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Blowzabella – “A Richer Dust”

pop rock >> quarta-feira >> 28.04.1993
WORLD
REEDIÇÕES



Blowzabella
A Richer Dust
CD Plant Life, distri. MC – Mundo da Canção


Grupo de passagem mais ou menos meteórica pela cena folk britânica, os Blowzabella, liderados pelo virtuoso da sanfona Nigel Eaton, ainda tiveram tempo para gravar a sua obra-prima, “A Richer Dust”, entre um álbum de estreia gravado ao vivo no Brasil (“Pingha Frenzy”, também já reeditado em CD) e o terceiro e derradeiro “Vanilla”. O que impressiona neste projecto e, em particular, neste disco, é a releitura demencial que os Blowzabella fazem da música folk inglesa. A transposição do passado para algo que, embora mantendo as raízes amarradas a esse passado, se projecta numa proposta radicalmente nova que a expressão do título e temas, como “The new jigs” ou “The new hornpipes”, de resto, acentuam. Nigel Eaton e os seus companheiros põem em destaque uma série de lugares-comuns da folk (as conotações célticas ou as “drinking songs”, por exemplo), ampliando-os e saturando-os de sonoridades e repetições temáticas, até criarem uma situação de quase ruptura.
A sanfona e a gaita-de-foles, magistralmente manipuladas por Eaton e po Paul James, enovelam-se com o violino de David Shepherd e o “melodeon” de David Roberts, num trabalho de acumulação e saturação que desemboca em momentos de explosão e, mais raramente, de pacificação. Exemplo desta estética do excesso é a sequência instrumental “The War of the roses” que ocupava todo o primeiro lado do formato emj vinilo, composta sobre módulos melódico-harmónicos obsessivos, carregados de tensão. Neste aspecto, Blowzabella podem ser considerados os King Crimson da música folk.
Os temas restantes de “A Richer Dust” (mais dois que no vinilo) funcionam como contraponto, salientando-se a especialíssima concepção do canto tradicional de Jo Fraser, em “Our captain cried”, e os arremedos etílicos de Paul James, em “The Diamond”. De lamentar apenas o pouco cuidado posto na transposição para o digital, a requerer um outro tipo de mistura. (10)

Anúna – “Anúna”

pop rock >> quarta-feira >> 28.04.1993
WORLD


ANUNA
Anúna
CD Danú, distri. VGM

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Ainda mal se extinguiram os ecos de “Vox de Nube” e já outras vozes se levantam em coro numa catedral, agora dos Anúna, formação de 16 músicos (embora possam apresentar ao vivo um grupo com menos elementos) sob a direcção de Michael McGlynn, cujo reportório incide maioritariamente na música da tradição celta irlandesa, da Idade Média a compositores contemporâneos.
Surgidos na Irlanda em 1989, os Anúna – nome correspondente ao irlandês antigo “Na Uaithne”, o deus bom tocador de harpa – contam já no seu currículo actuações ao lado de Máire Ní Bhraonáin (Clannad), Liam O’ Flynn e, hélas, Noirín Ní Ríain, essa mesma, a voz celestial de “Vox de Nube”. Michael McGlynn gosta de compor peças, ao estilo épico mas acessível, com nomes sugestivos – “Media Vita”, “Invocation”, “Carmacus Scripsit” – e de pôr o coro a cantar em igrejas, onde a acústica do espaço resulta sempre quando se trata delevantar a voz ao céu. Em “Anúna” é o que mais uma vez acontece – 15 vozes mistas agregadas na sublime missão de nos fazer ascender à morada dos deuses.
A primeira impressão que se desprende é de majestosidade. De luminosidade de vitrais. De diálogo com o transcendente. Neste aspecto, “Anúna” soa até, num primeiro contacto com a música, mais bonito que “Vox de Nube”. Só que “mais bonito” não significa forçosamente “mais belo”. É que em “Vox de Nube” existe a profundidade da liturgia enquanto que dos Anúna ressalta amiúde a sensação de vozes deslumbradas pela reverberação, confundidas em autocontemplação, em diálogo ao espelho consigo mesmas e menos com o divino. Até ao nível da instrumentação é perceptível a diferença existente entre os dois discos, se compararmos as vibrações de uma sanfona e as “drones” de um órgão indiano, de “Vox de Nube”, com os chilreios e fantasias de um “tin whistle”, de um violino ou de uma harpa, em “Anúna”.
“Vox de Nube” exige mais do auditor. É nuvem mas também sangue. “Anúna” mostra um azul mais límpido – o azul sem mácula do tema “The blue bird”, sobre um texto de Mary Coleridge que descreve uma visão: “Um pássaro azul, num céu azul, sobre um lago azul” – mas destituído do drama e da dilaceração que toda a ascese necessariamente comporta. Leva-nos, sem dúvida, pelo ar, a ver paisagens de uma perspectiva superior. Mas não tão alto que faça perder de vista a Terra.
Feitas as comparações, “Anúna” é um objecto de sedução imediata. Prisma refractor de sonhos e imagens que percorrem o quadro anímico que consentimos em chamar “celta”. Um passeio pela Idade Média sublimada, da música de um abade do século XII a um “Sanctus” escrito por McGlynn, evocativo de uma Idade que nos ensinaram ser das trevas, mas que é infinitamente mais luminoso que a escuridão do século em que vivemos, passando por um exerc´cicio de “mouth music”, ou “puirt-a-beul” (“Fionnghuala”, segundo a versão dos Bothy Band incluída em “Old Hag you have Killed me”, aqui quase contrária no espírito), e por um hino de St. Godric, também do século XII, uma das primeiras composições cantadas em língua inglesa. “Anúna” renova a viagem de “Vox de Nube”, desta vez não ao sétimo mas ao quinto, vá lá, ao sexto céu. (8)
P.S. – Prestes a sair um álbum novo dos Patrick Street, em boa hora ressuscitados. Atenção: encontram-se à venda na Voz do Operário, vários exemplares da caixa com três álbuns, livro e colecção de “slides”, “Instrumentos Populares Galegos”, dos Obradoiro.

Vários (Maria Viana, Maria João, Bernardo Sassetti, Mário Laginha, Laurent Filipe, Carlos Martins, Luís Villas-Boas, …) – “Solidariedade Junta Músicos De Jazz Portugueses – Vivos E De Boa Saúde” (concertos)

cultura >> quarta-feira >> 21.04.1993


Solidariedade Junta Músicos De Jazz Portugueses
Vivos E De Boa Saúde



Cerca de três dezenas de músicos portugueses provaram na Aula Magna, em Lisboa, que o jazz é linguagem universal mas também sinónimo de diferença. Em concerto de solidariedade com os doentes mentais, no meio da qualidade das várias propostas musicais, o som acabou por ser o principal deficiente.

Sem quantidade não pode haver qualidade, disse António Curvelo, um dos apresentadores do Concerto Jazz de Solidariedade com os Doentes Mentais, a propósito dos cerca de trinta músicos de jazz portugueses que participaram na iniciativa. Sem um som e condições à altura é mais difícil, acrescentamos nós. Os milhares de pagantes que na noite de segunda-feira encheram por completo a Aula Magna da reitoria da Universidade de Lisboa não se resignaram com o incomodativo zumbido de fundo que acompanhou todo o concerto. “Problemas de terra”, desculpou-se a representante da AEIPS – Associação para o Estudo e Integração Psicossocial. De terra ou da lua, tanto faz, as prestações dos músicos saíram prejudicadas. Se bem que o concerto fosse de solidariedade com os doentes mentais não era necessário que o som fosse também deficiente. Ninguém se conformou. Os Idefix preparavam-se para atacar o primeiro tema da noite mas os gritos da audiência não deixavam – “Não comecem!”, “adiem o concerto!”, “Olha o ruído!”, “Não queremos barulho, queremos música!”. Pudera, a cinco mil escudos o bilhete tem-se o direito de querer tudo e mais alguma coisa. Só faltou o tradicional “Ó marreco, olha o sonoro!”.
Com ou sem ruído de fundo (avançou-se com) os Idefix deram início à função. Dois longos temas, “Random Walk” e “Time lines” não deram aso a grandes entusiasmos. Os Idefix têm para já um par de bons solistas, Sérgio Pelágio, na guitarra, e Paulo Curado, nos saxofones soprano e tenor, e um projecto de fusão que faz tangente com a “dowtown” de Nova Iorque e o jazz conceptual de grupos como Orthotonics, Doctor Nerve ou Uludag.
Maria Viana actuou a seguir. A intérprete do álbum acabado de editar “A Viana” mostrou que não chega armar a pose de cantora de jazz para se ser uma cantora de jazz. Claro que a provocante minissaia preta que trazia vestida ajudou um pouco. Mais que não seja para desviar as atenções. Sobrou-lhe em perna o que lhe faltou em voz. Um descalabro, com os “scats” de trazer por casa e os instrumentos de acompanhamento a tocar cada um para seu lado, numa salganhada sem alma nem sentido.
Fechou a primeira parte do espectáculo o Quarteto (na ocasião, terceto, dada a ausência do percussionista José Salgueiro) de Bernardo Sassetti, primeira banda a espalhar pela Aula Magna o sabor e o perfume do jazz de corpo inteiro. Sem grandes ousadias, é certo, mas com segurança e a assimilação correcta das formas tradicionais. De encher o coração e o ouvido, as conversas a dois mantidas entre o piano de Sassetti e o contrabaixo de Bernardo Moreira.
Depois do intervalo foi outra loiça. Luís Villas-Boas, o senhor jazz, fez a apresentação, muito “cool”, do gripo de Carlos Martins, sendo de imediato mimoseado com um carinhoso “morte ao Villas!” gritado da plateia, mantendo-se uma tradição que remonta aos Festivais de Jazz de Cascais. Carlos Martins e o seu quinteto decidiram, e bem, dispensar a amplificação assassina, optando por um “set” acústico. Surpreenderam a progressão da linguagem desenvolvida pelo grupo que encontrou no saxofone tenor do seu líder uma reserva inesgotável de força e de lirismo aos quais respondeu de forma categórica o trompete de Laurent Filipe, solista de grande categoria, na escola dos grandes Miles e Marsalis. Precioso o contraponto rítmico oferecidopelo contrabaixo de Carlos Barreto e a bateria de Manuel Barreiros. A surpresa veio do pianista João Paulo Silva, possuidor de um estilo rendilhado, pleno de contenção, sugestivo de cadências e caminhos a desenvolver pelos restantes músicos. Grande jazz.

Templários

Maior e mais alto ainda foi o templo erigido pela dupla Maria João / Mário Laginha. A cada encontro com a sua música, espanta a evolução sem fim, o aprofundamento do discurso, a coesão e entendimento perfeito entre ambos. São dois em um e um em dois. Caso rarao de simbiose de talentos e sensibilidades complementares que não param de crescer. Distingue-os a entrega e a atenção ao que flui de dentro. A compreensão de que a música, no grau mais elevado, é ascese.
Maria João manipula o espaço e as suas linhas de energia, com o gesto de uma tocadora de harpa. Separa-se de si própria e mira-se no reflexo. Alice do outro lado do espelho. Muda a cor da pele, no modo como encarna as vozes e os corpos brasileiros, africanos, astrais. Atravessa o rio, da margem do terror à margem da ternura. Maria João canta como se nadasse na música. Organismo vivo. Perpetuum Mobile.
Mário Laginha desempenha a função de construtor do templo em cujas colunas se anela o canto-hera. Diferentemente de Bernardo Sassetti e João Paulo, ambos excelenetes pianistas, que engendram narrativas aina regidas pelos cânones do romantismo, Laginha é pitagórico, pedreiro-livre e livre pensador de geometrias fractais. Serve-se do piano para esculpir o silêncio, para pesquisar os intervalos, as notas no interior das notas, big-bangs microscópicos, no centro da fragmentação. Dizia Nietzsche que o caminho mais curto entre duas montanhas faz-se de cume a cume.
Junto ao sopé, para que conste: Maria João e Mário Laginha deram vida aos temas “O vox omnis”, “Várias Danças”, “Saudosa Maloca” e “Um dia inteiro”, a incluir no próximo disco do duo, “Danças”.
Encerraram este concerto de solidariedade com os doentes mentais os dezassete instrumentistas da Orquestra do Hot Clube de Portugal, sob a direcção de Pedro Moreira. Com eles o jazz regressou a casa e ao conforto das origens. Sem quantidade não pode haver qualidade. Sem as raízes bem fixas no solo, a árvore não pode estender os seus ramos para o céu.