Arquivo mensal: Outubro 2017

The Chieftains – “Water from the Well” + Gaelic Storm – “Herding Cats” + Sussan Deyhim – “Madman of God” + Lama Gyurme & Jean-Philippe Rykiel – “Rain of Blessings: Vjara Chants”

10 de Março 2000
WORLD


Poço dos desejos


The Cieftains – “”

Decorridos 37 anos de carreira, os The Chieftains tornaram-se uma instituição da folk irlandesa em particular e da world music em geral. Estatuto invejável que nem a edição do anterior álbum do grupo, “Tears of Stone”, que rondava a mediocridade, conseguiu manchar. Com o novo “Water from the Well”, mais do que emendarem a mão os Chieftains vão mais longe (ou será melhor dizer mais perto?) voltando a mergulhar de corpo inteiro e em exclusivo na música tradicional do seu país. O que significa que desta vez não há estrelas rock nem música da China nem cowboiadas de qualquer espécie de ninguém. É “Irish traditional folk” como já não faziam há muito, com convidados, é certo, mas desta feita todos irlandeses, como a Belfast Harp Orchestra ou os Altan, que participam em “The Donegal set”. “Water from the Well” (“Água do Poço” é o típico trabalho de regresso às origens, quase um “arrependimento” dos anteriores “desvios”. Gravado no já habitual “Windmill studios”, em Dublin, mas também ao vivo em diversos condados da Irlanda (em Mayo, no célebre pub de Matt Molloy, em Westport, e em Donegal, Kerry, Clare…) “Water from the Well” é também uma homenagem e um roteiro de viagem a uma ilha onde a música se confunde com as paisagens e as pessoas. As belíssimas fotos e o mapa da Irlanda que acompanham esta edição são um convite para se ir a correr comprar um bilhete de avião. Mas perguntam vocês, cheios de impaciência: e a música? É notável? Única? Bom, lá única será, para quem não tiver ouvido os anteriores 352 álbuns dos Chieftains, nomeadamente toda a primeira fase da sua discografia. E notável tem sido (quase) sempre. Agora não se exijam surpresas nem grande excitação a “Water from the Well”, um álbum clássico, formal e instrumentalmente imaculado, sem concessões, em que o motivo de maior destaque será a definitiva emancipação de Kevin Conneff como cantor. O que é que se pode desejar mais dos Chieftains? Apenas que continuem. (RCA, distri. BMG, 8/10)

Entusiasmo e energia a rodos não faltam aos Gaelic Storm, jovem grupo constituído por um irlandês, dois ingleses e um americano que provavelmente se encontraram num “pub” com um “pint” na mão. “Herding Cats” é o álbum de estreia do grupo onde é visível esse espírito de jovialidade alcoólica, num folk rock sem grandes preciosismos nem pretensões cuja principal função é criar boa disposição e, com ajuda de um bom combustível líquido, fazer dançar. “After hours at McGann’s”, “Breakfast at lady A’s” (com um bom desempenho nas “uillean pipes” do convidado Eric Rigler) e “The devil went down to Doolin” (a mostrar que os Gaelic Storm têm em Samantha Hunt uma boa violinista) são os temas que permitem vaticinar um futuro promissor para o grupo. Aliás, já que se fala em combustíveis, os Gaelic Storm são a banda que aparece a tocar ao vivo na cena da festa no porão de “Titanic” o tema que fecha este álbum, “Titanic set”, outro dos bons momentos de “Herding Cats”. Curiosamente, o grupo mostra aqui maior agilidade no “jig” inicial do que no consequente “reel”, algo preso de movimentos. Esperemos que, ao contrário do que aconteceu com o navio, e apesar da trovoada, os Gaelic Storm não se afundem… (Omtown, distri. Distrimúsica, 6/10)

Sussan Deyhim é uma cantora natural de Teerão residente em Nova Iorque que já trabalhou, entre outros, com Jah Wobble, Peter Gabriel, Bill Laswell, Bobby McFerrin e Adrian Sherwood, embora o trabalho no qual a sua voz mais se notabilizou seja “Desert Equations: Azax Attra”, o lado do teclista Richard Horowitz, editado nos anos 80 para a editora Made to Measure. Não é fácil classificar o estilo vocal de Sussan Deyhim, um estilo onde as técnicas tradicionais e contemporâneas se cruzam de forma original. Pense-se em Meredith Monk perdida no meio do deserto. Ou em Meira Asher, convertida ao islamismo. Uma voz hipnótica onde a sensualidade e o mistério da música árabe se casam com uma estranha modernidade. “Madman of God” não soará estranho aos ouvidos que escutaram “Desert Equations”, com os mesmos processamentos electrónicos da voz a destacaram-se de entre a panóplia de instrumentos étnicos (Glen Velez é um dos percussionistas) num álbum que reúne melodias do reportório religioso da Pérsia, de poetas sufis dos séculos XI ao XIX, como Rûmi, Saadi e Djami. De todos eles, Sussan Deyhim destacou e transpôs para a sua voz a importância da “vibração” que une a poesia e a música no sentido da ascese espiritual. “Madman of God” é um álbum de “world music” no sentido mais lato do termo, tão “étnico” como as “Novas Polifonias Corsas” de Hector Zazou, por exemplo, ou seja, música de um mundo em que a natureza, os mitos e o diálogo com Deus se tornaram informação em circulação electrónica numa rede global. (Cramworld, distri. Megamúsica, 8/10)

O Oriente e o Ocidente voltam a cruzar-se em “Rain of Blessings: Vjara Chants”, segundo álbum resultante da colaboração do cantor e monge tibetano Lama Gyurme com o teclista francês Jean-Philippe Rykiel. Às entoações graves e aos mantras pronunciados como uma oração pelo religioso acrescenta o francês um ambientalismo electrónico que não está à altura da profundidade do canto. Ao contrário do que, numa colaboração semelhante, fez Steve Tibbetts com outro cantor tibetano, Choying Drolma, em “Chö”, Rykiel preocupou-se mais em abonecar e suavizar o sentido iniciático do seu parceiro budista do que propriamente em pontuar esse caminho para o sagrado com a simplicidade e a contenção exigidas. Vangelis e Kitaro não fariam melhor. Ou talvez fizessem se pensarmos no horripilante solo de guitarra eléctrica “mística” que corta “Offering chant” em pedaços de fruta cristalizada new age. Talvez seja assim porque já houve tempos em que Lama Gyurme costumava cantar em finais de “raves” para audiências extenuadas, desempenhando as funções de “chill out”. Deixou de o fazer entretanto porque, segundo parece, o “estado mental” dos ravers não era o mais adequado para apreender os seus propósitos de elevação espiritual… Não importa, leve-se esta “Chuva de Bênçãos” para a tenda que o efeito é o mesmo. (Real World, distri. EMI-VC, 5/10.)



The Alchemysts & Simeon – “Simeon & The Alchemysts”

Y 29|DEZEMBRO|2000
escolhas|discos


THE ALCHEMYSTS & SIMEON
Simeon & The Alchemysts
Woronzow, distri. Sabotage
7|10



Agora que o Natal já passou já podemos voltar a arreganhar os dentes como fazem estes Alquimistas, de Glastonbury, terra de hippies, vejam lá. “Simeon & The Alchemysts” surge em simultâneo com “Zero Zen”, respetivamente de 1998 e 1999, terceiro e quarto álbum da banda. Dos dois, “Simeon & The Alchemysts” é o mais interessante, devido à presença do convidado Simeon Coxe, lendário manipulador de osciladores e outras engenhocas eletrónicas artesanais nos Silver Apples. É Coxe quem confere uma faceta espacial e experimentalista a uma música feita de guitarras virulentas e batidas rock primárias cortadas por bolhas de vibrafone, numa sequência de “bad trips” que percorre o espectro entre os Seeds e os MC5, os Hawkwind e os Pere Ubu, os Silver Apples e os Jessamine. “Zero Zen” é mais broca de dentista mas também mais convencional.



Rob Ellis – “Music For The Home”

Y 29|DEZEMBRO|2000
discos|escolhas



ROB ELLIS
Music for the Home
The Leaf, distri. Ananana
6|10




Produtor e colaborador de P. J. Harvey, Swell, Laika e Giant Sand, fornecedor de “loops” para Scott Walker, Rob Ellis apresenta-se a solo como personagem esotérica munida de uma coleção de peças domésticas gravadas entre 1994 e 1999 que pretendem ser a “resposta de uma fã à música de Stravinsky”. Pelo que quem estiver na expetativa de ouvir rock pode tirar os cavalinhos da chuva. “Music for the Home”, subintitulado “Instrumental, mechanical & electronic music”, reúne miniaturas de eletrónica programática, limpa e lustrosa, piano digital e caixas de música liofilizadas segundo uma abordagem minimal/serialista/romântica que enfia no mesmo cabaz Stravinsky, Satie, Messiaen, Boulez, Xenakis, Britten, Reich e “Os Três Porquinhos”. Álbum cerebral, literalmente gelado em “Arctic crossings”, na mesma latitude dos Biosphere.


Films For The Home No. 1 from Aaron Johnson on Vimeo.