele se deve a ideia de introduzir os instrumentos de metal na banda.
YVES LAMBERT – Ele e eu fizemos parte de um grupo anterior aos La Bottine, completamente diferente. E fora do contexto do Quebeque. Tocávamos música italiana, judia e indiana.
FM – Há pouco, negaram qualquer envolvimento político, mas a verdade é que já tocaram há uns anos em Portugal, na Festa do “Avante!”
YVES LAMBERT – Ao princípio nem sequer sabíamos que pertencia ao Partido Comunista, pensávamos que se tratava apenas de uma festa onde eram apresentados vários estilos de música. No Quebeque não existe nenhum partido comunista. Lembro-me, pelos jornais, de todo o folclore, em torno das bandeiras com a foice e o martelo… Na Europa é vulgar a luta entre o comunista e o capitalismo, politicamente ´+e interessante, mas a verdade é que, no Quebeque, não acontece nada disso.
FM – É verdade que têm em Marcel Bordeleau um especialista na acústica dos sapatos?
YVES LAMBERT – Sim, já usou umas solas de plástico que tinham um bom som, mas que acabaram por se partir. A sua descoberta mais recente são uns tacões de metal, ideais para bater no estrado. É um talento natural…
FM – Os músicos dos La Bottine são verdadeiros “amantes da garrafa”? O álbum tem várias faixas dedicadas ao tema…
JEAN FRÉCHETTE – Sim, sim, no meu caso até faço vinho. Também já fiz cerveja… Na tradição do Quebeque o tema da bebida é frequente. Como o clero e as mulheres.