Arquivo mensal: Setembro 2019

Camouflage – “Meanwhile”

Pop-Rock / Quarta-Feira, 19.06.1991


CAMOUFLAGE
Meanwhile
LP / CD, Metronome, distri. Polygram



Na linha dos grupos continentais lançados periodicamente no “circo” à cata de dividendos, os alemães Camouflage surpreendem no bom e no mau sentido. O trio constituído por Marcus Meyn, Oliver Kreyssig e Heiko Maile, chegado ao terceiro álbum (após “Voices & Images” e “Methods of Silence”, ambos bem sucedidos em termos de vendas na Europa e nos Estados Unidos), não consegue libertar-se de uma série de óbvias influências, ao ponto de por vezes se tornar difícil distingui-los dos originais. Mas, e aqui radica o lado positivo da questão, embora destituídos de identidade própria, os Camouflage conseguem surpreender pelo apurado sentido melódico e pela criação, ao longo dos 12 temas que compõem o disco, de ambientes “techno pop” suficientemente sugestivos para uma fruição descomplexada por parte do auditor. Assim, “Mellotron”, “Mother” ou “Handsome” poderiam fazer parte de qualquer disco dos Depeche Mode, sem que se notasse a diferença. “These eyes”, “Waiting”, “Bitter sweet” e “Spellbound” passam facilmente por temas dos Japan, a tal modo a voz se parece com a de David Sylvian. “Heaven (I want you)” não destoaria ao lado de outras canções dos Orchestral Manoeuvres in the Dark. Agora que o Verão se aproxima, não são de desperdiçar futilidades tão agradáveis como esta. ***

Legenda
. Imperdoável
* Mau Mau
** Vá Lá
*** Simpático
**** Aprovado
***** Único

Nuno Rebelo – “Nuno Rebelo, Depois Da Vitória No Concurso De Música Moderna – ‘Gosto Da Liberdade De Improvisação'” (entrevista)

Secção Cultura Quarta-Feira, 19.06.1991 (entrevista)


Nuno Rebelo, Depois Da Vitória No Concurso De Música Moderna
“Gosto Da Liberdade De Improvisação”


Dos computadores, Nuno Rebelo passou para os delírios da improvisação em palco. Duas faces de uma mesma moeda: a paixão pela música. Há anos, o concurso do Rock Rendez-Vous lançou-o e aos Mler Ife Dada. Agora a história repete-se, com os Plopoplot Pot.



Os Plopoplot Pot, projecto há muito acalentado por Nuno Rebelo, venceram o Concurso de Música Moderna, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa. Como sempre acontece nestas ocasiões, houve polémica. Vitória da competência sobre a imaginação, disse-se a propósito. Colagem aos Naked City, “exercício masturbatório”, mutíssimo competente execução” foram algumas das “acusações”. Nuno Rebelo não tinha o direito de ser o melhor.
PÚBLICO – Que motivos o levaram a participar num concurso aparentemente vocacionado para a divulgação de novos nomes, o que não é o seu caso nem dos outros Plopoplot Pot?
NUNO REBELO – Os Plopoplot Pot são um projecto surgido há cerca de três anos. O nome era outro mas a ideia era a mesma. Houve alguns ensaios e desistimos. Mas fiquei com essa “fisgada”. Em relação aos concursos, vejo-os como uma oportunidade de concretizar ideias. São uma motivação. Quando era pequeno, fazia histórias de banda desenhada. Pensava em escrever histórias de 50 páginas mas nunca passava da segunda, porque sabia que não as ia publicar. Preciso imenso desses objectivos concretos. Em relação à banda, como não houve nenhuma editora que viesse ter comigo a dizer “forma uma banda que eu gravo-te o disco…”
P. – Mas a vossa participação no concurso pode ser encarada como uma forma de promoção que, na prática, está a tirar a oportunidade a músicos mais novos…
R. – Antes de eu apresentar as maquetes, telefonei para a organização a pôr essa questão. Foi-me dito que havia vários grupos a concorrer com músicos profissionais, um com o Rui Júnior e a Paula dos Ban, falava-se de um grupo com o Jimba e alguns dos Censurados. Disseram-me mesmo que o prémio do concurso era muito bom, precisamente para cativar os profissionais, de modo a aumentar a qualidade, para não se chegar ao fim e o júri dizer “bem, ora vamos lá dar o prémio ao mal menor”.
P. – E se os Plopoplot Pot não tivessem ganho?
R. Teria sido uma vergonha tremenda para mim. Foi um risco que tive de assumir. A partir do momento em que entreguei a maquete, passei a funcionar só em termos de “vou ganhar este concurso”.

Projecto Para Continuar

P. – Os Plopoplot Pot são projecto para continuar?
R. – Isto foi a concretização da ideia do grupo. A segunda etapa é tentar arranjar, o mais rápido possível, maneira de gravar um LP. A terceira, tentar ir lá para fora, uma vez que nos movemos numa área em que competimos em pé de igualdade, o que não acontece com grupos como os Delfins ou os Xutos, que têm de competir com mega-estruturas, ao nível das dos Simple Minds ou Rolling Stones.
P. – Há quem compare a música dos Plopoplot Pot à dos Naked City. Em relação a si, que no grupo toca baixo e violino, vem à baila o nome de Fred Frith. Aceita este tipo de comparações?
R. – O que se passa é haver uma relação de identidade. Há dias, a seguir a um concerto, a propósito da tal influência dos Naked City, respondi que “lá por duas pessoas falarem francês, não quer dizer que se andem a imitar uma à outra”. Dito isto, em termos de referências, é preciso recuar aos anos 70 e aos Gentle Giant, ou aos 80, quando ouvia Fred Frith, com quem me identifico, em termos de sensibilidade musical. Já John Zorn e os Naked City é uma coisa que eu já desenvolvia com os Mler Ife Dada.
P. – As pessoas tendem a associá-lo aos computadores e à música electrónica. Como explica a passagem repentina para um contexto tão diferente?
R. – Nesta banda reencontrei a energia que tinha perdido quando deixei os Street Kids, que vinham da “new wave”. Havia uma carga energética em palco que se foi perdendo nos Mler Ife Dada e de que comecei a sentir falta. Posso dizer que nunca na minha vida dei um concerto em que tivesse descarregado tanta energia, como na final do concurso. Saí com os músculos da barriga completamente doridos, as pernas pareciam de gelatina. Não me aguentava em pé.
P. – Houve mesmo quem chamasse à vossa prestação um “exercício masturbatório”…
R. – Nós o que fizemos foi reencontrar o velho prazer de tocar ao vivo. Em palco, há toda uma comunicação entre os músicos, à base de sinais, de olhares, de gritos. Quase um ritual. Subimos para o palco, fechámo-nos sobre nós próprios e carregámo-nos de energia. A pensar: “vou explodir a seguir, vou dar o máximo”.

O Prazer De Fazer Música

P. Como encara o futuro da música portuguesa alternativa?
R. – Há uma situação interessantíssima na cena actual. Acho tão importante a actividade individual de maturação dos músicos, como depois partilhar isso com os que passaram pelo mesmo processo. No meu caso, há um mês estava no Johnny Guitar com um computador, em improvisações electrónicas, e o Sei Miguel na trompete. Um mês depois estou num palco a partir cordas do baixo. Isto é ser músico, em 1990. Gosto da electrónica, mas também da energia rock e da liberdade de improvisação. Movimento-me pelo prazer de fazer música.
P. – Em que ponto se encontra a hipótese de edição no estrangeiro, nomeadamente na belga Made To Measure (MTM), subsidiária da Crammed?
R. – A “Sagração do Mês de Maio” funcionou como uma espécie de cartão de visita para o Marc Hollander. Mandei-lhe depois material como o “Auto da Índia”, da peça de Gil Vicente, composta sobre música do séc. XVI, vista por um prisma actual, e música étnica dos lugares por onde os portugueses passaram. Disse-me que nunca tinha ouvido nada igual, mas lamentou não poder editar. Ele edita discos de John Lurie ou Arto Lindsay que vendem 40, 50 mil exemplares. Quantos venderia o Nuno Rebelo? O objectivo de Marc Hollander é chegar o dia em que as pessoas comprem um disco da MTM só porque é MTM, seja do José da Silva ou do Mike Stangerman. Só nesse dia o Nuno Rebelo terá lugar na Crammed.

Emilio Cao – “Cao Na Mãe d’Água” (concerto)

Secção Cultura Domingo, 16.06.1991


Cao Na Mãe d’Água

NA MÃE D’ÁGUA, em Lisboa, continua a decorrer (até dia 18) um ciclo dedicado aos instrumentos de corda, à semelhança aliás do que, em local diferente, aconteceu no ano passado. Anteontem à noite foi a vez do duo Carmen Cardeal / Pedro Teixeira da Silva, repectivamente em violino e harpa clássica, e do galego Emilio Cao, em harpa céltica. A Mãe d’Água, situada na zona das Amoreiras, é uma imensa cisterna aberta a meio do aqueduto das águas livres ou, se quisermos, uma catedral de água, cuja ressonância de 55 segundos constitui uma característica interessante (se bem aproveitada) para a prática de música acústica. Espaço mágico, em boa hora dado a descobrir aos lisboetas.
Ao centro da superfície aquática, enquadrado por quatro imponenetes colunas, erguem-se esculturas (da autoria de Susanne Themlitz e Paula Valente) imitando instrumentos de corda, que a iluminação (concebida por Pedro Leston) e a reflexão da água transformam em simetrias luminosas, vibrando em sintonia com o elemento líquido.
Carmen Cardeal e Pedro Teixeira da Silva interpretaram, com a sensibilidade que o espaço circundante pedia, peças de Donizetti, Debussy, Bach e Bartok, entre outros. Se a ressonância, por um lado, dimensiona o som de maneira a dilatar o espectro vibratório, por outro, não tem quaisquer contemplações para com o mínimo deslize dos intérpretes, o que, na ocasião aconteceu algumas (raras) vezes – uma ligeiríssima saída de tom nos registos mais agudos do violino ou uma corda grave da harpa a soar desagradavelmente lassa – mas não chegou para comprometer nem a prestação dos músicos nem o prazer da audição.
Emilio Cao, um dos expoentes da harpa céltica e da música tradicional da Galiza, por seu lado, estava positivamente encantado com a acústica e o ambiente do local. A sua harpa poucas vezes terá soado tão pura e ao mesmo tempo tão majestosa, como na ocasião. Jogando, por várias vezes, com “clusters” prolongados, conseguiu criar acordes e harmónicos que mais se assemelhavam às emanações de um órgão celestial. Cascatas de notas (o músico aludiu ao paralelo entre os sons da harpa e a água) que desaguaram no dedilhar prciso (arrancou estrelas das cordas, trazendo o céu da Galiza para o lago oculto no centro de Lisboa) dos instrumentais célticos e na suavidade contida do canto, de “Fonte do Arano” ou “Amiga Alba e Delgada”. Silêncio interior, reverberado nas notas infinitas da harpa e na comoção das centenas de pessoas que, ostentando no rosto expressões de autêntico êxtase, comungaram com a água, a luz e as intimistas liturgias tradicionais do músico galego. No final, muitos foram aqueles que, querendo talvez continuar a ascese, subiram a estreita escada de pedra que conduz ao terraço da construção, agora transformado em esplanada, para ver, como se fosse a primeira vez, a linha quebrada que une o céu aos telhados de Lisboa.