Arquivo da Categoria: New Age

Lightwave – “Tycho Brahe”+ Suspended Memories – “Earth Island”

pop rock >> quarta-feira >> 08.02.1995


Lightwave
Tycho Brahe (8)
Suspended Memories
Earth Island (8)
HEARTS OF SPACE, IMPORT. STRAUSS



Dois trios de música electronic posicionados na dianteira da escola planante actual. Os Lightwave são franceses e prolongam a linhagem da escola gaulesa dos anos 70 (Richard Pinhas, Bernard Szajner, Henry Skoff-Torgue, etc.), menos conhecida mas complementar da sua congénere nascida na mesma época em Berlim. Colaborararm com Hector Zazou (que neste disco toca sintetizador em dois temas) nas “Nouvelles Polyphonies Corses”, em “Sahara Blue” e no novo “Songs from the cold sea”. Deles conhecíamos o álbum “Nachtmuzik”, obra crepuscular, infelizmente não distribuída no nosso país. “Tycho Brahe” é um trabalho conceptual inspirado na obra do astrónomo dinamarquês do mesmo nome (1546 – 1601) que tentou conciliar as teorias geocêntrica e heliocêntrica. Pretexto para os Lightwave procurarem rproduzir a música das esferas, aquela arquitectura celestial que, ao longo da História, outros compositores, da Renascença aos contemporâneos passando pelo emblemático “Os Planetas”, de Gustave Holst, tentaram transcrever para a escala humana. Para se ter uma ideia de “Tycho Brahe” imagine-se os Tangerine Dream, numa faixa como “Movements of a visionar”, de “Phaedra”, ou o álbum “Rubycon”, sem sequenciadores. Música em levitação entre o tecido rendilhado das luzes de uma cidade e as frequências cósmicas de um pulsar.
Os Suspended Memories andam igualmente pelo ar, mas mais baixo. Depois do anterior “Forgotten Gods”, um álbum subterrâneo, o trio formado por Jorge Reyes, Steve Roach e Suso Saiz substituiu o material de espeleologia pela fotografia aérea do planeta. As raízes permanecem agarradas à terra, mas é como o corpo astral, que fica em suspensão sobre o físico, durante o sono. “Earth Spirit” é uma viagem astral sobre o planeta Terra, onde chegam filtradas pela alteração de plano de percepção o som distante de “didgeridoos”, ondulações oceânicas, lavas escorrendo pela encosta de montanhas, tambores de tribos ressuscitadas do princípio dos tempos. É como assistir, em estado de hipnose (Suso Saiz assegura a funcionalidade das “hypnotics”, como vem mencionado na ficha técnica…), ao movimento das marés, das nuvens e das placas tectónicas. O termo “música cósmica” – com sede, tinha que ser, na Califórnia (já agora, em plena vaga de “acid rock”, um senhor chamado Ned Lagin gravou uma fantástica “trip” de música electrónica, com título “Seastones”, sobre a erosão das águas, um pouco à maneira de Redolfi) – voltou a fazer todo o sentido. Para comprovação, basta sintonizar nas frequências emitidas, além dos nomes citados, por Robert Rich, Erik Wollo, Nyk Tyndall, Michael Stearns, Kevin Braheny, Mychael Danna ou Paul Avgerinos, entre outros. Os Light wave vão para o espaço numa nave. Os Suspended Memories preferem as técnicas de magia. Música para aprender a ver e a sair de si próprio.

Carlos Zíngaro + José Mário Branco + Luís Cília + Nuno Rebelo + U-NU + Júlio Pereira + Vai de Roda + Realejo – “O Que Está Para Acontecer”

pop rock >> quarta-feira >> 04.01.1995


O QUE ESTÁ PARA ACONTECER

CARLOS ZÍNGARO



MÚSICO DE GRANDE PROJECÇÃO ALÉM-FRONTEIRAS, CARLOS Zíngaro nunca teve em Portugal o reconhecimento merecido. 1995 será mais um ano em que o violinista se desdobrará por várias actividades no âmbito da nova música europeia. A reedição, no início deste ano, do compacto “Solo”, gravado no Mosteiro dos Jerónimos com o selo In-Situ, cuja primeira edição se esgotou, será acompanhada, na mesma editora, pelo lançamento de um álbum de genérico “Periferia”, por um quarteto do qual fazem parte, além de Zíngaro, o saxofonista Daunik Lazro, o contrabaixista Jean Bolcato e o pianista Sakis Papadimitriou.
Ainda em matéria de novos discos, sairá este ano, na Avant, editora de John Zorn, a ópera interactiva “Golem”, do teclista Richard Teitelbaum, na qual participam o violinista português, a cantora Shelley Hirsch, o guitarrista David Moss e o trombonista George Lewis.
Em termos de espectáculos, Carlos Zíngaro tem programado um concerto em Colónia, realizada pela WVDR (Rádio Televisão da Vestefália), integrado num festival de nova música, ao lado de outros dois violinistas, Mark Feldman e Malcolm Goldstein – todos em actuações a solo. No Festival de Artes de Seul, na Coreia, Zíngaro apresentará nos finais de Setembro um projecto duplo, com actuações com músicos locais e, em paralelo, espectáculos de bailado com música ao vivo e a participação dos bailarinos João Natividade e Margarida Bettencourt.
O mesmo formato, apresentado pela primeira vez em Macau no passado mês de Dezembro, será seguido em Tóquio, onde o músico português tocará com executantes japoneses. “A editora de Hong-Kong, Sound Factory, mostrou-se por seu lado interessada em editar, caso as ‘masters’ estejam em condições, a banda sonora deste projecto, que foi apresentado me Macau”, acrescenta Carlos Zíngaro.
Em Portugal, está agendado um concerto ao ar livre, em Idanha-A-Nova, com o compositor e percussionista espanhol Llorenç Barber, a realizar em Agosto numa ponte romana que liga Portugal a Espanha. Neste projecto, Barber tocará os sinos de vários campanários de igrejas da região.

JOSÉ MÁRIO BRANCO




AINDA NÃO SE ESGOTARAM OS ECOS DO espectáculo “Maio Maduro Maio”, realizado recentemente no S. Luiz, em Lisboa, e José Mário Branco não tem mãos a medir. O novo ano tem uma agenda carregada à sua espera. 1995 será o ano de edição em compacto da obra integral deste autor, numa editora que deverá ser a Edisom. Serão sete CD, os três que já saíram – o duplo “Mudam-se os Tempos” e “Margem de Certa Maneira”, e “Correspondências” – aos quais se irão juntar “A Mãe”, “A Noite”, “Ser Solidário / FMI” e um sétimo disco, que “terá coisas dispersas, anteriores, como ‘O soldadinho’, ‘Cantigas de amigo’, temas do GAC e alguns inéditos”. Os discos serão vendidos separadamente mas, ao mesmo tempo, será editado um pacote com os sete, contendo um livro autobiográfico e com a análise da obra e iconografia de José Mário Branco. Também para este ano está prevista a saída do disco, na Sony Music, com a gravação ao vivo do espectáculo “Maio Maduro Maio”. Outro dos projectos de José Mário Branco é a produção, em Janeiro, de um disco de fados, ao vivo, de Camané: “Vai ser gravado em condições relativamente inéditas em termos de fado, ou seja, vamos recriar, durante quatro noites, o ambiente pré-preparado de uma casa de fados, com pessoas escolhidas, vinho tinto e chouriço assado, um bocado como na televisão, com possibilidade de repetir”. Logo a seguir, será a gravação de um projecto de José Peixoto, José Salgueiro, Paulo Curado e João Paulo, um disco de canções infantis cantadas por Maria João. José Mário Branco terá a seu cargo os arranjos e a direcção musical. O disco chamar-se-á “Bom Dia, Benjamim” e é “a história de um dia da vida de um miúdo de cinco anos de idade” – após o que será a entrada em estúdio dos Gaiteiros de Lisboa, para a gravação do seu álbum de estreia, com edição prevista para o meio do ano, coincidindo com um concerto misto de José Mário Branco com o grupo, inicialmente agendado para este mês mas que acabou por ser adiado e substituído pelo espectáculo “Maio Maduro Maio”.

JÚLIO PEREIRA
JÚLIO PEREIRA ESTÁ ZANGADO COM A EDITORA, A SONY MUSIC. O ALBUM “ACUSTICO”, EDITADO no final do ano passado, foi bem recebido pela crítica, o que, segundo o músico, justificaria da parte da editora uma aposta maior em termos de promoção: “Eu, projectos para este ano, tenho vários, mas não me apetece divulga-los agora. Os projectos passam muito pela resposta aos trabalhos que a gente faz. Neste momento, ainda estou à espera que a minha editora, que é a Sony, avise e informe as pessoas do meu país, e, inclusive, do estrangeiro, que o meu disco saiu. Não quero entrar numa má, mas neste momento não me apetece ficar calado.” Está dado o recado.

LUÍS CÍLIA




“A ÚNICA CERTEZA É QUE NO FINAL DE JANEIRO sairá um disco meu”, diz Luís Cília, em relação a projectos para 1995. O disco, instrumental, será editado sob a etiqueta Strauss e conterá extractos de bailados, para a Gulbenkian, que o artista foi compondo ao longo dos últimos anos, em vários locais, como a Holanda e a Suíça. O saxofonista Edgar Caramelo será o único convidado presente. Para além deste álbum, Luís Cília não arrisca outros prognósticos. “Em Portugal não se pode fazer grandes projectos”, diz. “Sobretudo depois do que se gastou com Lisboa 94, com a Lisboa ‘gutural’, como eu lhe chamo. Não sei se restou algum dinheiro para os artistas portugueses. Projectos, em Portugal, só se forem a curto prazo.” Luís Cília conta também escrever a música para a peça “A Morte de Um Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller, que será levada à cena pela companhia de teatro Malaposta.

NUNO REBELO




NÃO APARECE MUITO NA IMPRENSA, GOSTA DE participar em projectos multimédia, de experimentar campos musicais alternativos e gravou um disco lapidar: “Sagrações do mês de Maio”. Este ano Nuno Rebelo, ex- Street Kids, ex-Mler Ife Dada e ex-Plopoplot Pot, vai dar um concerto à hora de almoço no Acarte, no dia 2 de Fevereiro. “Com música ao vivo sobre um vídeo do Edgar Pêra, ‘Um Mundo sobre o Outro, Desbotado’ baseado numa novela de Maria Isabel Barreno.” O vídeo, gravado para o ISPA, tinha 20 minutos de duração e música composta por Rebelo. No espectáculo ao vivo será, porém, apresentada uma versão diferente, intitulada “As alucinações estão aí”. No palco vai estar, ao lado de Nuno Rebelo, o guitarrista Jean-Marc Montera, que já tinha tocado este ano no S. Luiz, em Lisboa, com Paul Lovens e Carlos Zíngaro. Além deste concerto, Nuno Rebelo refere que apenas tem na agenda compor música para “umas peças de teatro à espera de subsídio, aquelas coisas…”.

REALEJO
OS REALEJO SÃO UM GRUPO DE MÚSICA DE RAIZ TRADICIONAL DO QUAL MUITO SE ESPERA PARA este ano. Fernando Meireles, construtor e tocador de sanfona, anunciou que a banda vai estar em estúdio em Janeiro e Fevereiro para gravar o álbum de estreia que em princípio deverá sair no início da Primavera. “Quem vai produzir o disco é o Luís Pedro Fonseca, que trabalhou no álbum da Né Ladeiras. Penso que ele irá vender o disco à EMI”. “Tudo surgiu”, explica Fernando Meireles, “por causa da nossa participação no disco do Fausto”. O álbum dos Realejo esteve para ser feito no Nova Estúdio, o que não aconteceu porque entretanto “surgiram umas complicações”. “Eles não tinham dinheiro para investir, tivemos que ser nós a fazê-lo”, diz Fernando Meireles. Depois da apresentação do disco, este músico é de opinião que para os Realejo “as coisas irão tomar um novo rumo” em 1995, embora reconheça que o ano que passou foi aquele em que os Realejo fizeram mais espectáculo – “tem vindo a melhorar de ano para ano!”

U-NU




OS U-NU SÃO UMA NOVA BANDA DO PORTO CUJA estreia discográfica, “A Nova Portugalidade”, o POPROCK inclui na lista dos dez melhores discos portugueses do ano. Para já, segundo o letrista do grupo, José João Cochofel, ex-membro dos Clã, os U-Nu “vão aguardar pelo tipo de aceitação que o disco terá e ver até onde poderá chegar”. A intenção é fazer espectáculos, “muitos espectáculos”. Para já, a apresentação em Lisboa de “A Nova Portugalidade” está marcada para o próximo dia 9, ao fim da tarde, no Chapitô. À noite, a banda fará uma actuação ao vivo no novo bar deste recinto. Dia 12, no Johnny Guitar, haverá nova oportunidade para o público lisboeta escutar a música inovadora dos U-Nu.
Num ano que para este grupo se poderá considerar muito positivo, José João Cochofel faz o balanço e acha que “houve espaço para os novos projectos”, embora considere que 1994 foi um ano “um bocado confuso”. “Houve coisas”, diz, “que surgiram de repente e de que ninguém estava à espera, como é o caso do Abrunhosa. Ninguém pensaria que o fenómeno tomasse as proporções que tomou. Por outro lado, so grupos mais consagrados andaram um bocado mais apagados”. Quanto aos U-Nu, não têm grandes razões de queixa, embora reconheçam que a época escolhida para a apresentação à editora do projecto “A Nova Portugalidade”, há cerca de dois anos, não tenha sido muito propícia – “o trabalho talvez estivesse ainda um pouco verde ara editar”. Certo é que os U-Nu apresentaram então uma maqueta “praticamente igual ao que seria o disco” e pouco tempo depois a editora, a Numérica, aceitou fazer a edição de um trabalho que o próprio José João Cochofel considera ser “um bocado difícil”. Até agora “A Nova Portugalidade” tem já vendida cerca de meia edição, o que não é mau para um disco com as suas características e acabado de editar. Apesar de “alguma confusão em certas lojas, que não têm o disco”, como acentua José João Cochofel, para quem a explicação para isto talvez seja “o facto de ser Natal…”.

VAI DE RODA
“VAI DE RODA” E “TERREIRO DAS BRUXAS” SÃO dois álbuns, distantes um do outro no tempo, que vieram recolucionar o conceito de música de raiz tradicional feita em Portugal. É pois com enorme expectativa que se aguarda o terceiro capítulo da obra deste grupo liderado pelo tocador de sanfona, e outros instrumentos, Tentúgal. O final da gravação deverá acontecer, segundo Tentúgal, no final de Janeiro, estando a edição do álbum apontada para a Primavera. O disco será, em princípio, editado pelos próprios músicos do grupo, não estando posta de parte a hipótese de uma editora o comprar. “Tivemos cinco propostas de editoras, mas nenhuma delas nos agradou, portanto resolvemos tomar nós a peito todo o processo”. Sobre os actuais Vai de Roda, Tentúgal diz que a sua formação “está mais madura” e sobre o terceiro disco da banda apenas adianta que “vai ter a inclusão de novos instrumentos, como a gaita-de-foles a ganhar uma maior predominância”. Neste momento, além do próprio Tentúgal, o grupo tem como gaiteiro principal Jorge Lira. Quanto a espectáculos, na altura em que os Vai de Roda deixaram de ter a Mundo da Canção como empresária – “estamos autónomos” -, incluindo o de apresentação do novo disco, irão ter lugar sobretudo na Galiza, à semelhança do que aconteceu em 1993.
Este ano será ainda, para Tentúgal, um ano de “animação”. O músico é produtor da Filmógrafo, com actividade no cinema de animação, tendo composto a banda sonora de “Os Salteadores”, uma curta-metragem realizada por Abi Feijó, que ganhou um prémio em Aix-la-Provence, obteve a Espiga de Ouro em Valladolid e agora está proposta para os Óscares. Tentúgal encontra-se neste momento a fazer música para os próximos projectos de Feijó.

Rão Kyao – “EM PÚBLICO” (artigo de fundo)

pop rock >> quarta-feira >> 30.11.1994


Em Público
Rão Kyao *




“Águas-Livres” é um disco bastante ligeiro e voltado para as sonoridades “new age”. É esta a sua verdadeira música?
O disco anterior, “Delírios Ibéricos”, apanhava uma sonoridade ibérica, com ritmos fortes. Este novo disco “new age”?… Não sei. O peso da música, cabe a cada um apreciar. Não sei se é ligeira. O disco tem, de facto, um determinado ambiente, que muitas pessoas que o ouviram descrevem como paisagístico. O próprio título é sugestivo, aquilo que anda à volta das águas livres, águas vivas, o canto dos rios, não só do rio, mas também de quem está nas suas margens. É ao mesmo tempo um álbum em que é possível a um tipo estar em casa, concentrado a ouvi-lo, sem ter que se levantar da cadeira de repente. Há discos que provocam essa cena, de certa maneira uma agressão. Em resumo, as pessoas é que me vieram dizer várias vezes que certas coisas que faço têm a ver com a “new age”. Para mim o conceito original deste termo era uma música, geralmente tocada em sintetizador, para ser ouvida em fundo.
Precisamente, os sintetizadores, em “Águas-Livres” apontam nesse sentido…
Uma das funções da música, e das mais importantes, é a terapêutica. Uma música que provoca aclmaria é uma música superútil. Mas acho que não faço essa música, a “new age”, porque não sou capaz de tocar música sem estar a contar uma história. Cada som tem que fazer um sentido. Quanto aos sintetizadores, admito que me venham dizer que não devia fazer nada com eles, que devia ser tudo acústico. Mas, lá está, já fiz discos emq eu tudo o que utilizei eram instrumentos de corda. Neste utilizei o sintetizador, porque acho que a sua linguagem, utilizada de uma determinada maneira, pode funcionar. Eu, como é óbvio, como é que posso ser fã de música electrónica, tocando um instrumento como a flauta de bambu? Até porque utilizar os sintetizadores para atrair é algo que não está a dar. Já foi feita tanta cena dessas que, inclusivamente, na “new age”, os tipos estão a ir para o acústico.
Mas há uma certa preocupação em fazer um som acessível, comercial?
Eu não gosto de ser completamente hermético. Sou um tipo que basicamente sempre esteve muito ligado à melodia, uma melodia cantável. Nunca fui de fazer coisas muito sinuosas. Porque não as ouço. Tudo o que eu toco eu canto e tudo o que canto eu toco. É como quando se ouve um temam folclórico, simples, mas em que se sente que é uma coisa profunda, embora tenha uma melodia que toda a gente canta.
A influência do Oriente continua a estar presente em força.
Eles têm uma tradição exactamente ao nível da terapia da música. Que tanto pode aclamar como pôr um tipo aos tiros. Têm consciência desse poder desde sempre. Através de uma coisa a que chamam “raga”, que é uma emoção que, sem palavras, determina, pela conjugação das notas, uma certa e determinada emoção. Que pode ser agressiva ou pacifista. Sobretudo pacifista, porque a música, em princípio, é mais a linguagem do amor do que do ódio. Este tipo de ligação do Oriente ao Ocidente, comigo, passou-se de uma maneira muito espontânea. A primeira vez que ouvi um certo tipo de música, nomeadamente a indiana, fiquei apaixonado. E tive a sensação de que já tinha ouvido aquilo. Discos do Ravi Shankar e de outros músicos que ouvi depois e até me influenciaram mais.
De que maneira se processou a sua passagem pelo saxofone, um instrumento que pode ser muito agressivo, para a flauta de bambú?
Foi uma opção. Eu toco aquilo que ouço na minha cabeça. E tenho uma coisa muito ligada com a voz. Tento aplicar a minha composição pessoal a uma certa sonoridade que não é especificamente indiana. Às vezes, em casa, sozinho ou com outras pessoas, com um tocador de “tablas”, faço coisas abertamente indianas. Mas é mais uma homenagem, um estudo. Mas, naquele sentido de tocar o que me está na cabeça, vejo a música com uma flexibilidade muito grande. Há música que é feita para ser ouvida em alto volume. A música indiana ouvida em alto volume não funciona, porque se está alevar com um volume de som que supera a tal felexibilidade.
A música indiana, para ser apreciada, exige em primeiro lugar que nos instalemos dentro dela, não é verdade?
Exacto. Tem que se fazer um esforço. Mas não é só a música indiana. Toda a boa música. A flauta de bambú, por exemplo, beneficia em ser ouvida de perto, pela flexibilidade que tem. É um instrumento muito ligado com a voz.
Ao contrário da flauta de concerto, com chaves?
O bambú tem uma leveza e ao mesmo tempo um peso, uma flexibilidade que o metal não possui. Houve fases por que passei, em que devido a um estudo profundo, cheguei à conclusão de que andava a tocar saxofone como se fosse uma flauta de abmbú. A flauta de bambú tinha tomado conta da minha linguagem.
É verdade que costuma ir tocar flauta sozinho para as montanhas? Toca para quem?
Tem a ver com a respiração. Gosto de respirar bom ar, de estar num bom ambiente. Depois, gosto de ouvir os pássaros. Por exemplo, tenho um tema chamado “Evocação”, em que a música aparece sob formas completamente primitivas, como se fossem os primeiros sons que entrassem na cabeça. O solo que faço neste tema não é bem um solo, estou constantemente a pensar como se fosse um pássaro, a maneira como ele coloca as notas.
Tocar, dizer sem intermediários. É isso?
Exactamente. Um tipo de canto, a voz dos animais… Quando vou para um sítio desses, que tanto pode ser nos arredores de Lisboa como na região de Viseu, onde há uma pedra com uma alcatifa de musgo.
Sintra diz-lhe alguma coisa?
Então não diz? Sintra é para mim um lugar alucinante. O único problema que tem Sintra é aquela humidade toda, um tipo tem de estar ali com um chapéu na cabeça…
É verdade que houve uma altura da sua vida em que levava um estilo de vida um bocado boémio? Em caso afirmativo de que modo conciliava o excesso com a tal simplicidade quase ascética que professa?
Sou um tipo que gosta de sair, de beber o seu copo, de contactar com as pessoas, da paródia. Sou um gajo de Lisboa. É uma parte de mim. Passo quase todo o dia a tocar, a concentrar-me, a procurar melhorar, como qualquer músico. Quando chega a noite, a hora de jantar, sou um gajo que gosta de vinho – tinto – depois as coisas relacionam-se com este facto. Por exemplo, é como um tipo ser músico da clássica. Como é que se pode determinar a vida que faz pelas peças que interpreta?
Esse é o caso do intérprete. No seu caso, disse há pouco que tinha uma relação diferente com a música…
Certo. Mas, de qualquer maneira, um tipo também precisa de se meter em peças que eventualmente são de grande concentração. Como um actor. Não se percebe se um actor está a fazer comédia ou não, não se percebe como é que ele funciona na realidade.
A música significa para si, além de profissão, uma iniciação, uma forma de aperfeiçoamento pessoal?
Acho que a última frase é a mais adequada de todas. É difícil, por vezes, por palavras, determinar como serão as coisas. A música tem efeitos, lá está, terapêuticos, mesmo a nível espiritual. Algo que vai e puxa para cima. Um tipo que me diz, por exemplo, o que lhe apetece fazer musicalmente é reproduzir o barulho do pessoal a buzinar no meio da rua… Tudo be. Vamos ver um concerto, que maravilha, uma série de gajos sentados a ouvir buzinas no meio da rua (risos). Podem vir ter comigo e dizer-me: “Mas eu tenho direito a fazer isto!” Logicamente que têm direito a usar uma serra mecânica – já houve quem o fizesse -, só que para mim isso não faz sentido nenhum. Para quê, para sair chateado com uma coisa que é antiterapêutica. Todos aqueles que eu gosto de ouvir tocar música fazem-me sentir leve. Os grandes cantores, música clássica, os mestres indianos, com quem aprendi a importância da boa e profunda afinação do instrumento. No sentido de uma afinação que se torna cada vez mais interior.
* Compositor, ex-saxofonista, executante de flauta de bambú, de quem acabou de ser editado o álbum “Águas-Livres”.