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On Paper
2xCD Crónica, distri. Matéria Prima
8/10
O suicídio esclarecido de Sócrates, encarado como prova da imortalidade da alma, faz sentido em termos ontológicos. Acontece que, quando calha a nós, como diria Woody Allen, faz sentido, sim, mas “no papel”. Esta discrepância entre a Fé e a desconfiança da razão encontra eco no trabalho de “colagem/descolagem” empreendida por artistas sónicos portugueses como Vítor Joaquim, @C, Paulo Raposo, Longina e Pedro Tudela, a partir de um tema deste último, “Rasgão.aif”, e do papel, simultaneamente superfície rasa e suporte de informação. “Aceitar que se trata de uma matéria que acumula informação por camadas e conjugações” como ponto de partida, determina as múltiplas manipulações/funções de “On Paper” em que o som do papel (rasgado, dobrado, batido à máquina…) é processado electronicamente. Ao contrário da máxima de Allen, porém, resulta desta operação não a dúvida ou o medo, mas uma paleta diversificada de músicas inseridas no “industrial”, na música concreta, no ambientalismo digital sujo ou em abstracções órfãs de paternidade estética. Soa incómodo, no papel. Aos ouvidos, felizmente, ainda mais.
“Tommy, can you hear me?”, o grito, ouvido nos quatro cantos do mundo onde se ouve música rock, volta a ecoar, passados 35 anos. Tommy, o rapaz cego, surdo e mudo que se relacionava com a realidade através dos jogos de flippers, nos quais era imbatível, está de regresso. Agora em formato de super áudio CD (legível também nos leitores vulgares), em som Surround e aumentado para dois discos. Sujeito a nova remistura por Pete Townshend, o álbum tem agora a companhia de 17 temas extra, incluindo “demos” e apontamentos dispensáveis. Lamenta-se ainda, em comparação com a anterior reedição (em CD simples), a ausência e a eliminação do grafismo original.
Mas é “Tommy”, a ópera-rock, que renasce das cinzas. Na altura foi recebida com aclamações de “obra-prima” mas também como uma exploração chocante da temática do autismo e da violação (numa parte da narrativa, Tommy, ainda criança, é violado por um tio). “Tommy” é ambas as coisas, marcado pelo acesso de misticismo de Townshend, na altura influenciado pelas ideias de Meher Baba (o grande álbum da banda, “Who’s Next”, abriria mesmo com o tema-dedicatória “Baba O’Riley”).
Sexo, drogas (o ácido, claro, estava-se em 1969… e em 2004, o último número da Mojo dedica 40 páginas ao tema!…), ilusões, traumas, religião, falhanços e, em última instância, o triunfo e a glória do herói, metamorfoseado em Messias, reflectem as preocupações do líder e guitarrista do The Who, para quem a realidade não é percebida exclusivamente pelos sentidos mas por uma visão interior. “Tommy” é essa viagem de descoberta interior. O disco teve, aliás, títulos provisórios elucidativos, como “Amazing Journey”, “The Brain Opera”, “Journey into Space” e “Deaf, Dumb and Blind Boy”. Sofreu precalços. De grande música derivou para o espectáculo de pacotilha em que Ken Russell o transformou, ao fazer do tema matéria para o seu filme e, consequentemente, convocando para a banda sonora uma chusma de estrelas para interpretarem, no filme e no disco, as personagens idealizadas por Townshend. Esse, porém, é outro “Tommy”, porventura até mais conhecido.
As 24 canções de “Tommy” são jogadas acutilantes de pop e rock que integram elementos de psicadelismo (“Christmas”, “Cousin Kevin” ou “Smash the mirror”, por exemplo, mais do “The acid queen”, são suficientes para amolgar o cérebro), melodias de sedução e precisão notáveis e arranjos que desmentem em absoluto a ideia da ópera-rock ser um amontoado balofo de exibicionismo de meios e lugares-comuns. “It’s a boy”, “Pinball wizard” e “I´m free” são as canções mais conhecidas, aquelas às quais as rádios e as memórias se agarraram, mas é a sequência total que impressiona.
“See me, feel me, touch me, heal me” é o pedido de auxílio, lançado insistentemente pelo deus dos “flippers”. “Tommy”, o disco, faz o mesmo apelo.
Uma voz de menina inocente, sapatos de ritmo com marca “new wave”, energia com escape livre, electrónica convenientemente adaptada à tendência “electro-punk” em voga. Canções com cabeça, tronco e membros, não necessariamente por esta ordem. A combinação resulta. Há quem tente definir esta banda sediada em Brooklyn através do recurso a citações aos Tom Tom Club, The Cure iniciais e Love. Os primeiros a sustentar a faceta “new wave” musculada, os segundos tentando contextualizar a sonoridade de um tema como “UTZ”, os Love garantindo a credibilidade do lado psicadélico do grupo, cultivado em “Storm and gates”. Há ainda o exotismo resultante das vocalizações da cantora japonesa Toko Yasuda, sabendo-se da capacidade das vocalistas japonesas para soarem como bonecas mecânicas capazes de soletrar toda a gama de emoções situadas entre a inocência e a perversidade (“Mikazuka”, “Monsoon”). Se juntarmos a tudo isto um lado teatral e o glam-punk do Bowie de Ziggy Stardust (“Litter in the glitter”) ou a balada final que dá título ao álbum, embalada em guitarra acústica e sintetizadores-realejo, compreenderemos melhor que o principal problema dos Enon estará nesta altura em encontrar um fio condutor que os transforme de banda cheia de ideias em banda com rosto próprio.