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Elvis Costello & The Brodsky Quartet – “The Juliet Letters”

pop rock >> quarta-feira, 20.01.1993

FORA DE SÉRIE


Cartas Com Cordas

Elvis Costello & The Brodsky Quartet
The Juliet Letters
LP / CD Warner Bros., distri. Warner Music



Passou pelo vendaval punk, mas cedo fez questão de se demarcar da tirania dos três acordes básicos e litros de suor que caracterizavam os seus colegas da época. Elvis Costello sempre foi em primeiro lugar um escritor de canções. Os anos e vários álbuns de reconhecida qualidade tornaram-no numa espécie de clássico. Há cerca de 250 versões de canções suas, por artistas como Chet Baker, Johnny Cash, June Tabor, Roy Orbinson e Roger McGuinn, entre outros.
Terá sido essa ascensão em direcção ao estrelato que o levou a cometer esta loucura. Em “The Juliet Letters” Elvis pretendeu ir mais longe e testar a sua veia criativa quando inserida num suporte instrumental diferente do habitual. Para o efeito, escolheu o Brodsjy Quartet, quarteto de cordas clássico, do tipo agora muito em voga, músicos jovens, ousados, cheios de genica, às vezes de génio, que entram nos auditórios de “jeans” e tocam solos de Jimi Hendrix. Se bem que, as verdades devem ser ditas, os Brodsky – nome modernaço hem? – sejam considerados intérpretes de excepção de Haydn, Schubert, Beethoven e Bartok.
Depois foi preciso escolher um tema. Cait, mulher de Costello, encontrou um com piada. Leu num jornal um artigo sobre umas cartas que, durante anos, foram dirigidas a uma tal Juliet Capulet (sim, a Julieta que amava Romeu e vice-vera), que afinal nunca usara saias (pelo menos em público) e era um respeitável professor universitário de Verona. Elvis leu as cartas, sugou-lhes o tutano e escreveu canções a condizer. O conteúdo das missivas dava para tudo: bilhetinhos de amor, comentários cínicos, anúncios de suicídio, testemunhos “post-mortem”, enfim, tudo o que veio à pena dos signatários, de teor mais ou menos desvairado.
Trabalhou-se então em conjunto, Elvis e o quarteto da corda, música e textos, num frenesim criativo de fazer faísca. Um escrevia, outro riscava, um terceiro anotava. No fim todos deram uma ajuda na composição e o resultado acabou por ser aquilo a que poucos resistem e menos ainda o conseguem fazer com sucesso: o exercício de estilo. Com “The Juliet Letters” Elvis Costello quis mostrar que as suas canções resistem a tudo. Claro, no folheto do disco, ocupa várias páginas com um manifesto de intenções, qual delas a mais conceptual e artística, que explica algumas coisas e confunde outras: “Estávamos ansiosos para evitar o depósito de lixo a que se chama ‘crossover’. Isto não nenhum golpe meu para tentar ser ‘clássico’ nem o primeiro álbum de rock dos Brodsky Quartet. Pelo contrário, foi algo que serviu para desordenar as estruturas detectáveis nas nossas respectivas disciplinas e indisciplinas.” Ou então: “O processo de composição e dos arranjos foi variado e é misterioso de contemplar.” Pelo meio adianta que já vai conseguindo escrevinhar umas notas na pauta. Eis a genuína atitude de rebeldia aprendida nas origens humildes da “new wave”!
Claro que, aqui chegados, já toda a gente adivinhou a que é que soam estas cartas musicadas, como aqueles postais de Natal que tocam “Boas festas”. São 20 arranjos compostos (no sentido de compostura) com cuidado, tudo no sítio, harmonias trabalhadas ao pormenor, virtuosismo a rodos e, qual jóia da coroa, do alto do pedestal, a voz inconfundível do mestre. Está bem feito. É pá, a ideia é do caraças. Tocam bem que se fartam. Elvis é o rei. Só é pena o disco ser chato. Deram-lhe corda… (5)

Vários (Nuno Canavarro + Carlos Maria Trindade + Plopoplot Pot + Nuno Rebelo + A Máquina Do Almoço Dá Pancadas + …) – “Festivais De Lisboa – Os Sons Da Diferença” (festivais | antecipação)

Secção Cultura Quinta-Feira, 12.12.1991


Festivais De Lisboa
Os Sons Da Diferença


Os espectáculos de hoje e amanhã à noite, no S. Luiz em Lisboa, integrados nos “Encontros de Música” dos Festivais de Lisboa, prometem ser diferentes. Joaquim D’ Azurém e a dupla Nuno Canavarro / Carlos Maria Trindade actuam hoje, às 21h30. O primeiro toca guitarra de água, de cristal. “Transparências”, álbum de estreia editado há dois anos, inventa novas cores e filigranas para a guitarra portuguesa e é uma incursão serena no território das músicas ambientais. Fado astral?
Nas áreas do ambientalismo, com porta aberta para mundos paralelos, movem-se Carlos Canavarro e Carlos Maria Trindade, o primeiro ex-Street Kids, o segundo ex-Heróis do Mar. “Mr. Woologallu”, álbum acabado de editar, conta histórias de mil sons enredos, nascidos dos sonhos do computador. Imagens, sinais que se cruzam. Realidades virtuais que no cosmos de um instante se fazem e desfazem, contemplados de um “tapete voador zen, silencioso mas não sem turbulências”.
No dia seguinte a música acelera, torna-se rude, entrelaça-se em estruturas milimétricas, quase fractais. O silêncio dá lugar ao grito, a contemplação à improvisação. Da selva urbana, mensagens tecnojazz via Plopoplot Pot, de Nuno Rebelo, Luís Areias, Rodrigo Amado, Paulo Curado e Bruno Pedroso, e Máquina do Almoço Dá Panacadas, de João Pires de Campos, Rodrigo Amado, Gui, Luís Filipe Valentim, Lívio e Alberto Garcia. As duas bandas cruzam-se no CD colectânea “Em Tempo Real” onde provam que há uma ordem no delírio e prazer nesse delírio. O cérebro não necessita das pernas para dançar.
Em ambos os grupos os sopros de metal sustentam um edifício de paranoia, de vertigem. Desestruturar para estruturar mais à frente e encontrar o outro lado das formas, novos equilíbrios e maneiras de coabitar o pesadelo. “Catástrofes de todo o mundo desaguando nas planícies do silêncio?” O cataclismo supõe uma estratégia, a exigência de mudança, passagem, revolução. Nada é definitivo. Do silêncio depois do caos os sons renascem. Sempre pela primeira vez.

Kronos Quartet – “Kronos Quartet – Entre O Brilhantismo E O Bocejo”

Secção Cultura Terça-Feira, 07.05.1991


Kronos Quartet
Entre O Brilhantismo E O Bocejo


Os Kronos Quartet tocaram domingo no Tivoli vestidos de todas as cores, às riscas e aos quadrados. Serviram-se dos instrumentos de corda como se fossem tambores. Apanharam o comboio de Steve Reich e, no fim, quase saltaram das cadeiras, para interpretar um clássico de Jimi Hendrix. A música de câmara já não é o que era.



Sobre o palco do cinema Tivoli, em Lisboa, discretamente iluminado, três homens e uma mulher, de vestes garridas e pose descontraída. Dois violinos, uma viola, um violoncelo. O bastante para, mal as cordas começaram a vibrar, fazerem desaparecer num instante as ideias preconcebidas sobre como aqueles instrumentos devem soar. De resto, os Kronos Quartet fizeram aquilo que deles se esperava, ou seja, uma demonstração de diferentes abordagens à música contemporânea, filtrada pela sensibilidade muito própria dos quatro músicos e traduzida numa criteriosa e diversificada escolha de repertório.
Do programa constavam obras dos compositores africanos Dumisani Maraire e Foday Musa Suso (respectivamente “Mai Nozipo” e “Tilliboyo”), do nova-iorquino supersónico John Zorn (“The Dead Man”), do polaco Henrik Mikolaj Gorecki (“Already i tis Dust”) e do holandês Louis Andriessen (“Facing Death”).
Logo na primeira peça se viu que, para David Harrington, John Sherba, Hank Dutt e Joan Jeanrenaud, o termo “instrumentos de corda” não é um conceito linear. As respectivas caixas de ressonância pareciam ter sido construídas de propósito para servirem de tambores, suporte de complexos e delicados batuques. Desconfia-se que, em certas passagens, os músicos terão utilizado, em cada mão, mais um ou dois dedos sobresselentes. Em “Tilliboyo” (“Pôr-do-sol”) – ênfase para o rendilhado de “pizzicatos”, criadores de intrincadas tapeçarias rítmicas. A escolha destas duas obras serviu pelo menos para demosntrar a importância que os Kronos Quartet dão às músicas não-ocidentais e para convencer as sensibilidades mais empedernidas da imensaidade de notas clandestinas escondidas entre os meios-tons da nossa querida escala.
Com John Zorn as coiss aceleram inevitavelmente. Dividido em pequenas células autónomas, “The Dead Man” deu para tudo – serrotes com o freio nos dentes, explosões, respiração asmática, ranger de portas, ou simplesmente a vibração do ar agitado freneticamente pelos arcos dos instrumentos, foram alguns dos timbres, mais ou menos agradáveis ao ouvido, com que os Kronos Quartet presentearam uma assistência ávida de bizarrias. Mal imaginava ela que a “pior” parte estava para vir, a da música “séria”, sorumbática, de fazer descair os cantos da boca e franzir as sobrancelhas. Falemos então de coisas sérias.
“Already i tis dusk”, assombrosa de intensidade dramática, mergulha nas pulsões humanas mais obscuras, progressão majestosa pelos meandros da alma em busca da luz, culminando na total suspensão temporal, num silêncio e paz tumulares acentuados pela iluminação de palco, reduzida a um penumbra crepuscular.
Louis Andriessen compõe sempre a partir de temas grandiosos. Seja no tríptico “Il Duce”, baseado na vida do ditador italiano, no “Il Principe”, de Maquiavel, no “magnum opus”, “De Staat”, inspirado na “República” de Platão ou na ópera “Passion selon Saint Matthieu, Orpheu set George Sand”, há sempre motivos para profundas especulações metafísicas. Foi o que aconteceu na sala do Tivoli, durante “Facing Death”, já que grande parte dos presentes baixou as pálpebras, abandonado-se aos prazeres soporíficos da contemplação. A luz súbita do intervalo serviu para despertá-los do êxtase.
“Different Trains”, obra minimal-ferroviária do compositor americano Steve Reich, ocupou integralmente a segunda parte do concerto. Encomendado pela CP, por ocasião da inauguração do troço Rossio – Cais do Sodré, “Different Trains” é uma espécie de contraponto erudito da “Autobahn” (“auto-estrada”) dos germânicos Kraftwerk ou de “Station to Station” de David Bowie. As cordas juntam-se a outras pré-gravadas e a vozes aleatórias que periodicamente vão determinando as progressões melódicas dos instrumentos ao vivo, segundo um processo semelhante e radicalmente assumido por Scott Johnson na obra-prima “John Somebody”.
“4/4 Tango”, de Astor Piazzolla, cumpriu de forma brilhante o primeiro encore. Finalmente, no segundo e último, o tema por que todos esperavam – “Purple Haze”, de Jimi Hendrix. Delírio generalizado, dos músicos (“atacaram” o tema de tal forma que por pouco iam rebentando as cordas) e do público, infelizmente pouco numeroso. Aos Kronos Quartet só faltou pegarem fogo aos violinos. Bem vistas as coisas, até pegaram…