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Artigo de Opinião: Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa – Vai De Roda – “Vai De Roda”

Pop Rock

6 de Março de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa

Vai de Roda Vai de Roda


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Como foi

Em 1983, Vai de Roda era uma Cooperativa étnico-cultural. “A única, nessa altura, em Portugal”, garante Tentúgal, desde sempre mentor deste projecto. “A ideia era também a edição de textos ou a construção de instrumentos, que construíamos rudimentarmente, sobretudo percussões, além de fazermos recolhas e investigação.” A cooperativa formou-se, “em termos legais, em 80, 81”. Na prática, porquanto o nome ainda se encontra registado, extinguiu-se em 1986. O grupo musical propriamente dito surgiu “em finais de 1978”. Demos o primeiro concerto, de uns 20 ou 25 minutos, para um público adulto e ainda com um reportório restrito, em Fevereiro de 1979.”
Em termos estéticos, o grupo encontrava-se, nesta altura, num estado embrionário. “Um Vai de Roda ainda um bocado rural”, diz Tentúgal, “embora apresentando já algumas propostas diferentes.” Uma proposta que valeu então ao grupo algumas críticas e incompreensões. Nela estavam contidos excertos de uma banda sonora composta anteriormente por Tentúgal “para um filme da antiga telescola. ‘Sortelha, Uma Aldeia da Beira’”. Doze minutos de música que “serviram de pista para o encadeamento do disco”, vindo mesmo, parte deles, a integrar os primeiro e último temas do álbum. “A ideia conceptual de agrupar uns temas” para um disco, “de lhes dar uma sequência lógica” deparou com algumas dificuldades, devidas ao formato em vinilo. “Por causa da obrigatoriedade da mudança de lado.”
A gravação estava prevista para acontecer cinco anos antes. Não aconteceu, “devido a problemas com as editoras”. “Só através de conhecimentos e de algumas cunhas, entre aspas, se conseguiu gravar o disco. E numas condições não digo deploráveis, mas extremamente limitativas.” Seja como for, a obra nasceu. E com mais três dias de estúdio a juntarem-se aos outros três previamente agendados. Mesmo assim, “era de manhã, à tarde e à noite”. “Saíamos à uma da manhã, íamos dormir e às nove já tínhamos que estar novamente no estúdio. Era extremamente cansativo.”
Treze pessoas, fazendo jus ao estatuto de cooperativa que os Vai de Roda então ostentavam, não constituíram na altura dificuldade. “Havia um mapa de gravações, os músicos não vinham todos de cada vez, podiam desopilar um pouco.” Era, contudo, gente a mais, o que levou o grupo “a perder”, mais tarde, “um bocado aquele espírito de cooperativa”. Problemas na gravação, não houve que afectassem de forma significativa a ordem de trabalhos. Tentúgal recorda, mesmo assim, um percalço acontecido com uma mistura, que obrigou o grupo, na última noite, a sair às cinco da manhã. “Problema de fitas ou de corrente eléctrica que foi abaixo” – a memória já apagou dos seus circuitos o incidente.
Ao contrário de “Terreiro das Bruxas” e do próximo “Polas Ondas”, onde algumas das decisões foram tomadas durante as gravações, “Vai de Roda” levava a lição bem estudada de casa, não dando ligar ao imprevisto. “Devido ao pouco tempo que tínhamos, já estava tudo definido.” Excepção feita ao último tema, “Oh que calma vai caindo”, “que permitiu um pouco mais de liberdade”, na sua condição de “quase uma resenha do pensar a música e os ambientes tradicionais, com rezas e a gaita-de-foles”. Houve ainda o caso de uma das cantoras, que um dia não quis cantar, por “não se sentir bem”. O próprio Tentúgal cantava aqui bastante menos do que no álbum posterior, talvez por nessa época estar ainda pouco confiante, neste particular, nas suas capacidades.
“Ainda hoje não confio”, diz, a rir, embora outros o convençam do contrário. “O Quico, por exemplo, antigo teclista dos Salada de Frutas e actual técnico de som do Intercéltico, está farto de me dizer para ter mais confiança, que a minha voz é porreira, que tenho é de começar a cantar mais.” O homem da sanfona, cuja voz confere a temas de “Terreiro das Bruxas” como “Rosinha vem-te comigo” ou “La Vitorina” um fascínio especial, sorri, preferindo conferir à sua música outros protagonismos.
A sanfona preparava, entretanto, terreno para o seu futuro reinado. “Um sonho já de alguns anos” que teve, finalmente, a sua oportunidade. Em “Vai de Roda” ainda prestava alguma vassalagem à “conceptualidade”, aspecto que então mais preocupava Tentúgal, “inclusive no palco”. Uma encenação musical que privilegiava a utilização de “instrumentos não tidos como musicais”, como o piassaba, as vassouras, o demónio da floresta ou as caixas de ovos. “Era o jogo das sonoridades que era importante. A criação de imagens e de ambientes, por vezes, nos concertos, criados no meio do público.”
“Vai de Roda”, sendo como é um marco da música popular portuguesa, terá vendido, nas suas duas e únicas edições em vinilo, cerca de 2500 exemplares. Tentúgal não acredita nesse número, divulgado pela editora. “Acho que vendeu mais.” Impossível, no entanto, verificar essa intuição. “Cheguei a apanhar, numa feira normalíssima, uma cassete pirata do álbum, que ainda guardo comigo.”
Tentúgal ainda hoje sente orgulho nesta estreia em disco dos Vai de Roda, desde sempre o seu projecto mais querido. “Muita gente se esquece deste disco. Só se começou a fazer justiça ao Vai de Roda com o ‘Terreiro das Bruxas’, o que é pena, até porque este primeiro álbum marcou um pouco a história de outros grupos. O próprio ‘Contraluz’, da Brigada, é já uma aproximação á nossa filosofia, de uma certa conceptualidade das coisas e dos temas encadeados uns nos outros. Como facto de irem buscar os pregões e musicá-los. Uma filosofia que já existia nos Vai de Roda, de ir buscar outras sonoridades que não, apenas, a própria canção em si.”

Como é

Se outra razão não existisse para incluir este primeiro trabalho do grupo do Porto na lista dos melhores de sempre da música portuguesa de raiz tradicional, uma só bastaria para o individualizar e marcar uma posição de diferença perante todos os outros: a recuperação de um instrumento caído em desuso e na decadência, a sanfona. Em “Vai de Roda”, Tentúgal faz entrar pela primeira vez, em disco, a sanfona no instrumentário tradicional português. Uma utilização ainda tímida, apoiada sobretudo nos bordões, mas que trouxe para esta área musical uma sonoridade nova que viria a ser explorada em pleno no segundo álbum do grupo, “Terreiro das Bruxas”. Não se tratou, de forma alguma, de uma opção gratuita, de uma tentativa isolada para tornar mais exótica uma música que sempre procurou conforto na facilidade das braguesas e dos cavaquinhos, mas antes o resultado de um estudo aprofundado das suas origens e potencialidades de transmutação. Tentúgal sempre fugiu ao óbvio e esta fuga levou-o a procurar nas catacumbas da música antiga – idade Média e Renascimento – um veio esquecido ou menosprezado pela maioria dos discípulos e aprendizes da MPP, onde tanto a sensibilidade contemporânea como a sua irmã tradicional se pudessem reconhecer. É precisamente nos temas onde a sanfona faz a sua aparição, seja no de abertura “Minha roda st’á parada”, cujos adereços sonoros antecipavam já a estética de encenação sonora presente em “Terreiro das Bruxas”, seja na versão de “Mineta” (mais interiorizada que o arquétipo inscrito no primeiro álbum da Ronda dos Quatro Caminhos) ou ainda no ambientalismo étnico do instrumental que fecha o disco, “Oh que calma vai caindo”, que a música se aprofunda e ganha maior poder de sugestão. Uma visão da tradição fixada ainda na fidelidade possível às formas originais e cativa do respeito pelo dogma das recolhas, mas onde era já nítida a subjectividade de leitura e a vontade de conceptualização. Afinal o germe de uma obra cujas ambições apontavam já para um equivalente sonoro da fotografia “etnopsicadélica” da capa, mas que apenas se concretizariam em pleno montadas na vassoura de uma bruxa.



Artigo de Opinião: Os Melhores de Sempre – Música Portuguesa – José Mário Branco – “Ser Solidário” + “FMI”

Pop Rock

14 de Fevereiro de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa

José Mário Branco “Ser Solidário”/”FMI”


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Como foi

À primeira tentativa de gravação de “Ser Solidário” responderam as editoras com a recusa. As resistências do medo e dos preconceitos foram mais fortes do que a música. José Mário Branco viu-se obrigado a mudar de estratégia. “Ser Solidário” lançou-se nos palcos, a testar sensibilidades, aguardando melhor oportunidade. “É um disco pensado para disco”, diz o seu autor, “com material inventado, composto e concebido na sequência da minha saída da Comuna – um disco com princípio, meio e fim, com o ‘FMI’ integrado. A proposta de edição deste trabalho foi elaborada com ajuda de Manuela de Freitas, do Trindade Santos e do José Duarte. Agarrei numa maqueta e foi assim que o propus a várias editoras, que não se interessaram. Houve reacções e respostas negativas de vária ordem: frontais, laterais, silêncios, não-respostas. Pelo que percebi de algumas negativas que foram expressas, terá havido dois tipos de factores para a recusa. Por um lado, a marginalização de um tipo muito queimado de período de 1974-75. Por outro, medo e recusa de editarem, especificamente, o ‘FMI’. Havia a atracção pelo lado mais escandaloso, mas também o receio.”
“Ser Solidário” parte para a estrada. José Mário Branco decidiu transformá-lo num “espectáculo de cartaz”, uma produção do Teatro do Mundo para “ficar em cena”. Estreado em Novembro de 1980, “poucos dias antes da morte do Sá Carneiro e do Amaro da Costa, foi a primeira vez que um espectáculo musical ficou em cena durante tanto tempo”. Perto de dois anos, “com salas esgotadas”, que permitiram às canções crescer e ganharem força. A selecção dos músicos, feita “um pouco à pressa”, incidiu sobre os mesmo que depois tocaram no disco.
Ultrapassada uma fase em que se chegou a propor ao espectador contribuir monetariamente para a gravação do disco, que depois receberia gratuitamente em casa – “cada espectador recebia à entrada um cheque-disco de 500 escudos e uma carta manuscrita a explicar”, “Ser Solidário” encontrou por fim uma editora interessada, a Edisom. Em Maio de 1981, José Mário Branco propõe a repetição do espectáculo no Teatro Aberto: “Mais um mês”. Na sequência disso, surge o contacto com a Edisom, acabada de criar por Zé da Ponte. Já depois de concluída a gravação e saído o disco, as mesmas canções regressaram de novo à estrada, agora já num formato de trio, “para mais dois anos e meio, três” de espectáculos.
É um “testemunho individual, profundamente individual” aquele que é dado a ouvir em “Ser Solidário”, mas também “um percurso que foi muito partilhado”. “Ao falar de mim, estou, mesmo sem querer, a falar dos outros.” Por isso, o disco pode ser encarado como testemunho geracional de muitos que, melhor ou pior, se relacionaram com a mudança. Ou o que se pensou ter sido uma mudança. “Há um tom de crítica e de auto-reconstrução antidogmática” neste trabalho, “que aproveita, inclusive, coisas que vês antes do 25 de Abril, como o ‘Vá…Vá…’, uma canção pronta desde 1970”, alusão ao café Vá-Vá, onde se reunima os intelectuais. “É uma reacção radical minha, no exílio [em Paris], ao que se poderia chamar os defeitos do intelectual de esquerda de café. Continua a ser um recado aos que falam, como eu dizia a brincar, dos problemas do povo com citações em alemão.”
Em termos musicais, o álbum espelha as tensões psicológicas e as contradições com que o seu autor se debatia. “Quase uma briga de estilos” em que os vários géneros musicais explodem como estilhaços de uma granada em todas as direcções. “É uma coisa e o seu inverso”. Dialéctica entre experiências já realizadas com “o jazz, o fado, as marchas populares, a música de raiz tradicional” e o “contacto com um património pessoal”, na “reconciliação” do músico com o próprio passado. José Mário Branco define numa palavra o seu estado de espírito nessa época: “Inquietação”, título de uma das canções de “Ser Solidário”. E um “amargo de boca”, a azedar nas palavras ambíguas do título-tema que fecha este duplo álbum. “Tentámos e não conseguimos e não só não conseguimos como este plural é o quê? Quem somos nós? Tenho eu alguma coisa a ver, ou não, com muita da gente com quem tenho andado? Numa altura em que os Pachecos Pereiras e os Durões Barrosos faziam a linha para o PPD, eu estava nesse estado!”
Confusão, oportunismo, indiferença, provincianismo, cinismo. Eis as linhas com que se cosia a sociedade portuguesa, onde, cada um a seu jeito, deu o sentido que mais lhe convinha à palavra revolução. É este estado de coisas, esta estagnação profunda das mentalidades, que “FMI” vem ferir como um cutelo, sem poupar ninguém. “É o produto de uma grande dor, um dor que me deu.” José Mário Branco pormenoriza os sintomas: “Numa noite, já deitado para adormecer, começou a rezinar-me uma parte de um tema antigo, em que glosava o início de ‘Os Lusíadas’, e a virem-me as palavras soltas, quase em escrita mental automática, de jorro.” “Um pedaço da vida” do músico, só possível de apresentar com “uma grande organicidade”, do mesmo modo que outro pedaço da sua vida, não menos visceral, que viria a ser gravada três anos mais tarde, “A Noite”. “Mais teatro do que música”, é verdade, se entendermos por teatro ao sentido que lhe deu Artaud, a coincidência absoluta entre a emoção, o ser e a sua representação. Daí as cautelas que rodearam a apresentação de “FMI”, com a capa do maxi-single selada com um aviso de proibição de qualquer “audição pública, parcial ou total” sem o consentimento do autor.
“Ser Solidário”/”Ser Solitário”. A alternância do “d” e do “t” não é original. José Mário Branco inspirou-se num conto do romancista existencialista francês Albert Camus “sobre o absurdo”. “É o percurso interior de um pintor que, à medida que avança na concepção e na depuração ético-estética da sua arte, se vai deixando tomar por um processo de esquizofrenia e isolar do mundo, da família, de todos. Até que fica isolado no sótão da casa, com as suas tintas e as suas telas, e já não sai de lá, nunca mais. Depois de muito tempo sem saberem dele, alguém resolve entrar naquele sótão e encontra-o já morto. No cavalete, está uma tela toda pintada de branco com uma assinatura que não é uma assinatura mas uma palavra, ‘solitaire’ ou ‘solidaire’, não se percebe se é um ‘t’ ou um ‘d’.” A capa de “Ser Solidário” é negra.

Como é

“Ser Solidário”, ou “Ser Solitário”, corolário de um período de intensa actividade de José Mário Branco, entre 1977 e 1979, como compositor e actor da Comuna, muito mais do que um simples trocadilho gramatical, é um genial trocadilho sobre uma alma, muitas almas, e sobre a música, muitas músicas. A “queixa das almas jovens censuradas”, do poema de Natália Correia, um dos grandes temas deste duplo álbum, vale como manifesto de um período simultaneamente amargurado e luminoso do autor, que aqui se questiona a si próprio, ao mesmo tempo que interroga a realidade portuguesa ainda a lamber as feridas abertas pelo 25 de Abril.
É um álbum de ruptura, de inquietação de procura de novas formas musicais que pudessem conter e responder à incandescência criativa das palavras, mais desesperadas e, paradoxalmente, carregadas de esperança do que nunca. O “jazz” e o fado são apenas duas dessas formas, onde José Mário Branco encontrou abrigo para a mudança. Jogando com o jazz-rock, reconverteu esta linguagem, na apropriação da “Maiden voyage”, de Herbie Hancock, para ilustrar o poema de Manuela de Freitas em “Sopram ventos adversos”. Testemunho de um homem só, estigmatizado pela sua coragem e pela sua diferença, “Ser Solidário” é, em paralelo, o testemunho de uma geração que não o soube compreender. Mais do que o hino “Eu vim de longe, eu vou p’ra longe”, ou o sarcasmo populista transformado em êxito radiofónico de “Qual é a tua, ó meu?”, é o título-tema que melhor reflecte essa relação de amor-ódio com a mediocridade, ontem como hoje, vigente neste quintal lusitano. Onde seria de suor a declaração linear, José Mário Branco dispara a ambiguidade, bem expressa na derradeira quadra deste disco: “De como aqui chegar não vale a ena/ Já que a moral da história é tão pequena/ Que nunca por vingança eu te daria/ No ventre das canções sabedora”.
Na mesma altura, José Mário Branco fez sair, em máxi-single, “FMI”, o tema que lançou sobre si a maldição nos 25 minutos mais violentos e catárticos de sempre da música popular feita em Portugal. Gravado ao vivo, composto de jorro a meio da noite (“A Noite” estava ainda por chegar), “FMI” é o equivalente musical da “Cena do ódio”, de Almada Negreiros. A lucidez e a raiva levados ao extremo, num libelo de vida ou de morte contra o sistema, mas também o grito e o choro, a nudez absoluta de um homem que se expôs por inteiro. “FMI” (um anagrama de “Fim”…) é a obra-prima de um homem livre cujo destino é “improvavelmente ser feliz”.



Artigo de Opinião: Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa – Tantra – “Mistérios T Maravilhas”

Pop Rock

7 de Fevereiro de 1996
Os melhores de sempre – música portuguesa

Tantra “Mistérios e Maravilhas”

Como foi


tantra

Em Inglaterra explodia a raiva “punk”. Por cá, a tendência era fazer complicado. Soar como uma orquestra rock. Os Tantra conseguiram-no melhor do que ninguém. Eram o grupo progressivo por excelência, com longas canções e títulos como “Variações para uma galáxia”. Exímios instrumentistas faziam alarde disso. Bem como de uma teatralidade sem precedentes no rock português. “Quando começámos, éramos só eu e o Armando Gama”, explica Manuel Cardoso. “Ele tinha tendência de ir para a pop e eu para o rock sinfónico, na linha dos Genesis, Yes ou Pink Floyd. Vieram depois o Américo Luís, no baixo, de bases rock mas com tendência para o jazz, e o baterista Tó Zé Almeida, também com uma base rock mas todo virado para o progressivo.” Manuel Cardoso tinha acabado de chegar de Inglaterra, onde fizera parte de um grupo de música de “base celta”. Aí aprendeu “uma das coisas fundamentais para que os Tantra funcionassem: um método de ensaios nessa época totalmente diferente do que se praticava em Portugal”. Trabalho duro. Profissionalismo.
Um profissionalismo que ficou bem patente em todos os que assistiram ao memorável concerto dados pelos Tantra no Coliseu dos Recreios, uma encenação musical na linha do que a banda de Peter Gabriel fizera em “The Lamb lies down on Brodway” e valeu ao grupo de Manuel Cardoso o epíteto de “Genesis portugueses”. “A coisa mais gira é que só a nível imediato é que aquilo foi influência dos Genesis. Nos Tantra havia várias traves-mestras de influências: por um lado a onda do progressivo americano, de ‘monstros’ como o Billy Cobham ou John McLaughlin, por outro seguíamos os Yes ao nível da influência espiritual, eram a nossa escola. O lado visual vem muito de uma força minha, apesar de em tudo o que fazíamos haver uma colaboração de todos. Sempre tive uma tendência muito grande para o teatro, para escrever, para o cinema, sempre fui um apaixonado pela mímica, pela expressão corporal”, garante o guitarrista.
“Mistérios e Maravilhas” é progressivo cantado em português. “Por uma questão de pureza daquilo que queríamos fazer.” No álbum seguinte, “Holocausto”, passaram para o inglês, “pela mesma razão”. Frodo, a personagem de cabeça bicuda cujo nome é do heróis “hobbit” que atravessa as páginas de “O Senhor dos Anéis”, de Tolkien, e viria a tornar o alter-ego de Manuel Cardoso, surgiu mais tarde. Sinal de um onisrismo, nas suas facetas contraditórias, e de uma viagem que no caso dos Tantra não coincidiu com o uso de alucinogéneos. “Os Tantra nunca tiveram nada de psicadélico. O coração mecânico, o ‘drive’ por detrás do grupo, era eu. Desde o princípio, achei que era uma banda onde devia haver valores positivos. A noção de viagem prende-se com o facto de tanto eu como o baterista fazermos meditação, ‘raja yoga’. Era uma viagem espiritual.” Manuel Cardoso também praticou tantrismo.
O nome “Tantra” foi escolhido, no entanto, apenas por ser “universal”. O de Frodo apareceu por razões de outra natureza. “Tinha uma vida muito espiritual, mas ao mesmo tempo saía à noite até às cinco, seis da manhã, para ouvir música. Uma vida que, para as outras pessoas, não encaixava bem com a tal espiritualidade. Isso irritava-me. Decidi que, se as pessoas achavam que o Manuel Cardoso não tinha o direito de fazer aquilo, se mudasse de nome, iriam entender que quem estava diante delas era uma personalidade que não conheciam e tinham que aprender a conhecer. Ao Manuel Cardoso era fácil chegar ali e dizer: ‘Então Manel, o que é que nadas aqui a fazer? Então tu fazes meditação e estás aqui às quatro da manhã na ‘boite’ a beber uma beber uma Cuba livre e a dançar?’” Como Frodo, Manuel Cardoso, “atravessou a confusão” e “saiu do outro lado”.
Os Tantra não lutavam contra confusão de qualquer espécie. “As coisas encadeavam-se naturalmente. Existia um estado de espírito em que as músicas surgiam e se encaixavam de uma forma quase mágica.” “Mistérios e Maravilhas” é, para o guitarrista do grupo, “fruto de uma forma de estar” típica da sua época. “No que estava feito ali havia uma relação muito directa entre o que fazíamos e o que sentíamos. Hoje trabalha-se a música de uma maneira mais técnica, mais efectiva. Para nós, nessa altura, a vida estava de facto cheia de mistérios e maravilhas.”
Menos misterioso é o mínimo que se pode dizer do período de gravação do disco. “Uma epopeia”, nas palavras do músico. “O disco foi gravado em oito pistas, o que nos apresentava problemas graves. Por exemplo, levámos a nossa aparelhagem para o estúdio da Valentim e pusemos a bateria, que normalmente necessita só para si desse número de pistas, a passar pela nossa mesa de mistura de dezasseis canais que depois entraram noutros dois da mesa final. O técnico fazia o som no andar de baixo, só com a bateria, que depois era gravada no andar de cima. Foi quase um milagre gravar todos os outros instrumentos nas restantes seis pistas.”
Histórias, aconteceram várias. A do baterista que o médico “proibiu de tocar para o resto da vida” por “ter um problema de coração”, mas que acabou por gravar todo o álbum seguinte e fazer a digressão completa da banda. Ou da maneira como o piano de Armando Gama era transportado para os espectáculos, “cinco ou seis a carregarem um piano vertical de um quarto andar de um daqueles prédios antigos da Avenida da República, sem elevador, pelas escadas abaixo, para o concerto”. Coisas de “amadores” que “adoram o que fazem”. Trabalho, trabalho, trabalho. Uma das formas que permitiu a construção do sonho. “Nos dois primeiros anos ensaiámos doze horas por dia, incluindo os sábados. Mais dois ou três anos numa média de oito horas por dia, já com fins-de-semana livres, embora tocássemos aos sábados. Só mais tarde é que passámos para quatro horas por dia. Trabalhávamos que nem uns cães. Para fazer aquele género de música era preciso trabalhar muito, era muito complicado. Ainda hoje é difícil tocar algumas partes.”
Hoje, Manuel Cardoso, concluído um período de actividade na publicidade e na produção de bandas novas como os Doutores e Engenheiros ou os Vodka Laranja, pretende, de novo, “interactivar com a sociedade” enquanto músico. O desejo de regressar aos palcos só espera pela concretização do seu novo projecto, uma nova banda de “rock sinfónico” na mesma “linha espiritual” dos Tantra. Será a ressurreição do progressivo em Portugal? Mistério! O reactivar da “máquina da felicidade”? Maravilha

Como é

Era num tempo em que os dragões voavam num aquário e o mundo se oferecia em mistérios e maravilhas. Um tempo em que a música se fazia sem segundas intenções, apenas pelo desejo e necessidade de exteriorizar ideias e emoções. Por mais estranhas e, por vezes, desajustadas da realidade que fossem. Era assim em 1977, em Portugal. Já deixara de o ser em Inglaterra, no ano em que o progressivo era massacrado pelo “punk”. Por cá, o desfasamento temporal permitiu aos Tantra serem os primeiros e talvez únicos representantes da música progressiva produzida com o mesmo profissionalismo dos grupos “lá de fora”.
É verdade que antes já José Cid mostrara o esboço do que poderia ser um psicadelismo lusitano, os Petrus Castrus tinham apresentado o seu “Mestre” e os Beatnicks, com Lená d’Água, deixaram perder no esquecimento uma épica “Cosmonicação” apenas revelada ao vivo a alguns eleitos. Mas foram os Tantra que encheram o Coliseu de Lisboa, trazendo as máscaras, o virtuosismo instrumental e os efeitos especiais para uma música que até essa altura raramente excedera o amadorismo e nunca conseguira afirmar um conceito estético suficientemente autónomo para ultrapassar o mero estatuto de curiosidade.
Os Tantra tinham modelos, nunca o negaram, como os Genesis, pelo lado da teatralidade, os Yes, na complexidade orquestral dos arranjos, ou um jazzrock de fusão irmanado no misticismo de John McLaughlin. Souberam contudo reivindicar uma fantasia e liberdade de movimentos próprios. Um sentido de viagem, de sonho e libertação interiores que para muitos serviu de escape contra um quotidiano cinzento e musicalmente confrangedor. São ideias que ao longo da década seguinte deixaram de fazer sentido, mas que hoje a emergência de um novo psicadelismo e a busca de algo mais na música do que o simples funcionalismo ajudaram a recuperar. Os mistérios e as maravilhas não perderam a cor.