Numa altura em que os principais impulsionadores do movimento renegam o termo e evoluem para áreas que parecem ancorar nas águas calmas de um novo mainstream, o pós-rock ainda consegue reter a frescura dos primórdios através de novas bandas como os Karamasov e os Mushroom. Nenhuma delas faz avançar grandemente a música deste século, limitando-se ambas a recriar a dos seus heróis. Mas é a sua ingenuidade e ludicidade que extraem da manipulação das texturas sonoras que fazem da audição destes dois discos um prazer. Os Karamasov são uma banda anglo-germânica que não foge a nenhum dos lugares-comuns da primeira geração do pós-rock, da batida sincopada e repetitiva à disseminação intensiva de sintetizadores analógicos. É neste particular que “On Arrival” oferece maiores motivos de gozo, já que a variedade de sons de Moog e ARP utilizados rivaliza com o que grupos como os Cosmic Jokers ofereceram nos anos 70, sob a batuta do produtor “louco” Rolf-Ulrich Kaiser. No caso dos Mushroom, o prazer da audição não é menor. O título do álbum não engana e as primeiras batidas confirmam a suspeita: estamos perante discípulos dos Can. O grupo tem força, Dan Mitaed toca guitarra como Michael Karoli, dos Can, precisamente (um dos temas intitula-se mesmo “The magic of Michael”), há solos de órgão saturados de “fuzz” “à la “ Mike Ratledge, dos Soft Machine, uma dedicatória a Buddy Miles, um mellotron a imitar o som de violino de David Cross em “Lark’s tongues in aspic” dos King Crimson e uma convicção e crença neles próprios que evitam que “Analog Hi-Fi Surprise” descambe no “Kitsch”. Progressivos dos anos 90, porque não?
“I’m trying to get you real when you are not”. A frase é cantada obsessivamente por uma voz feminina, ao longo dos oito minutos do tema de abertura, “To get you real”, de “Zeeland”, segundo álbum dos La! Neu?. ”Estou a tentar-me tornar-te real quando tu não o és”. É exactamente o que tem feito Klaus Dinger, o ex-Kraftwerk fundador dos Neu!, banda emblemática do “krautrock” dos anos 70 e dos La Düsseldorf, que fizeram a ligação do “krautrock” com o “punk”. Ao criar, já nos anos 90, os La! Neu?, uma aglutinação do nome destas duas bandas, Dinger perpetuou uma ilusão que no álbum de estreia, adequadamente intitulado “Düsseldorf”, levava ao absurdo um som característico que alguma crítica estrangeira apelidou de “motorika”: Batida seca e repetitiva, electrónica minimalista e tonalidades de folclore bávaro que nos La Düsseldorf chegaram a rondar o “kitsch”. A ilusão funcionou mas a realidade acabou por se impor. Os La! Neu? Nunca foram um grupo na verdadeira acepção da palavra (ao contrário dos Neu! e dos La Düsseldorf, onde era indispensável a presença do irmão de Klaus, Thomas Dinger) mas um projecto provisório que o próprio Klaus Dinger acabou por abandonar.
Os posteriores desenvolvimentos com a designação de La! Neu?, agora chegados em simultâneo ao mercado nacional, demonstram facetas curiosas da investida recente do “krautrock” nos anos 90. “Zeeland”, gravado ao vivo em estúdio no ano passado, reúne Klaus Dinger, a vocalista Viktoria Wehrmeister, Rembrandt Lensink e Andreas Reihser, teclista dos Kreidler. Viktoria canta como Xana, dos Rádio Macau, no já citado tema de abertura. Os 15 minutos de “Dank je sane” alternam entre a batida dos Neu! e “Ralf & Florian” dos Kraftwerk. Os Can, os Neu! e os Stereolab cruzam-se em “Champagne”, tipicamente “pós-rock”, se nos é permitido o paradoxo. Há ainda os típicos momentos de distensão com guitarra acústica e vozes desmaiadas que em “Neu175” eram puras ondas de prazer e a mãe de Klaus Dinger, Renate, a resuscitar Marlene Dietrich e velhas grafonolas da 2ª Grande Guerra, em “Zeeland”. Um álbum em que só a voz de Viktoria parece estar a mais…
“Rembrandt”, editado já este ano, intitulado a partir do nome de Rembrandt Lensing, é uma colecção de 25 miniaturas electrónicas gravadas em directo que já estão muito para lá das sonoridades arquetípicas do “krautrock”. É o álbum mais experimental dos La! Neu? Construído a partir de colagens de fragmentos sonoros que resultam numa imensa riqueza imagística, nas proximidades do ambientalismo industrial. Não aparece indicada a constituição do grupo.
“Die With Dignity: Kraut?”, também de 1998, ostenta um novo título paradigmático que, neste caso, é também o epitáfio dos La! Neu?. Pelo menos enquanto veículo de expressão de Klaus Dinger que já não participa neste disco, funcionando apenas como uma espécie de consultor e supervisor musical. Uns tais Brenner, Broszat e Guderia surgem como os três elementos principais da mais recente encaranação dos La! Neu?. Ou tratar-se-á, simplesmente, de uma brincadeira? Seja como fôr, “Die With Dignity” é uma deliciosa sinfonização de ruído, melodias “naif”, colagens (uma coz de criança sobre uma espécie de “scratch”, em “Kinderlied”), pós-rock saturado(“Kochrezept”, “Feuertag”), folk teutónico com sabor cósmico, a la Hoederlin e Emtidi (“Anruf aus brasilien”, “Magischer Traum”), Jazz com influências dos Faust, de “So Far” (“Ein Wahn”) e furiosas torrentes de ritmo pós-punk (“Es tut mir leid, ich bin normal”, “Peço desculpa por ser normal”), de uma brutalidade ainda mais intensa que a do álbum de estreia do grupo, “Düsseldorf”. A morte com dignidade do “krautrock”, segundo so La! Neu?, funciona como o derradeiro dos paradoxos, um exercício de ginástica que faz coincidir a sua negação com uma recuperação notável do “novo” – “neu” – que desde sempre o grupo de Klaus Dinger perseguiu.
Pela Captain Trip chegaram também álbuns dos Amon Düül II e La Düsseldorf (discografias completas), Klaus e Thomas Dinger a solo, Mani Neumeier, Spacebox (de Uli Trepte), Workshop (e se os Can, afinal, estivessem vivos?), Cluster (ao vivo no Japão), Die Krupps, Dunkelziffer (novo, ao vivo), Space Explosion, Tiere der Nacht e S.Y.P.H. (com Holger Czukay).
Os Appliance são David Ireland e James Brooks, dois antigos companheiros de escola que passaram o tempo a ouvir os velhos discos dos Neu! e dos Can antes de se juntarem, em 1995, a um terceiro elemento, Michael Parker, um construtor obsessivo de pedais para o baixo e de geradores de frequência. Depois da obrigatória passagem pelo programa de John Peel e de uma série de singles e EP, como “Organised Sound” e “The Time and Space EP”, gravados para a sua própria editora Surveillance, os Appliance gravaram finalmente em Abril já deste ano o primeiro álbum para a Mute, “Food Music”. “Manual”, segundo álbum para esta editora, é o enésimo exemplo da apropriação da batida dos Neu! por uma nova banda enquanto a referência aos Can tem menos a ver com o minimalismo sobrenatural do grupo alemão do que com a suavidade das vocalizações de James Brooks, passíveis de remota comparação com Malcolm Mooney. O instrumental de abertura, “Soft Landing”, um curioso “pastische” de “Cheree” dos Suicide, não tem continuação, acabando “Manual” por soar mais aos Wire (“154”, desta banda, é um dos primeiros álbuns pós-rock de sempre…) do que a qualquer clonagem de krautrock, mantendo um balanço equidistante do pós-rock e do eixo mais electrónico de Manchester dos anos 80. A ficha técnica, impressa em série na capa interior, exibe orgulhosamente um estendal de mais de 50 instrumentos e artefactos sonoros utilizados pelos Appliance, ultrapassando as mais carregadas listas dos Yes, Gentle Giant ou Tangerine Dream…