As meninas boas vão para o céu, as outras vão para todo o lado. Há ainda as meninas que se vê que são boas pelos vídeos. As meninas estão a invadir o mercado com os olhos postos nos “charts”. Sheryl Crow, Shawn Colvin, Aimee Mann, Merrill Brainbridge, Susanna Hoffs, Tracy Bonham. A música é comercial em qualquer dos casos. Mas o que distingue a recente produçao “mainstream” do feminino das inocuidades do passado é que é tudo muito bem feito, com bom-gosto e servido em produções sofisticadas, que têm a preocupação de conseguir “um som”. Sheryl Crow tem fortes argumentos para alcançar um lugar ao sol. Não estamos a falar do seu muito bom aspecto geral, mas da voz, que em alguns temas – como “A change” ou “If it makes you happy” – é muito parecida com a de Aimee Mann mas dá na mesma de trazer para casa. Sheryl Crow tem, além disso, o cuidado de parecer preocupada com o mundo e de tocar uma quantidade de instrumentos. Considera mesmo o órgão o instrumento da sua preferência desde os 15 anos de idade, dizendo ser o “mais ‘sexy’ de sempre”. Refere-se, é claro, ao órgão Hammond B-3. Pois, “Sheryl Crow”, segundo álbum desta cantora, depois de “Tuesday Night Music Club”, tem carne e alguma vida, e o tema de abertura “Maybe angels” tem pinta de “hit”, chamando mais vezes a pedir que a ouçam. As meninas boas causam sempre boa impressão. (6)
JULIAN COPE
Interpreter (8)
Echo, import. Lojas Valentim de Carvalho
“Venho de outro planeta, querida!” É o primeiro sinal enviado do espaço pelo alienígena Julian Cope, messias do novo psicadelismo. Cope rompeu os véus da terceira visão. Em estado de graça – ou de desgraça – em termos de vendas desde “Peggy Suicide”, de 1991, o ex-Teardrop Explodes continua a moldar a música pop à sua cosmovisão, por sua vez moldada pelo LSD e pelas mensagens enviadas pelos seus amiguinhos verdes.
Apesar de ser preciso subir muito até se encontrar a cabeça de Cope a pairar acima das nuvens, não quer dizer que o “acid head” esteja louco. Está é “alto” há uma quantidade de tempo. Mas já foi pior. Ele afirma que deixou de ingerir ácido há oito anos, preferindo actualmente os cogumelos e a erva. O homem que veio do espaço declara-se lúcido e contra as drogas psiquiátricas, para as quais o ideal de paraíso é o coma, e participa em manifestações ecológicas em defesa das árvores. Quando o “Krautrocksampler” – o seu compêndio pessoal da “Kosmisch muzik” alemã dos anos 70 – se transformou rapidamente num clássico de culto, tem já em preparação um novo livro, desta feita um guia, geográfico e psíquico, dos lugares sagrados da Inglaterra, cujo título será provavelmente “The Modern Aquarium”. “Interpreter” inclui uma amostra sob a forma de um “Mythological mind map of the Marlborough downs” desdobrável…
“Interpreter” é o testemunho de uma mente em estado de embriaguez criativa. Mais acessível do que os anteriores “Autogeddon” e “20 Mothers”, recorre a esquemas pop que vão da “bubblegum” e dos Velvet pouco “underground” à recuperação dos Teardrop e da Pop swingante de um Matt Johnson, em “Since I lost my head, it’s awl-right”. A luz negra do “krautrock” continua a brilhar com intensidade, por incidência directa ou por interposta pessoa, como em “Cheap new-age fix”, recriação do “kraut-synth-pop” dos Stereolab – presença teutónica que se faz sentir, ainda, através do martelo-pilão dos Neu!, ma manipulação minimalista e gulosa dos sintetizadores ARP e VCS3 analógicos ou das “private jokes” com títulos modificados de “krautrockers” (“I´ve got my TV & my pills” e “Planetary sit-in” são alusões, respectivamente, a “I’ve got my car & my TV”, dos Faust, e “Planeten sit-in” dos Cosmic Jokers). “S.p.a.c.e.r.o.c.k. with me” funde a ópera espacial de “Startrek” com o “easy-listening” do século XXI, alimentando a propulsão pelos Amon Düül II e Hawkwind. Em “Maid of constant sorrow”, os extraterrestres apoderam-se do microfone para declararem o seu “Independence day”.
O fogo de Kundalini (energia sexual transmutada em energia mental, na iniciação tântrica) continua a subir pela espinha de Julian Cope até ao “chakra” (centro nervoso do corpo astral) superior da nuca, como se vê pela imagem da contracapa desta alucinada caixinha… Resta saber até quando conseguirá ele manejar as suas labaredas sem se queimar. Para já, o cérebro fugiu num foguetão.
VÁRIOS
In Memoriam – Gilles Deleuze (8)
2xcd Mille Plateaux, distri. Symbiose
Folds and Rhizomes for Gilles Deleuze (7)
Sub Rosa, distri, Symbiose
Gilles Deleuze, autor de “Rhizome” e “Mille Plateaux” (aproveitada para nome da nova editora), entre outras obras, suicidou-se em Novembro do ano passado, pondo termo a uma longa doença. Sempre foi figura cara aos experimentalistas das sonoridades electrónicas de sinal ameaçador. De uma só assentada, fizeram-lhe duas homenagens. A primeira é estimulante, aliando a teoria filosófica à prática musical. A segunda é mais modesta mas não menos interessante, de um ponto de vista exclusivamente musical.
No tema inicial de “In Memoriam”, o filósofo em pessoa enuncia a metáfora fundamental: “Começar pelo primeiro princípio é um pouco um método que evoca o modelo da árvore: procura-se em primeiro lugar a raiz. Mas existe um segundo método, ou um segundo modelo, que é o da erva. A erva cresce pelo meio.” É vago mas sugestivo, adaptando-se a todo um conceito sobre a origem e a funcionalidade da música. Aparece tudo escrito, de forma convincentemente complexa e confusa para um leigo, no texto assinado por Achim Szepanski, que acompanha a edição grossa em digipak.
O tema central é o da máquina, logo, do corpo, biológico e da obra de arte. Logo, da música electrónica. Vinte e seis nomes, entre os quais os Zoviet France, Cristian Vogel (da escuderia Recommended), Atom Heart, Chris & Cosey (dois ex-Throbbing Gristle), Trans AM, Jim O’Rourke (produtor de “Rien”, o novo álbum dos Faust), DJ Spooky, Oval (autores de uma recente remistura dos Tortoise) e Scanner, estendem a música electrónica para além dos limites do ambientalismo, do industrialismo e da música computacional, criando fórmulas onde a sistematização matemática se alia à linhas energéticas do acaso. Música de máquinas. Música do corpo. “O que significa fazer música electrónica? Que a matemática é a base de toda ela, a regra, o algoritmo? Que é música que acontece no universo dos sintetizadores, monitores, midis, computadores? A outra questão é: como é que a música electrónica funciona? Esta segunda questão não é redutível à primeira, antes segue um modelo paradoxal: tornar audível o inaudível (…) lidando com coordenadas como ‘retardamento’, ‘velocidade’, ‘sobreposição’, ‘desfasamento’, ‘condensação’… ou seja, com as funções e componentes do som.”
Compreende-se. A vibração electrónica faz parte do domínio virtual, não existindo na natureza. A criação no universo electrónico processa-se – ou é – através da manipulação de ondas e de informação. Manipulação do tempo e do caos. Na música electrónica (como é perspectivada neste disco, bem entendido) o meio confunde-se com o corpo sonoro, escultura sónica, criando no instante as suas próprias regras e os seus acidentes.
Curiosamente, o título do segundo álbum – da série “Diários utópicos”, da Sub Rosa (com quatro longas faixas dos Mouse on Mars, Main, Oval e Scanner, terminando num pósfacio de David Shea com Tobias Hazan) – complementa a metáfora da árvore. O rizoma é o caule subterrâneo, coberto de escamas em vez de folhas, que cresce no subsolo. Ou na “interzone” mental, zona virtual de poder que Burroughs e Cronenberg formalizaram em “O Festim Nu”. “On the edge of a grain of sand” é o título sintomático da contribuiçao dos Zoviet France, pioneiros do obscurantismo sónico que veio pôr um novo (e mais sombrio) acento na música concreta, no ambientalismo e nos novos acusmáticos (Biota, Steve Moore, PGR, Jocelyn Robert). Implosão e explosão. Ordenamento das moléculas musicais em redor de um buraco negro central. O sentido é o das forças e pulsões organizacionais da máquina e da energia, mas também o da “rautschen” (“murmúrio”) subliminar, deleuziano. Não confundamos esta estética da divinização da máquina (Deus “ex machina”) com o aparecimento de outra corrente recente da música electrónica que evoluiu a partir do ambientalismo, a sugestivamente designada “Sombient” ou “Ambient noir”, localizada nas margens do silêncio e do vazio siderais, derivação da new age da Hearts of Space para o subsom da “Fathom”, presente nos últimos trabalhos da Robert Rich (com Brian Lustmord) e Steve Roach. “Sombient”, que possui já o seu manifesto na colectânea “The Throne of Drones”, sobre a qual escreveremos proximamente.
Geograficamente, “In Memoriam” posiciona-se nos antípodas de Brian Eno. Uma e outra música elabora sobre o tempo e a sua anulação/transgressão. Mas enquanto o autor de “Apollo Atmospheres” encara a eternidade, concertando o fluir dos acontecimentos sonoros num dispositivo sem princípio nem fim, evoluindo a partir de uma noção de intemporalidade, os maquinistas da sombra jogam, com idêntico objectivo, em conceitos como repetição (seria útil a análise da obra de Deleuze “Diferença e Repetição”, ciclicidade e programa.
Na música de Eno a máquina tende a anular-se. O som tem como limite ideal o desaparecimento do sujeito que o produz. Nos homenageantes do filósofo, a despersonalização funciona de maneira inversa. A máquina é o centro, a voz, o ‘fiat lux’ e o filtro condutor de toda a “praxis” sonora (e filosófica…). Eno representa, na terminologia deleuziana, o método da árvore que cresce em direcção à luz. Os seus discípulos músicos seguem o modelo do rizoma, evoluindo de forma tentacular rente ou debaixo do solo. Qualquer destas duas concepções ambiciona, como já referimos, a criação de um corpo novo. O corpo crístico, num caso. A mutação do corpo, tornado apenas carne, no sentido cronenberguiano, no outro.
“In Memoriam” é um manifesto perturbante e musicalmente arrebatador do Apocalipse mediático visualizado por McLuhan e desmontado por Deleuze. A máquina, o homem-máquina são, então, o órgão e o veículo que, extrapolando as palavras do filósofo, “libertam um puro acontecimento, livre de acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjectividade e da objectividade do que acontece”.