Arquivo mensal: Setembro 2020

Von Magnet, Cassandra Complex, e Test Dept. – “‘Extensões Musicais’ Do Citemor 92 Começam Hoje Em Montemor-O-Velho- A Decadência Da Civilização Ocidental” (festivais / concertos)

Cultura >> Sexta-Feira, 31.07.1992


“Extensões Musicais” Do Citemor 92 Começam Hoje Em Montemor-O-Velho
A Decadência Da Civilização Ocidental


Em Montemor-O-Velho, no seu castelo medieval, está montado o palco para três concertos que vão abalar os alicerces da civilização ocidental. Von Magnet, Cassandra Complex, e Test Dept. actuam integrados nas “Extensões Musicais” do Citemor 92.



Os Test Dept., banda britânica pioneira, ao lado dos Einstuerzende Neubauten e SPK, da música industrial que a partir dos anos 80 tem vindo a corroer os alicerces da civilização ocidental, prometem os abalos maiores numa noite (a 22 de Agosto) que se prevê inesquecível.
Mas não são só os mestres do martelo-pilão que se preparam para perturbar o sossego das noites beirãs. Os Van Magnet que dão um concerto hoje no castelo, e os Cassandra Complex (no mesmo local, a 15 de Agosto) são duas outras bandas que a Novas Audições Objectivas (NÃO) traz a Portugal, integradas no programa da “extensões musicais” do Citemor 92, festival de teatro que desde dia 21, tem vindo a decorrer nesta localidade.
Qualquer destes agrupamentos, pela sua prática teórico-musical, ilustra bem o conceito que a NÃO pretende implantar, definido como uma “ideologia produtiva”, sintetizada na frase de Philippe Von, dos Von Magnet: “A nossa religião consiste em dizer aos jovens que esqueçam o seu conforto, experimentem agir, sejam mais curiosos, corram riscos e lancem-se em delírios e projectos.”
A ideia de criação da NÃO surgiu em Coimbra, “numa esplanada de um café”, para procurar responder à estagnação de uma “cidade apática que hiberna durante todo um ano e que repentinamente, e como um período menstrual bem regulado, desperta numa semana de Maio para a bebocultura dos líquidos louros de facto agradáveis, mas que caem num estômago vazio de conteúdos culturais realmente importantes e, sobretudo, contemporâneos”. Entre tantos líquidos, uns da parra, outros orgânicos, não é claro o sentido geral da preposição, se bem que, num pequeno manifesto de intenções, os NÃO esqpecifiquem que os move a “vontade e a necessidade de agir”. Tudo contra aquilo a que chamam a “cultura do mofo”. Na sua sede de acção os NÃO trouxeram já a Portugal espectáculos dos Young Gods e The Grief.
Os Von Magnet, primeira banda a actuar, são um grupo de mutantes sediados em França, praticantes do que eles designam por “Electro flamenco”, a junção do sangue, da faena e das castanholas ao ritmo dos computadores, numa concepção semelhante à da fase recente dos catalães La Fura Dels Baus. Álbuns como “El Sexo Surrealista” ou o novo “Computador” (no sentido de “matador”) são o pretexto para os Von Magnet apresentarem a sua versão do que será, em traços largos, a nova linha existencial para o século vindouro: tecnologia, frio e rigor. O estilista será, obviamente, o anti-cristo, trajado de tecnocrata no escritório central da idade do gelo.
Não é muito diferente a história que os Cassandra Complex t~em para contar, um grupo belga militante da primeira linha da denominada “Electronic Body Music” que passa por ser o género dançável preferido dos androides. Eles referem-se à sua música como “cyberpunk” e ao futuro como um “pesadelo tecnológico”. Sem esquecer, dizem, a utilização de máquinas para exprimir sentimentos humanos. A audição dos discos deixa, no entanto, no ar a suspeita em contrário: de serem antes os humanos que exprimem os sentimentos das máquinas…

Um Prodígio Visual

Mas o grande acontecimento deste Verão em Montemor-O-Velho vai ser, sem dúvida, o espectáculo “multimédia” apresentado pelos Test Dept. munidos da sua estética totalitária baseada no confronto entre a Natureza e a Vontade de Poder, o senhor e o(s) escravo(s), o prazer e a tortura. Exemplificada em álbuns como “Beating the Retreat”, “The Unacceptable Face of Freedom” e “Terra Firma” ou no vídeo “Program for Progress”, que há alguns anos atrás escandalizou um dos auditórios do Centro de Arte Moderna, em Lisboa. Ao vivo, os Test Dept. são um prodígio visual que recupera para a música popular a noção de “trabalho” e de movimento físico, de músculos em actividade moldando a fogo e pelo sopro de demónio, nota a nota e a golpes de ruído, uma imensa arquitectura de metal em louvor ao homem “ex-machina”.
A música dos Test Dept. é como uma fábrica em pelan laboração, portadora de dor, da dor inerente a todo o acto de criação. Só que eles exageram. As percussões metálicas que constituíram o emblema inicial do movimento da “música industrial”, juntam-se ao ritmo implecável dos computadores e aos sons tradicionais produzidos por gaitas-de-foles ou por um “didjeridoo”.
O “admirável mundo novo” propagandeado pelso Test Dept. é um mundo construído pela colmeia, um mundo em que a dignidade só pode ser conferida pelo sofrimento e o corpo humano se assume como uma peça de um imenso maquinismo de precisão.
Tudo isto no espaço de uma noite, numa pacata localidade subitamente transformada no centro da decadência da civilização ocidental.

Wim Mertens – “Retrospectives, Volume 1”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 29.07.1992


Wim Mertens
Retrospectives, Volume 1
CD, Les Disques du Crépuscule, distri. Edisom



Este primeiro volume de uma retrospectiva da obra do compositor belga, que a si próprio se considera um génio portador de uma mensagem redentora, apresenta a sua faceta melódica e acessível, bastante mais próxima do romantismo (sobretudo nas peças para piano) do que da escola minimalista que caracterizava as suas obras iniciais com os Soft Veredict (aqui representadas por três temas extraídos de “Struggle for Pleasure”, “Maximizing the Audience” e “Vergessen”).
São aquelas melodias eternamente recorrentes que, disco a disco, faixa a faixa, parecem descobrir novas formas de construção e adaptação. É aquela voz de “falsetto”, às vezes tão próxima do “castrato”. São as mãozinhas de veludo que tão bem sabem elaborar no piano as tais melodias que não se consegue deixar de trautear. Mas antes isto que os solos de sopro intermináveis de “Instrumental Songs” ou o megapesadelo conceptual de “Alle Dinghe”. Fora estes desvios de grande criador (demasiado grande, em “Alle Dinghe”, são quase sete horas de genialidade pura, do tipo, a ideia é magnífica, a audição uma tortura), Wim Mertens é o Clayderman dos intelectuais. Fica-lhe bem um “napperon” e uma jarra de flores sobre o piano e, em fundo, imagens de um bosque ou de um céu azul com passarinhos. Mas, lá está, as melodias não nos saem da cabeça… (8)

Holger Czukay – “Movies” + “On The Way To The Peak Of Normal” + Holger Czukay, Jah Wobble & Jaki Liebzeit – “Full Circle”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 29.07.1992


RÁDIO ACTIVIDADE
HOLGER CZUKAY
Movies (9) / On The Way To The Peak Of Normal (9)
CD’s, Electrola, import. Contraverso
HOLGER CZUKAY, JAH WOBBLE & JAKI LIEBZEIT
Full Circle (8)
CD Virgin, import. Lojas Valentim de Carvalho



Membro fundador dos Can, banda germânica formada em 1968, em Colónia, e que influenciou toda uma geração posterior de músicos rendidos às virtualidades da fusão entre o rock e a música étnica, Holger Czukay prosseguiu a solo uma carreira que se pode considerar, de entre as dos restantes membros do grupo, a mais próxima do espírito e das tendências do colectivo original.
O método seguido pelos Can e, em particular, por Czukay é na aparência simples. Trata-se de retomar o transe rítmico da música africana, presente na bateria metronómica de Jaki Liebzeit, e sobrevoá-lo com acidentes instrumentais, um pouco como se à procura de uma estação de rádio, ao acaso. A rádio é, de resto, uma das fixações de Czukay, omnipresente na totalidade dos álbuns dos Can, na capa e nas “Radio pictures series” de “Full Circle” ou no título do álbum “Radio Wave Surfer”. Holger Czukay alimenta-se de ondas curtas, ondas médias e frequência modelada. Hipnose e parasitagem são as duas alavancas que suportam e movem o conceito central do músico. A primeira induzida pela repetição e circularidade. A segunda, no modo como os sons de instrumentos como a trompa, a flauta ou os efeitos electrónicos surgem no tecido rítmico de base, quase como suas emanações. Também as técnicas de colagem, percursoras de posteriores facilidades concedidas pelos “samplers”, de que são exemplos paradigmáticos “My Life in the Bush of Ghosts”, da dupla Brian Eno – David Byrne, ou a obra fabulosa dos italianos Roberto Musci e Giovanni Venosta desempenham um papel fulcral em qualquer dos discos de Czukay.
Jah Wobble, presente em “On the Way to the Peak of Normal” e “Full Circle”, encarregar-se-ia de orientar as pulsações rítmicas no sentido das fantasmagorias dub, entre a transparência espectral que viria a ser explorada por Arthur Russell em “World of Echo” e a maior percentagem de energia recolhida das músicas do mundo, e em particular do Norte de África, que nos Invaders of the Heart encontraria o seu ponto de máxima voltagem. “Movies” (1980), e “On the Way to the Peak of Normal” (1982) não se afastam demasiado dos postulados anunciados em primeira mão pelos Can. Em ambos a bateria de Jaki Liebezeit, outro dos membros fundadores da banda, assume de forma subtil o comando das operações, na criação e sustentação de ambientes tribais que, no caso de “Movies”, são interceptados pelas texturas quase sinfónicas de “Hollywood Symphony” ou pela súbita eclosão feérica, convidando à dança, das vozes étnicas gravadas “a priori” e atiradas para a frente da mistura no desenho melódico de “Persian Love”. 2On the Way to the Peak of Normal” revela, por seu lado, um experimentalismo encaminhado numa direcção mais precisa e uma maior apetência pela repetição, como que a querer realçar ainda mais o poder de hipnose, patente no longo mantra que é “Ode to perfume”, ou então na invenção de um “muzak” abstracto, emq eu os sons se organizam como por um qualquer passe de magia “simpática”, segundo uma lógica de que só Holger Czukay detém o segredo. Em “Full Circle” é mais audível o toque de Jah Wobble. Na voz que parece liquefazer-se, à deriva entre pulsões contraditórias. Nas derrapagens para as vizinhanças do dub que em “Snake Charmer” iriam dar à apoplexia funky. Na maior previsibilidade e no pôr a nu de estruturas Na maior previsibilidade e no pôr a nu de estruturas que em “Movies” e “On The Way to the Peak of Normal” se orientam no sentido do desconhecido. Em qualquer destes dois discos existe uma riqueza de pormenor que explode a cada instante, como se cada fracção de um tema pudesse dar origem a uma infinidade de novas ideias. Dos tais discos onde a cada audição se desvelam novas perspectivas, mantendo-se sempre a frescura da “primeira vez”. “Full Circle” é mais uma cristalização. A solidificação de um conceito conhecido. Uma estação de rádio perfeitamente sintonizada.
Anos mais tarde, Holger Czukay destruiria toda a magia radiofónica, em “Radio Wave Surfer”. Aqui ela permanece, no auge da sua actividade.