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Fernando Magalhães no “Fórum Sons” – Intervenção #99 – “REQ, GIANT SAND, MARY TIMONY Óptimos discos (FM)”

#99 – “REQ, GIANT SAND, MARY TIMONY Óptimos discos (FM)”

Fernando Magalhães
22.04.2002 140254
Na electrónica, uma surpresa:

REQ: Sketchbook (ed.Warp).
Já tinha ouvido álbuns anteriores desta banda mas este é diferente, um passo numa direção desconhecida que faz o trip-hop e o pós-drum ‘n’ bass encontrar o tribalismo e um lado ritualístico personificado por bandas como os O Yuki Conjugate ou músicos como Don Cherry e Jon Hassell. Sons escuros e baixas frequências alternam com xilofones e mbiras mágicos e um minimalismo obscuro que, surpreendentemente, num dos temas (tema 9) se abre à influência nítida do Terry Riley de „A Rainbow in Curved Air”.

No rock:

GIANT SAND: Cover Magazine
The great underground vaudeville american album. Howe Gelb é o digno sucessor de Neil Young, Tom Waits e Stan Ridgway de uma vez só. E aqui também, um pouco surpreendentemente, de Alan Vega (ou Elvis Presley?), dos Suicide…

No universo indie:

A descoberta absoluta de MARY TIMONY (ex-Helium Icon), em „The Golden Dove”.
Inclassificável e desbravador de caminhos originais para o poprock alternativo. Pontos de memória convergente: Raincoats, Gentle Giant, Young Marble Giants intoxicados em ideias, os Velvet Underground às cambalhotas num caleidoscópio saturado de cores, Stereolab + Roxy Music (na magnífica „Musik and charming melodee”). Mas absolutamente original enquanto entidade que parece deslocada no tempo e no espaço „normais”…
Sentido da melodia pop menos óbvia (embora por vezes toque o falso bubblegum de uns Marine Research…), dissonâncias com o ouvido no pós-rock, sintetizadores analógicos com veneno, pianos elétricos fora de moda mas absolutamente encantatórios, sinos e um violino encharcado em açúcar e ácido. Harmonias vocais irresistíveis. O gosto por recantos e esquinas pouco ou nada frequentados, á medida que o álbum avança e se vai progressivamente afastando da pop e do rock que julgávamos já não ter segredos. Um pormenor de cravo e música barroca e o sorriso de Virginia Astley a espreitar em „Ash and Alice”. Difícil definir esta música onde a canção sem abrigo se cruza com a experimentação lo-fi e o gosto pela aventura.

A „Magnet” chama a MARY TIMONY „Kafka with a touch of Charles Manson”. Não estou bem a ver porquê. Mas vejo em „The Golden Dove” provavelmente a revelação indie do ano

FM

PS-A EMI acabou de editar um coletânea (recebi-a agora mesmo) com os artistas psicadélicos/Progressivos da editora Harvest, na sua época dourada de 1969/1970: Do alinhamento fazem parte: KEVIN AYERS, SYD BARRETT, BARCLAY JAMES HARVEST, EDGAR BROUGHTON BAND, THIRD EAR BAND, DEEP PURPLE, PETE BROWN & PIBLOKTO, THE MOVE, BABE RUTH, BATTERED ORNAMENTS, FOREST, SHIRLEY & DOLLY COLLINS, ELECTRIC LIGHT ORCHESTRA, SPONTANEOUS COMBUSTION, RON GEESIN & ROGER WATERS e WIZZARD.

P. J. Harvey – “Lágrimas De Sal” (concerto)

Y 9|MARÇO|2001
escolhas|ao vivo

lágrimas de sal

Não me importo de ser exposta numa canção porque endureci. Passei grande parte da minha vida sem companheiro ou a ser rejeitada. Tenho que ter desejo, sentir o cheiro de um homem… sou uma grande romântica, mas o meu coração e as minhas entranhas sobrepõem-se ao meu senso comum. P.J.Harvey



Desejo. Rock. Desejo. Sombras. Desejo. E agora o oceano. Imenso. “Is This Desire?” perguntava Polly Jean Harvey no seu álbum de 1998. A resposta era uma estranha combinação de romance e desespero. “O meu coração e as minhas entranhas sobrepõem-se sempre ao meu senso comum”. Restava uma única saída deste vórtice: a viagem pelas águas.
“Stories from the City, Stories from the Sea” materializa essa nova etapa de um percurso que em disco se iniciara em 1992, com “Dry”, e prosseguira no ano seguinte com “Rid of Me” e em 1995 com “To bring you my love”, antes de se atolar nos pântanos do desejo e, finalmente, desaguar no oceano. “Eu”, “secura”, “amor”, “desejo”, “mar”. Símbolos de uma ascese feita de ternura e raiva, sol e trovoada.
“Li algures que o dever de qualquer artista é o de reescrever incessantemente a fronteira que separa a terra do mar”, “vivo num pequeno apartamento junto à costa e tudo o que consigo ver das minhas janelas é o mar”, diz Polly Jean Harvey a propósito do novo álbum. O mar no horizonte, o mar como horizonte. Exterior e interior. As águas, símbolo do Inconsciente coletivo que urge atravessar para atingir o lado de lá, a outra margem, o lugar onde o indivíduo se integra numa entidade cósmica mais vasta e a personalidade finalmente se dissolve. Onde, como dizem os budistas, as águas do rio se confundem com as do mar.
“Hoje sei que não passo de uma pequena porção de um todo gigantesco que me ultrapassa e que já não tenho de passar tanto tempo a confrontar-me com o meu interior sem ser capaz de olhar cá para fora”. De “Rid of Me” (“desembaraça-me de mim”) até “Stories from the City, Stories from the Sea”, Polly Jean Harvey cumpriu essa viagem
P.J.Harvey foi nome de grupo – um power-trio de guitarra, baixo e bateria formado em 1991, Somerset, Inglaterra, responsável pelos primeiros singles – antes de ser Polly Jean, como Norma Jean, nome de mito. A estreia a solo, a seco, com “Dry”, valeu a esta mulher de 31 anos, natural da zona rural do Sudoeste inglês, adjetivos como “engraçado”, “cáustico”, “sedutor”, “selvagem”, “disforme”, “magoado”, “irónico” e “cru”. E nomeações para melhor álbum, melhor compositora e melhor cantora. Como se isso lhe importasse.
“Rid of Me” foi acolhido pelo LA Times como “um trabalho espantosamente arrojado” e o Newsweek acentuou a “brutalidade” das canções, elevando-as à categoria de grande arte. É difícil o rock elevar-se a esta condição. Polly Jean Harvey é dos poucos artistas contemporâneos a consegui-lo. “To bring you my love” recebeu mais um punhado de nomeações da Rolling Stone e da Spin, com a cantora a reforçar a componente teatral das suas apresentações ao vivo, além de tocar guitarra, vibrafone, percussão e teclados. Em “Is This Desire?” teve a seu lado John Parish, Eric Drew Feldman (ex-Pixies e Captain Beefheart), Joe Gore (da banda de Tom Waits), Mick Harvey (Bad Seeds) e Rob Ellis.
Polly Jean Harvey contribuiu com a sua voz e composições em álbuns de Pascal Comelade (“L’Argot du Bruit”), Nick Cave (“Murder Ballads”) e Tricky (“Angels with Dirty Faces”). A par da sua transformação psicológica, o gosto pela representação sofreu igualmente uma mudança de escala. Do palco dos concertos ao vivo para o palco maior, por vezes maior do que a vida, do cinema, com a inclusão no elenco de “The Book of Life”, média-metragem de Hal Hartley (1998), onde desempenha o papel de Maria Madalena. Lágrimas bíblicas. Lágrimas de mar. Lágrimas de sal.

P.J. HARVEY
+ GIANT SAND
Lisboa Coliseu dos Recreios, 4ª, 14, às 21h
Bilhetes: 4000 escudos



Giant Sand – Chore of Enchantment

16.06.2000
Giant Sand
Chore of Enchantment (8/10)
Thrill Jockey, import. Ananana

giantsand_chore

LINK

Imagens da América. “Americana”, dizem, derradeira materialização do “sonho americano”. Para Howe Gelb, veterano dos Giant Sand (em trio com Joey Burns e John Convertino, também elementos dos Calexico), a realidade e o sonho confundem-se no magnífico caleidoscópio de mitos americanos à deriva que é “Chore of Enchantment”, enésimo álbum de uma discografia iniciada há cerca de 20 anos. Dedicado a um dos fundadores da banda, Rainer Ptacek, falecido em 1997 de um tumor cerebral, materializa de forma brilhante as alucinações de LSD que em 1976 estiveram na base do encontro de Helb com Ptacek – num bar esquecido, onde tocaram juntos a mesma canção durante 45 minutos. Poderia servir de banda sonora a “Delírio em Las Vegas”, se em vez de Las Vegas o cenário fosse o Arizona. Um mellotron solene, um órgão Hammond B-3 litúrgico, um excerto da ópera “O Elixir do Amor” de Donizetti (a preferida de Ptacek), arremedos de hip-hop, uma “guitarra no estilo de Willie Nelson”, vibrafone, acordeão, guitarras dolentes como o trote de cavalos saídos de um “western”, chuva, os ecos de um salão de baile abandonado, discos antigos de 78 rotações, samples que cosem remendos electrónicos ao pano cru de canções que se agarram à pele e à alma fazem de “Chore of Enchantment” um álbum que retrata de forma superlativa a América que, nos filmes, associamos àquelas oficinas de sucata que emergem no deserto como miragens, enfeitadas se sentido com quilómetros de fios de luzes de Natal. David Byrne filmou estas mesmas “True Stories”, tão verdadeiras como o brilho do espectáculo.