cultura >> domingo, 21.02.1993
Van Morrison Actuou Em Lisboa E No Porto
Ouvir Para Crer
É baixo, embora nos discos a sua música se eleve às alturas. Mas para muitos que pagaram para ver ao vivo Van Morrison, um dos monstros sagrados sobreviventes da década de 60, o bilhete apenas deu direito a ouvir as canções. A música, que valeu pela vitalidade demonstrada pelo mestre, não desmereceu das “Glorias” do passado.
O Parque Eduardo VII foi até há bem pouco tempo um local aprazível onde, aos domingos, as famílias iam piquenicar e as crianças se espraiavam em chilreios e brincadeiras pelos relvados em inclinação suave em direcção às torres, ao fundo e ao alto, dominando a cidade até ao Tejo. De um dos lados do jardim, altaneiro, erguia-se o então chamado Pavilhão dos Desportos, posteriormente baptizado Pavilhão Carlos Lopes, em homenagem ao campeão português. Eram coisas e locais palpáveis, que se podiam ver e sentir.
O mesmo não se pode dizer de Van Morrison que, sexta-feira à noite nesse mesmo pavilhão, foi para muitos, jornalista incluído, o homem invisível. Para arranjar um lugar, já não digo confortável, nem sequer sentado, mas pelo menos que permitisse ver alguma coisa do que se passava em palco, era preciso ter chegado ao recinto no mínimo com dois dias de antecedência. Daqui se compreende que estava cheio como um ovo. Óptimo. O que já não se compreende muito bem é que a organização, a R & B Produções, tenha despachado os jornalistas para a Geral, quer dizer, para a molhada. Para a próxima mandem-nos para o telhado, para a cave, sei lá, onde for mais desconfortável e que ofereça piores condições de trabalho.
Quanto ao concerto, a julgar apenas pela música, foi o que seria de esperar numa sala que não reúne quaisquer condições acústicas, quanto menos ambiente. Mas Van Morrison, apesar de todas as contrariedades, safou-se bem. E não foram poucas, as contrariedades. O som, como seria de esperar, falhou. Quando a voz parava de cantar, o volume sonoro dos restantes instrumentos baixava misteriosamente, quase até à inaubilidade. Assim, os diversos solos que pontuaram as canções do autor do lendário “Astral Weeks” perderam-se numa nuvem de murmúrios que não permitiram aferir da qualidade dos executantes. Mesmo assim deu para perceber que não são muito bons. Van Morrison, esse, continua em forma.
Acordar Do Transe
A primeira parte do concerto foi um bocado a atirar para o bocejo. Nela o cantor privilegiou a sua costela mística, em cerca de uma hora de “Soul gospel” à base de canções que mal se distinguiam umas das outras mas que invariavelmente falavam de uma “peaceful soul”. Seriam “Hymns to the Silence” se o barulho em redor não fosse tanto. Durante este período, digamos que de recolhimento, Van Morrison apenas saiu do transe religioso para acordar ao som de “In the Midnight Hour”, um clássico de Wilson Pickett. Intervalo para tentar encontrar um local com melhor visão para o artista. Em vão. Ainda por cima, baixote como é, com o seu ar de gnomo anafado, só dava mesmo para vê-lo nas notas mais altas.
Segunda parte. Início promissor com “Cyprus Avenue” em toada de “blues” cheio de sentimento, com passagem para um tema “jazzy” que deu direito a um solo, curto, débil, de vibrafone. Houve solos (pareciam sê-lo, pelo menos) para cada um dos seis músicos acompanhantes, apresentação dos mesmos (não se percebeu nada) e um final em beleza com o homem todo empertigado a cantar “No guru, no method, no teacher”.
A terceira e última parte foi, de longe, a melhor. Van Morrison atacou em força outro clássico, desta feita “What’d I say”, de Ray Charles, prosseguiu com o hino “Gloria”, cantado em coro pela assistência em peso, seguido de “It’s all over now”, popularizado pelos Rolling Stones mas escrito por Shirley e Bob Womack, para finalmente terminar num “slow”, “Have I told you lately”, da sua autoria. O velhote, afinal, ainda continua cheio de genica.
Para os admiradores incondicionais do cantor, o concerto terá correspondido às expectativas. Para os mais indiferentes, não chegou para aquecer. Para muitos, repete-se, nem sequer para ver. Ouvir para crer já não foi mau. O espectáculo foi reeditado ontem no Coliseu do Porto.