Arquivo mensal: Novembro 2021

Realejo / Fernando Meireles – “Música Tradicional de Câmara” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira, 20.10.1993


MÚSICA TRADICIONAL DE CÂMARA

No centro dos Realejo está a sanfona, instrumento ancestral que entrou em declínio a partir do século XVIII, mas que, um pouco por toda a Europa, uma nova geração de músicos tem vindo a recuperar. Os Realejo tocam e constroem as suas.



Fernando Meireles toca e constrói sanfonas. E bem. Como não há escolas de construtores de instrumentos tradicionais em Portugal, Fernando Meireles foi obrigado a ler e a ver como se fazia lá fora. Aprendeu sozinho e meteu mãos à obra. “Obradoiro” solitária, à portuguesa. Daí, os Realejo, que actuaram com êxito na última edição dos “Encontros da Tradição Europeia”, partiram à descoberta de outros sons. Entre o tradicional e a música de Câmara.
Além de Fernando Meireles, que é professor de música e toca sanfona, bandolim e cavaquinho, fazem parte do grupo Cesário Assunção, igualmente construtor de instrumentos (de corda), que tem a profissão de técnico de som e toca guitarra; Manuel Rocha, professor de música, que toca violino e bandolim; e Amadeu Magalhães, estudante num curso de Educação Musical, que toca sanfona, cavaquinho, braguesa, gaita-de-foles, flautas e bandolim.
PÚBLICO – Quando surgiu o Realejo?
FERNANDO MEIRELES – Em 1990, na altura em que acabei de construir a primeira sanfona.
P. – De onde lhe veio o interesse pela sanfona, ao ponto de aprender a sua construção?
F. M. – A sanfona tinha desaparecido completamente em Portugal durante o século XIX. Quando conheci o instrumento, achei-o fascinante e que era um disparate estar perdido. Prpopus-me então reconstituir o instrumento. Fiz um trabalho de investigação que me levou cerca de quatro anos, tendo-me baseado sobretudo em figuras de presépio dos séc. XVII e XVIII. Em 1990, tinha a minha primeira sanfona.
P. – Como explica o ressurgimento geral deste instrumento na Europa?
F. M. – Tem a ver com um interesse generalizado das pessoas pelas tradições dos seus países. Depois, a sanfona tem características muito interessantes e chamativas. Fica-se encantado. Quem vê de perto uma sanfona nunca mais a esquece.
P. – O tipo de sonoridades de grupos como o vosso, em que predomina a combinação sanfona / gaita-de-foles, vai um pouco contra a corrente geral, onde as cordas dominam…
F. M. – O reportório do Realejo está de facto vocacionado para a sanfona. O que temos feito até agora é tocar toda a música que existe para sanfona, desde a Idade Média, passando pelos românticos do séc. XVIII, os compositores franceses que escreveram para sanfona e a música tradicional. A pouco e pouco, temos vindo a adoptar outra espécie de caminho, com composições nossas.
Manuel Rocha – Há um aspecto interessante na fusão da gaita-de-foles com a sanfona. As melodias de Trás-os-Montes são extremamente moldáveis a este tipo de combinação. Por isso não é difícil partir dessas sonoridades para entendermos aquilo que deve ser o caminho de um instrumento como a sanfona. É preciso também dizer que no Realejo há uma exigência técnica em relação à execução instrumental na sanfona. A música tradicional em Portugal sofre um bocado por haver muito poucos executantes ágeis, digamos assim – com agilidade suficiente para pôr o instrumento a tocar por si.
Penso que no Realejo existe essa agilidade, de maneira a mostrar a música da sanfona não apenas pelo seu lado pitoresco, mas pelo seu lado musical. Porque não é só uma rodinha a ranger: nhek, nhek, tchuik [risos]…
P. – Onde é que vão buscar o reportório?
Amadeu e F. M. (em coro) – À França! E ouvimos bons discos, para percebermos a técnica. Por exemplo, do Nigel Eaton [Ancient Beatbox, Blowzabella, Scarp].
P. – O que pensam de um intérprete como Valentin Clastrier?
F. M. – É um excelenete instrumentista de música contemporânea. Contribuiu para o desenvolvimento da sanfona, na versão electroacústica.
P. – Será possível alguma vez recuperar ou reconstituir o reportório português para sanfona?
F. M. – É difícil. Encontrei em alguns cancioneiros de Pedro Fernandes Tomás algumas notas em rodapé sobre música que poderia ser tocada em sanfona…
A. – O que é possível fazer é transcrever a música. A sanfona tem duas oitavas e um tipo específico de fraseado. Pelas pautas podemos logo ver se a música pode ser adaptada ou não à sanfona e à sua digitação. Do que podemos ter a certeza é que os romances portugueses, em determinada altura, eram acompanhados por sanfona.
F. M. – Sanfona que acabou nas mãos de cegos e pedintes…
P. – Parece-me que o Realejo está longe de poder ser considerado apenas um grupo de música tradicional, não é verdade?
M. R. – Normalmente as pessoas têm uma determinada expectativa, quando vêem um grupo com uma braguesa, um cavaquinho e uma gaita-de-foles. Dizem: “Pronto, vai ser música tradicional.”
Em Portugal a noção de “música tradicional” está muito standardizada, diz respeito a um certo barulho, um ruído característico, que as pessoas associam à música tradicional. A sonoridade do Realejo é de facto a de um grupo de câmara. Até a gaita-de-foles está preparada para tocar baixinho para poder ombrear com a sanfona… Digamos que a música do grupo está no limiar daquilo que entendemos por música de câmara, e a música tradicional, porque os sons são de facto de instrumentos tradicionais.

Liam O’Flynn – “Out To Na Other Side”

pop rock >> quarta-feira, 20.10.1993
WORLD


Liam O’Flynn
Out To Na Other Side
Tara, import. VGM



Lyam O’Flynn, para quem não saiba, era o tocador de “uillean pipes” dos Planxty. Mais recentemente tornou-se solista vitalício nos projectos orquestrais de Shaun Davey, que poderemos considerar o contrapeso ligeiro, “easy listening”, do patriarca Sean O’Riada ou de Michael ‘O Suilleabhan. As prestações de O’Flynn são, de resto, o mais interessante dos álbuns de Davey: “The Pilgrim”, “The Brendan Voyage” e “The Relief of Derry Symphony”, sem esquecer as vocalizações de Rita Connolly, em “Granuaile”.
“Out to na Other Side”, verso de um poema de Seamus Heany, “The pitchfork”, é um pouco o reverso das obras daquele compositor, que, por sinal, produz o álbum do gaiteiro: uma abordagem erudita da música irlandesa que pretende pôr em relevo a sonoridade das “uillean pipes” quando inserida num contexto de “ensemble” instrumental e não tanto uma obra declaradamente orquestral, como no caso de Shaun Davey.
Longe da espontaneidade que caracteriza a música tradicional instrumental irlandesa, mesmo se abordada em trabalhos de maior complexidade, “Out to na other side” não consegue libertar-se de um certo academismo, sensível no modo como O’Flynn e Davey exercem um controlo apertado sobre os mais ínfimos pormenores da composição, adaptação e produção. Contentemo-nos então em saborear esta música como se de uma peça clássica se tratasse, extirpada de arestas e rugosidades, pronta a agradar, na condição de não lhe exigirmos nada de mais fundo e escuro, o que ela não pode nem pretende dar. Além do mais, é sempre um prazer o reencontro com executantes de excepção como Arty McGlynn (tinha que ser!…), Séan Keane (dos Chieftains), Nollaig Casey, o trio vocal The Voice Squad (requisitado pelos Chieftains em “The Bells of Dublin”) ou os vocalistas convidados Liam O’Maonlai, dos Hothouse Flowers, e Rita Connolly, que em “The Dean’s pamphlet” rubrica o momento de maior emoção num álbum por vezes demasiadamente procupado com as aparências. (7)

Philip Glass – “Itaipu / The Canyon”

pop rock >> quarta-feira, 20.10.1993
NOVOS LANÇAMENTOS POP ROCK


Philip Glass
Itaipu / The Canyon
Sony Classical, distri. Sonty Music



Parte dois e três da série de música programática inspirada na Natureza (a primeira foi “The Light”) paralela a outra do mesmo autor, mais antiga, a das óperas inspiradas em personalidades, como “Einstein on the Beach”, “Satyagraha” e “Akhnaten”. “Itaipu” usa a orquestra sinfónica e o coro de Atlanta, segundo um formato gigante à altura do tema escolhido: o percurso do rio Paraná, desde a nascente em Mato Grosso até à foz no Atlântico, passando pelo imenso lago artificial criado por uma não menos imensa barragem hidroeléctrica construída a meio doleito entre 1974 e 1991. Tão grande, de facto, que ao visitar os seus monstruosos geradores (a orquestra sinfónica do Brasil inteira tocou uma vez no interior de um deles!) e condutas, o compositor terá concebido logo ali o formato sinfónico-coral da nova peça. O “libreto” é uma adaptação de um mito dos índios guarani que refere “Itapu” (“a pedra cantante”) como sendo a vibração musical de uma antiga rocha, provocada pelo contacto com os rápidos do rio.
Ao contrário de “Itapu”, “Canyon” não se baseia em nenhum local concreto – é um “canyon” idealizado por Glass que a esta obra fez corresponder um naipe instrumental mais reduzido.
O certo é que, seja no meio aquático, seja entre as pedras, a linguagem mil vezes reciclada de Glass já não consegue provocar uma centelha de surpresa ou de excitação. Aqui, o compositor que faz óperas como quem estrela um ovo, bateu na tecla das grandes massas sonoras e nos coros tonitruantes, sobretudo em “Itaipu”, querendo simbolizar a grandiosidade do tema abordado. Algo numa veia semelhante à de “The Forest”, de David Byrne. Mas fica a impressão, como tem vindo a acontecer na maioria das obras recentes de Glass, de se tratar de um mero exercício formal. De uma reciclagem cansada das obsessões de sempre. Com corpo mas sem coração. Umas férias eram capazes de vir mesmo a calhar. (5)