Viajar para Saturno torna-se fácil, ouvindo a música dos Saturnia. Após um promissor álbum de estreia, Luís Simões e Francisco Rebelo refi naram o alcance destas “trips” que mergulham o espírito num oceano de sinestesias. Ainda que em “Kozmische (parts 1 and 2)”, a batida se esgote no psicadelismo de pacotilha dos Ozric Tentacles, desprende-se do álbum uma energia genuinamente indutora de estados alterados que vão da euforia de danças dervíxicas ao intimismo de secretas alucinações. “Hydrophonic Gardening” transporta ecos dos Pink Floyd, Klaus Schulze e Steve Hillage, mas fi ltrados por uma visão capaz de transmutar estas influências numa música personalizada. “Sunflower” lembra o misticismo dos Yatha Sidhra. “Lava” fará as delícias dos viciados na “new age” da Hearts of Space, bem como “Planetarium”, ideal para assistir à chegada de um ovni, como “The Way Home”, de Kevin Braheny. “Vimana” e “Omnia”, os mais tripantes frutos cósmicos desta jardinagem hidrofónica, disparam ao espaço, acolhendo Syd Barrett e as ondas aquáticas de “Meddle”. “Regulem os comandos para o coração do sol” volta a ser a palavra de ordem. Os Saturnia levam-nos lá.
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28 Novembro 2003
MOLA DUDLE
O Futuro só se Diz em Particular
Ed. e distri. Ananana
7|10
Consumada a cisão nos Mola Dudle, Nanu é agora o porta-voz de uma música que diverge radicalmente do anterior álbum do grupo, “Mobília”. A palavra e as vocalizações tornaram-se essenciais na economia do projecto ainda que as “canções” continuem a pautar-se pelo esforço em “fazer diferente”. Mas algo se perdeu no desfazer da mobília. A música parece ter-se deixado apanhar pelo vírus do “estilo”, caindo em tiques de uma certa pseudomodernidade pop que afasta “O Futuro só se Diz em Particular” do anterior experimentalismo, considerando, apesar e tudo, que um tema como “Redrock one:um” possa ser uma leitura irónica desse mesmo universo de referências. Num álbum em cuja lista de convidados constam Manuela Azevedo, dos Clã, e Armando Teixeira, presenças que, de certa forma, ajudam a compreender a mudança de orientação, ajuste-se a sensibilidade ao chique de arranjos de cordas à la Kronos Quartet, versos em francês, atmosferas de “film noir”, valsas, Nova Huta, e um tema, “Diva”, digno dos A Fúria do Açúcar. A Mola não quebrou mas faz agora parte de um maquinismo pronto a usar.
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28 Novembro 2003
Projeto de Benjamin Brajon e Adolfo Luxúria Canibal, ressuscita a música industrial, que alia a brutalidade dos sons à ambiguidade dos conceitos. Fazem-no através do canto e de máquinas e de uma fisicalidade que se confunde, afinal, com a própria essência do rock‘n’roll.
os mecânicos da caixa-de-música
Máquinas, gritos, sangue. A faca dos Mão Morta enterraram-se na carne da eletrónica infernal de Benjamin Brejon, dando origem ao projeto Mécanosphère. A voz de um português, Adolfo Luxúria Canibal, residente em França, mais a maquinaria pesada de um francês residente em Portugal. A música industrial, monstruosos naipes de electrões e metal em movimento, volta a estar em voga, impregnando o álbum de estreia da dupla, “Mécanosphère”, de febre e inquietação, em temas como “O cinema”, “Manobra de diversão” e “O homem com duas cabeças”. Brejon, um tipo simpático que é difícil associar ao criador de disformidades sonoras que distorcem o nosso sentido de realidade, explicou o funcionamento da estética e das estratégias da esfera mecânica. Que compara metaforicamente ao efeito produzido por uma caixa-de-música.
Antes de “Mécanosphère” já tinham feito mais música juntos?
Um EP, intitulado “Lobo Mau”, mas pode ser encarado mais como um ensaio, uma preparação para o álbum. Em que circunstâncias é que os dois se conheceram e que nasceu o projeto Mécanosphère?
Estava em Paris, em 1998, integrado num grupo modular, em que entravam e saíam pessoas. Não tinha vocalista, misturávamos acústica com eletrónica, jazz e música improvisada com coisas mais tecnóides. Nesse ano assisti a um concerto dos Mão Morta, no festival Mergulho no Futuro… É engraçado, antes nunca tinha pensado fazer alguma coisa com um vocalista…Mas fiquei impressionado com a prestação dos Mão Morta e, em particular, do Adolfo. Havia qualquer coisa de curioso que nunca tinha visto na maioria das bandas de rock…Um lado de “grand guignol”, algo completamente exagerado, baseado na repetição e na saturação, na violência e numa brutalidade tensa e negra, mas ao mesmo tempo com ironia. Convidei-o para fazer uma letra para a banda, dei-lhe material para ele ouvir. Um de vocês vive em Paris, o outro em Lisboa. Mécanosphère é um projeto vocacionado para a gravação de discos?
Somos um grupo, embora funcionemos de maneira esporádica. Pelo menos em comparação com um grupo de rock clássico. No vosso trabalho a parte instrumental serve de base à voz ou é ao contrário?
Não há um padrão. Mas em geral parte tudo das vozes. Ele vai gravando, faz performances de “spoken word”, inventadas no momento, em várias velocidades, sem marcação rítmica. Eu dou indicações, para ele repetir isto ou aquilo. Depois pego neste material e construo a música, usando os textos como trama narrativa. Que maquinaria eletrónica utiliza?
Geradores analógicos, um velho sintetizador Korg MS-10 que achei no caixote de lixo [risos], percussão eletrónica, mais uma série de efeitos e um teclado de brinquedo. Uso pedais para criar “loops”, vou samplando à medida que vou tocando e depois entra tudo numa mesa de mistura. Prefiro chamar ao conjunto um vasto “circuit instrument”. Não usa “laptop”. É vital a manipulação física dos instrumentos?
Completamente! Tive várias vezes a tentação de armazenar coisas no “laptop” mas depois, até tendo em conta a forma do sistema e a maneira como toco, não dá! Prefiro usar o computador para o trabalho de edição, para recortes…Embora nestes discos apenas tivéssemos usado um gravador digital antigo. Referiu-se ao jazz e à música improvisada, mas a componente mais forte dos Mécanosphère é a música industrial. Integra-se nessa tradição?
Sou bastante eclético, bem como o Adolfo, que ouve mais jazz e free jazz do que outra coisa. Mas é verdade que falámos de música industrial, só que, por outro lado, não me reconheço no que o termo significa hoje em dia, embora as raízes continuem a ser grupos do industrial antigo como os Throbbing Gristle nos quais, curiosamentre, havia um lado de improvisação. Nos Throbbing Gristle a música estava ao serviço da agressão e da perversão, funcionando como um tratamento de choque. Passa-se o mesmo com vocês?
Sim, também existe esse lado perverso, até ao nível das letras. Mas é capaz de ser mais visível nos concertos, verdadeiras “performances” em que nos esgotamos fisicamente e onde há muita bateria e percussão. Procuramos criar uma espécie de choque, brutalidade. Os Throbbing Gristle usavam em palco frequências sónicas que faziam o público vomitar. Vão tão longe?
Não, não! (risos) Se bem que nos próximos concertos tencione usar um tipo de frequências graves e sub-graves… De onde vem essa necessidade de violência?
Um dos aspectos essenciais da música em palco é, se calhar, fazer uma espécie de purga, uma catarse. Não encontro isto em muitas bandas. Quase sempre tudo se resume a um catálogo de poses, de cortes de cabelo, de elementos pré-definidos que contrariam a essência do rock ‘n’ roll, que é uma prática crítica. Um espelho de inversão da sociedade. O lado tribal, ritual, da música industrial está presente nos Mécanosphère…
Sim, mas é espontâneo, nada ligado a qualquer ideologia ou pseudo-misticismo. Somos mais literais. Da capa ao nome do grupo, é notória a ênfase na máquina e das suas relações com o humano. O homem-máquina dos Kraftwerk?
Em termos teóricos, pode dizer-se que criticamos a máquina. Usamo-la mas enquanto um elemento “frágil”. As caixas-de-ritmo e os sequenciadores, que conferem à música um lado marcial, são submetidas a um processo de crítica. Então de que forma canalizam e exercem a brutalidade que referiu há pouco?
Tanto pode ser através de descargas de jazz ou de drum ‘n’ bass brutal como coisas mais frágeis. O som dos Mécanosphère pode ser metaforicamente conotado com as caixinhas de música para crianças, um lado pré-digital. A música de dança tenta-vos?
Sim. O que se passa é que tentamos fazer drum ‘n’ bass ou breakbeats mas sem usar o arsenal geralmente usado para os fazer. Procuramos fazer hip-hop, mas através de um sistema instrumental completamente diferente. Um grupo que nos influenciou muito foram os Muslimgauze, que editaram cerca de 760 discos. Li uma vez uma entrevista onde explicavam que não usavam nem computador nem samplers. Tinham um sistema próprio. Tentavam fazer electro e saía outra coisa qualquer. Além de manipulador de eletrónica também toca bateria. Qual destas facetas tem mais importância para o seu trabalho?
Agora penso mais em termos de produção instantânea. Tenho montados em palco a minha bateria (nos espetáculos utilizamos um segundo baterista) e o arsenal eletrónico que são usados tendo em mente a idealização instantânea do produto final. Sempre toquei bateria, não tanto como instrumentista, mas mais como teste em que me coloco do lado do público, tentando sentir as suas reações. Continua a tocar jazz?
Aborreci-me um pouco deste jazz, desta música improvisada que não pára de fazer e desfazer-se, às voltas, pouco evolutiva. Mas tenho como referências o John Zorn e o Bill Laswell e, em particular, os Painkiller, com o baterista dos Napalm Death. Foram eles que me levaram a interessar-me pelo “dub” e pela música de percussão. O ruído é fulcral na música dos Mécanosphère?
Não gosto de música limpa. Será por isso que gosto dos Muslimgauze que se calhar fazem melhor drum ‘n’ bass do que um dj de drum ‘n’ bass… Tem alguma coisa contra os DJs?
Nunca fiz DJing. Gosto de passar discos, as minhas músicas preferidas. Mas admiro o trabalho de algumas pessoas de Brooklyn, o coletivo Brooklyn Beat, a maioria deles são DJs mas num sentido mais literal. Também gosto do DJ/Rupture e de Swayzak, que fazem um trabalho de corte e cruzamentos contra-natura. Também DJ Collage, de São Francisco. E Amon Tobim. Existe algum conceito extra-musical subjacente a “Mécanosphère”?
Sim, a partir das letras do Adolfo. Mas é complicado porque metade do disco é cantado em francês e a outra metade em português… Para se compreender a trama total é preciso falar as duas línguas [risos]. O português tem uma gama de sons mais extensa do que o francês, que é monocórdico, com os acentos tónicos sempre no mesmo sítio. Se reparar, há temas como “O homem com duas cabeças” onde o Adolfo fala na terceira pessoa, como um atrasado mental, a brincar mas, ao mesmo tempo, com algo de ambíguo e perverso. Já houve pessoas que me vieram dizer que esta música as incomodava, não sabiam se haviam de se rir ou não. É esse o vosso objetivo?
Não será consciente mas também não nos incomoda minimamente, trabalhar essa ambiguidade. Ambiguidade entre a eletrónica e a acústica, entre a “spoken word” e a canção…No fundo o que queremos é gravar mais material e atuar ao vivo, como na digressão que faremos em Abril, em que tocaremos juntos com o trio do saxofonista dos Stooges, Steve MacKay que participou no “Fun House”, e cujo baterista pertence aos Sheer Terror. Provavelmente iremos gravar juntos. Uma definição para o som Mécanosphère?
Reciclagem de linguagens. Uma atitude que utiliza as várias culturas eletrónicas, mas ao contrário: Retro-futurismo.