Arquivo mensal: Dezembro 2017

Natalie MacMaster – “In My Hands” + Sandy Denny – “No More Sad Refrains – The Anthology” + Jean-François Dutertre – “Ballades Françaises – Volume 2” + Faubourg de Boignard – “Terra Gallica” + Vários – “Naciones Celtas”

27 Outubro 2000
FOLK


A idade do “glamour”



Para os lados da folk céltica de rosto feminino, retocam-se as imagens, esmera-se na produção e, se for caso disso, carrega-se no “sex appeal” e no “glamour”. É o caso de Natalie MacMaster, violinista canadiana com raízes familiares em Cape Breton, autora do recente “My Roots are Showing”. No novo “In my Hands” é realçada sua fotogenia e a música submete-se aos imperativos do “marketing”. Mas Natalie, como Kathryn Tickell, Eileen Ivers, ou Susana Seivane, é muito mais do que um simples rosto bonito. É verdade que o tema de abertura que dá título ao álbum é um tiro disparado ao mainstream e às estações MOR (“middle of the road”) com todas as hipóteses de agradar ao grande público, mas Natalie não perde tempo em mostrar que está longe de renegar o passado, ao utilizar em “Gramma” uma gravação da voz da sua avó de 91 anos de idade, antes de se lançar num “reel” imaculado. “Space ceilidh” é outra das curiosidades – positiva ou negativa, consoante a perspetiva… – de “In my Hands”, música de baile “ceilidh” vestida com programações eletro e sintetizadores espaciais, a fazer lembrar os Rare Air. Mas quando Natalie se lança, logo de seguida, num fair-portiano “Olympic reel”, fantástico de técnica e de swing, tudo se perdoa a esta rapariga de cabelos louros encaracolados. Alison Krauss e Sharon Shannon são duas convidadas especiais de “In my Hands”, um álbum de contrastes marcado pelo espírito da época (Rounder, import. FNAC, 7/10).

Sandy Denny, o mito e a voz, nunca morrerá na memória dos amantes da folk. A obra que legou ficará para sempre como imagem de uma vida trágica e de uma carreira prematuramente interrompida por um estúpido acidente (queda de uma escada) que pôs termo à sua vida em 21 de Abril de 1978. Personalidade insegura, senhora de uma voz e de um estilo inigualáveis, Sandy Denny notabilizou-se nos Fairport Convention e nos Fotheringay, depois de uma passagem fugaz pelos Strawbs e antes de enveredar por uma carreira a solo que se saldou pela edição de “The North Star Grassman and the Ravens”, “Sandy”, “Like An Old Fashioned Waltz” e “Rendez-Vous”. A presente coletânea (mais uma!), “No more Sad Refrains – The Anthology”, surgida pouco tempo depois do volume “An Introduction to…” que lhe foi dedicado, passa em revista, em dois CD, o melhor da sua música, incluindo clássicos com os Fairport Convention e Fotheringay, um par de temas que gravou com o projeto The Bunch e dois “demos”. “Fotheringay”, “Who knows where the time goes?”, “Crazy man Michael”, “Farewell, farewell”, “The sea”, “Late November”, “The north star grassman and the ravens”, “It suits me well”, “Solo” e “Like an old fashioned waltz” são canções que nunca deixarão de nos assombrar. Uma edição para acarinhar até ao dia em que a rosa deixar de ter espinhos (Island, distri. Universal, 9/10).

França. Jardim das delícias. Histórias da Gália profunda. Canções tradicionais dramáticas ou líricas, reunidas na série “Ballades Françaises – Volume 2”. O jardineiro dá pelo nome de Jean-François Dutertre, que, para quem não sabe, é um dos magos da folk europeia na sua vertente mais onírica e palaciana, cantor, executante de sanfona e “Épinette des Vosges”, elemento fundador da única banda folk francesa que conseguiu estar à altura (e por vezes ultrapassar!) dos Malicorne, os Mélusine, e participante no projeto seminal do clube “Le Bourdon”, responsável pela obra-prima “Le Galant Noyé”. Neste novo álbum, para o qual recrutou os seus antigos companheiros Jean-Loup Baly, Yvon Guilcher e Emmanuelle Parrenin, Dutertre assume um lado mais narrativo que nos Mélusine, com a beleza, por vezes sufocante, de baladas como “Le deuil d’amour”, “La barbière”, “Bella Louison”, a conferir a este álbum um apelo tão forte para os apreciadores de folk francófona, como para os de música antiga (Buda, distri. Dargil, 8/10).

Ainda em França, os Faubourg de Boignard divertem-se. Com “Terra Gallica”, segundo álbum deste grupo da família de “hereges” como os La Bottine Souriante, Ad Vielle Que Pourra, Blowzabella, Kepa Junkera e Cock & Bull, a folk deita às urtigas o ar sisudo e deixa as gaitas-de-foles, acordeões e violinos aventurarem-se por uma música liberta de constrangimentos formais. Programações, energia contagiante e imagens trocadas do imaginário céltico atropelam-se entre declamações e “trompe l’oeils” onde as geografias europeias, asiáticas e africanas se confundem em citações sem autor. Como se “Terra Gallica” fosse um argumento caído da “Symphonie Celtique” de Alan Stivell. Folk rock ao melhor nível. (Boucherie Productions, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8/10).

Mais um volume duplo, o quarto da série “Naciones Celtas”, como sempre abarcando um espectro largo das chamadas “músicas célticas” que aqui se estende ao Kansas, nos EUA (!). Entre nomes consagrados – Relativity, Bothy Band, Bleizi Ruz, JSD Band, De Dannan, The Dubliners, Silly Wizard, Ar Log, Jerry Holland, Jerry O’Sullivan, Ubiña – e ilustres desconhecidos – Connie Dover (a tal norte-americana do Kansas), Mary Jane Lemond (uma Enya de Cape Breton), Jim Fidler, de Newfoundland, Dhais, e Faíscas de Xiabre, ambos da Galiza, Bucca (uns Fairport Convention da Cornualha) e MacLullagh Vannin, da Ilha de Mann, os mais interessantes –, o destaque vai para a presença de artistas canadianos, presentes pela primeira vez nas “Naciones Celtas”. Além dos já bem conhecidos La Bottine Souriante e de um dos seus elementos a solo, Yves Lambert, participam Daniel Roy, Les Charbonniers de L’Enfer, Les Batinses e Barachois, estes últimos com um delicioso pedaço de cajun reel e humor vocal francófono (Fonofolk, distri. Megamúsica, 7/10).



“Punk’s Not Dead” – (artigo de opinião / resposta a leitor)

25 de Fevereiro 2000
OPINAR


Punk’s not dead




Sou grande fã de punk rock. PUNK ROCK, atenção. Não me refiro a esses punks comerciais que proliferam nos nossos dias, refiro-me sim ao verdadeiro punk rock: Ramones, Dead Boys, The Clash… Grandes tempos!
Será que me podiam dar umas dicas? Gostava de conhecer mais grupos punk rock desse tempo. Obrigado.
Henrique Cabo, via e-mail

Bom, caro Henrique, a lista é extensa, mas vou restringir-me a alguns dos álbuns mais representativos de grupos punk ou aparentados, da época. Algumas das bandas citadas evoluíram para fora dos parâmetros punk. Como consequência, nalguns casos, os seus melhores álbuns pouco ou nada têm a ver com este movimento, como acontece com os Wire, Siouxsie and the Banshees, The Fall ou The Stranglers, por exemplo.A lista que se segue, por ordem alfabética, cinge-se, pois, aos álbuns mais próximos e característicos do espírito e da atitude punks originais.

Em Inglaterra The Adverts: Crossing the Red Sea with The Adverts (1978); Angelic Upstarts: Teenage Warning (1979); Bethnal: Dangerous Times (1978); The Boomtown Rats (1977) e A Tonic for the Troops (1978); Buzzcocks: Another Music in a Different Kitchen (1978, o meu preferido da lista) e Love Bites (1978); Chelsea: Chelsea (1979); The Clash: The Clash (1977), Give ‘em enough Rope (1978) e London’s Calling (1979); Crass: The Feeding of the 5000 (1978); The Damned: Damned, Damned, Damned (1977) e Music For Pleasure (1977); Eddie and the Hot Rods: Teenage Depression (1976); The Fall: Dragnet (1979); Generation X: Generation X (1979); The Jam: In the City (1977), This is the Modern World (1977) e All Mad Cons (1978); The Mekons: The Quality of Mercy is Not Strnen (1979); Rezillos: Can’t Stand the Rezillos (1978); Sex Pistols: Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols (1977); Siouxsie ant the Banshees: The Scream (1978); Slaughter and the Dogs: Do it Dog Style (1978); The Stranglers: IV Rattus Norvegicus (1977), No more Heroes (1977) e Black and White (1978); UK Subs: Another Kind of Blues (1979); The Undertones: The Undertones (1979); Wire: Pink Flag (1977) e Chairs Missing (1978); X-Ray Spex: Germ Free Adolescents (1978); 999: Separates (1978) Nos Estados Unidos e… Dead Boys: Young, Loud & Snotty (1977) e We have Come for your Children (1978); James Chance & The Contortions: Buy (1979) + James White & The Blacks: Off White (1979); Jane Aire & The Belvederes:Jane Aire & The Belvederes (1979); MX-80 Sound: Hard Attack (1977); Richard Hell & The Voivods: Blank Generation (1977); Ramones: Ramones (1976), Leave Home (1977) e Rocket to Russia (1977); The Saints (Austrália): I’m Stranded (1977) F.M.



Pink Floyd – “The Wall” em CD e DVD – O Muro Reconstruído (artigo de opinião)

31 de Março 2000


“The Wall” em CD e DVD

O muro reconstruído



Por mais que as duas Alemanhas se unifiquem, por mais que a guerra fria tenha acabado, por mais que os alunos batam nos professores, o muro dos Pink Floyd não vai abaixo. Foi construído pela primeira vez em 1979 por Roger Waters, que, em matéria de paranóia, não fica atrás de Syd Barrett, com a diferença de ter jeito para pedreiro. Vinte anos depois o muro continua sólido, como o provam a edição do espectáculo ao vivo de “The Wall” e o lançamento do filme de Alan Parker em DVD.

Foi a resposta dos Pink Floyd ao punk. A vingança do novo-riquismo contra a penúria de meios, a vitória do artifício sobre a realidade nua e crua. “The Wall”, dos Pink Floyd, é um monstro na verdadeira acepção do termo, uma ideia megalómana de um músico dilacerado posta em prática por um grupo que nasceu das alucinações do psicadelismo e acabou a mamar nas tetas da indústria.
Apesar de tudo isto, do exagero, dos gritos e da despesa em tijolos, “The Wall”, o álbum original de estúdio, de 1979, dos Pink Floyd é uma das obras-chave do final dessa década. O testemunho individual de um músico cercado pelos seus fantasmas em pleno domínio do grupo, um pouco como “The Lamb Lies down on Brodway” representou em relação a Peter Gabriel e aos Genesis.
Mas não era suficiente. Não foi suficiente. Em breve esta fantasia sobre a prisão que quase todos vamos construindo para nós próprios ao longo da vida se transformou em espectáculo de circo. Em arenas pejadas de multidões histéricas, ávidas de verem porcos insuflados voar sobre as suas cabeças e de assistirem ao desmoronamento real de um muro verdadeiro construído laboriosamente ao longo de mais de duas horas de um espectáculo que obedecia mais ás regras da ópera do que do concerto pop convencional.

Mãe querida

A presente reedição de “The Wall”, reintitulado “Is there anybody out there? The Wall live”, com distribuiçao EMI-VC, reproduz alguns dos concertos incluídos na digressão mundial realizada entre 1980 e 1981 constituindo nova oportunidade para a miudagem de todo o mundo gritar “Ei, professores, deixem os putos em paz!” e os adultos exorcizarem alguns dos seus traumas, sobretudo em relação às mães gordas que os estrangulavam com muitos beijinhos, chocolates e avisos sobre a ameaça que constitui a existência de todas as outras mulheres para os seus queridos filhinhos. No filme de Parker eram exemplarmente representadas pelo trabalho de animação de Gerald Scarfe com flores-vaginas canibais.
Roger Waters passou por uma série desses traumas. “The Wall” é, pois, o seu testemunho autobiográfico. É a história da ascendência e queda, da alienação e, finalmente, do julgamento da personagem Pink (alter ego de Waters), uma estrela de rock afundada nos seus próprios medos e contradições. Uma obra amarga, sobre a impotência e o jugo exercido pelo poder sobre o indivíduo, desde o berço até à morte, passando pela família e pela escola. A mãe (a figura do pai está ausente da trama, o de Roger Waters foi morto durante a II Grande Guerra), os professores, as namoradas, os juízes são todos personagens sinistras cuja única finalidade é acusar-nos pelo simples facto de estarmos vivos. Perante este ataque concertado restam aos indivíduos duas hipóteses: ou se rende e se deixa esmagar pela engrenagem, ou junta-se aos esquadrões da morte, passando ele próprio de vítima a carrasco. É esta a opção do herói do filme. Mas, seja qual for a escolha, o resultado é o mesmo: a solidão, a prisão, o muro, cada vez mais alto e sólido, a abraçar-nos com os seus braços de cimento, como a tal mãe gorda que dava beijinhos e chocolates. Resta a fuga e esta é a loucura. “Crazy, crazy, over the rainbow, I am crazy” canta Roger Waters na faixa do julgamento, “The trial”, uma das mais belas e pungentes de “The Wall”. Syd Barrett já o tinha percebido antes, assinando a sua rendição logo no início de carreira dos Pink Floyd. Roger Waters teve a vantagem de poder levantar voo no helicóptero da razão e sobrevoar a sua própria paranóia, assistindo de cima ao espectáculo da demência. Reconheça-se-lhe a força e o engenho para, pelo menos durante duas horas de catarse, domar a fera, aprisionando-a na redoma do “show business”.

“Show” de insufláveis

Também é verdade que a partir daí ele e os Pink Floyd se transformaram em sombras, em ecos, em fragmentos estilhaçados desse momento irrepetível em que, como aconteceu frequentemente ao longo da História, a loucura se converteu em arte. Hoje, os Floyd já nem sequer se importarão em verificar se estão dentro ou fora do muro. Mantêm-se como invólucros vazios (na capa de “Is there anybody out there? – The Wall live” os rostos dos quarto músicos são mostrados como máscaras…), reciclando velhos fantasmas em cerimónias de luxo. O muro está, pois, mas sólido do que nunca.
“Is there anybody out there” é, em conformidade, um objecto apelativo, envolto em imagens e memórias. Além dos dois CD, arrumados em caixa, esta primeira reedição (limitada) inclui um livro profusamente ilustrado, com dados detalhados sobre o espectáculo, inclusive várias plantas dos recintos e, claro, imensas fotos da bonecada (reproduzida a partir das imagens animadas de Gerald Scarfe criadas para o filme de Alan Parker), insufláveis e marionetas: a mãe, o professor, o juiz, o porco…
Em simultâneo com a edição do CD duplo, “The Wall” ressurge igualmente na forma de uma versão em DVD, editada pela Sony Música, do filme realizado em 1982 por Alan Parker. Ao contrário do álbum de estúdio, mais metafísico, o filme segue as pisadas da estrela de rock protagonizada por Bob Geldof, ficando o lado onírico representado sobretudo pelo espectacular trabalho de animação de Gerald Scarfe. O DVD, com som remasterizado e imagem melhorada para alta definição, inclui material de filmagens inédito, um “making of” de 25 minutos e um documentário de 45 minutos com entrevistas a Roger Waters, Gerald Scarfe e Alan Parker, entre outros. Menus interactivos e a possibilidade de seleccionar cenas e canções constituem atractivos adicionais do presente formato de “The Wall”, uma das obras mais amadas e odiadas do rock.