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Amélia Muge – “Em Público” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 26.01.1994


AMÉLIA MUGE *
EM PÚBLICO



Aguarda-se com grande expectativa o seu próximo álbum. José Martins vai, como no anterior, tomar as rédeas do poder ou haverá, desta vez, maior controlo da sua parte?
Nunca tenho a sensação de que estou a dirigir as operações. Até mesmo quando componho, sinto sempre que há interferências, em concreto dos próprios materiais que estão em jogo. São eles que se impõem e me arrastam. O novo disco, é evidente, reflecte muito mais um diálogo e a evolução natural desse diálogo. Tenho muitas coisas que começaram por ser tocadas de uma certa maneira e que, neste momento, já estão a ser tocadas de outra. É um disco que reflecte uma caminhada, bastante mais do que o outro.

Quais são as etapas principais dessa caminhada?
O papel individual de cada um no colectivo que representa este disco [José Martins, Luís Sá-Pessoa] está mais bem definido, sentimo-nos os três melhores na nossa individualidade. O novo disco vai ter coisas compostas há muitos anos, em Moçambique, as coisas novas misturam-se com as antigas. Um dos grandes defeitos, mais do que virtudes, de uma pessoa como eu – é esta de dizer: “Será que vou conseguir meter nesta leva aquela e aquela canção que ficaram de fora e que eu gostava de aproveitar?” Estou sempre insatisfeita porque tenho imenso material e, muitas vezes, a selecção continua a não depender de mim. De repente, ponho qualquer coisa cá para fora e o interesse das pessoas é tão grande que a canção acaba por se impor, sem que haja uma selecção criteriosa minha. Mas isso é bom.

Em que estado se encontra a sua ligação com a música tradicional? Está já confirmada a sua participação no festival Intercéltico deste ano…
Não sei muito bem o que é a música tradicional. Sei que não tem a ver com formalismos mas mais com atitudes, com aproximações que ultrapassam as próprias morfologias musicais. Para mim, a importância do Intercéltico tem exactamente a ver com isto: por um lado, com esse espírito aberto que nós, ao longo da história, nos habituámos a encontrar nos celtas, embora depois existam certos povos, como a Irlanda, que acabaram por transformar essa música num símbolo de resistência e, aí, ela acaba por cristalizar em termos formais. Mas, regra geral, o espírito da música tradicional é de grande abertura e troca de experiências. Há muita coisa que as pessoas não se habituaram a ver dentro do tradicional, como sejam novos temas, novas sonoridades, novos métodos de se trabalhar, muita coisa que irá fazer parte, no futuro, do património tradicional.

Até que ponto o seu estilo vocal incorpora elementos e técnicas do canto tradicional?
Mais, se calhar, que o canto tradicional, o canto das pessoas que cantam. Por exemplo, nas Janeiras, em que se verifica a prática de cantar em conjunto, de estarmos ao lado a ouvir a voz do outro, sem ser através do disco nem da rádio. A ideia de coro é fundamental para o canto individual. Quando ouço a voz de um homem ou de uma mulher a cantar nas Janeiras, não poso deixar de ver, por trás, um avô que ensinou aquilo àquela pessoa, um passado que é familiar antes de ser social, do testemunho de estar vivo que passa pela canção.

É essa sua sensibilidade ao canto comunitário que está na base da formação do projecto de vozes femininas Agrupa?
Pois, que eu não queria que fosse o “meu” projecto. Acho que só pode haver um projecto quando há materiais, coisas concretas a partir das quais se pode trabalhar. Isso é uma coisa que eu já tinha. Tenho certas coisas que nunca cantarei sozinha, que têm a ver com um colectivo de vozes. Por outro lado, não sei se por estar há demasiado tempo deligada disso que é ouvir outras vozes a cantarem em conjunto, vozes atrás da porta como se ouvia em Moçambique, sinto muita falta desse lado. A primeira vez que voltei a sentir de novo isso foi quando estava em casa de uma amiga, na Graça, e ouvi pessoas a ensaiarem as marchas populares de Lisboa. Afinal, há gente que canta! Isto para mim é fundamental. Por outro lado, a própria prática de cantar a várias vozes, talvez porque componho muito com a voz, é que me permite chegar aos instrumentos de uma outra maneira. Há, pois, também questões de aprendizagem. Se os processos são ricos, dão produtos ricos.

Vão ser só a Amélia Muge, a Margarida Antunes e a Cristina Antunes?
Para já, somos o núcleo duro. Gostaríamos muito de encontrar outras pessoas na mesma onda. Por exemplo, pessoas como a Filipa Pais, a Minela, a Teresa Salgueiro ou a Maria João. Inclusive, já falámos. Na teoria, tanto a João como a Filipa disseram que sim. Só que têm surgido problemas de ordem prática… Enquanto eu, a Cristina e a Guida nos encontramos uma vez por semana, não só para cantarmos como para fazermos exercícios respiratórios, vocais… Para já, estamos as três a pensar propor um trabalho de conjunto para Lisboa, Capital da Cultura, que seria um espectáculo ao vivo. Já temos um reportório de seis canções, compostas por mim, com letras minhas e duas da Hélia Correia. Tencionamos também ir buscar coisas do Lopes Graça, do Zeca, não serão só originais.

Passemos a uma questão delicada, relativa à UPAV e ao modo como foi distribuído e promovido o seu álbum de estreia, “Múgica”, que desapareceu do mercado depois de uma primeira edição esgotada em poucos dias…
O disco, de que foi feita apenas uma primeira edição de 2000 exemplares, está esgotadíssimo, é verdade. Na altura em que se estava a pensar fazer uma segunda edição, surgiram os problemas da suspensão de toda a actividade editorial da UPAV. Os dois mil exemplares editados são, de facto, um número muito baixo, que teve a ver com contenção de despesas e com uma sondagem de mercado. Mas, a partir do momento em que o disco esgotou… E quem vendeu mais foram os armazéns, o Serafim, da Movieplay (ver página 4 deste suplemento); e, se vendeu, foi porque as discotecas o procuraram…

Não se sente frustrada por o disco ter chegado a tão poucas pessoas?
Há sempre a hipótese de nos tornarmos profissionais da frustração, o que, neste país, é muito comum. Às vezes penso até que as pessoas têm um certo gosto em estar frustradas, por acharem que ficam mais interessantes. Tudo aquilo que possa ter corrido menos bem em relação ao disco não elimina o facto de a UPAV ter apostado na gravação quando nenhuma editora quis pegar no disco; como não elimina a importância que tudo isso teve para mim no determinar de um certo tipo de opções que eu fui tomando, que me permitiram, no fundo, fazer aquilo que quero que é estar a trabalhar mais na música. Considero que o processo em si, da feitura do disco, foi extremamente positivo. Sobre o lado que tem mais a ver com a venda, fica, apesar de tudo, em aberto a hipótese, no caso de o próximo disco vender bem, de ser feita a reedição do primeiro. Vamos até imaginar que tinha sido feita uma edição de 10 mil exemplares e tivesse apenas vendido mil. Nesse caso, estaria muito pior do que estou neste momento, em que sei que não há um único disco cá fora.

Hoje, que o seu nome se tornou já mais conhecido, mudou alguma coisa na atitude das editoras em relação a si? O próximo disco já tem editora?
Em relação ao novo álbum, estou ainda na fase de selecção dos temas. Tenho um bocado de dificuldade em me situar em relação a isso. Para mim, as editoras não são um todo homogéneo. Estou a seguir com o maior interesse o actual movimento das pequenas editoras independentes. Gosto pouco da palavra coerência, se coerência tem a ver com qualquer coisa de muito certinho, isto assim porque liga com aquilo. Uma das coisas que me dá enorme gozo é encontrar ligações insuspeitadas. E até sou capaz de chegar à conclusão de que tenho muito a ver com uma multinacional…

Será que certas resistências postas pela indústria à sua música se prendem com a sua intransigência, com a exigência de imposição de regras próprias?
Mas se também a indústria é difícil para as pessoas! Aí estamos iguais! É preciso ter muita força para encontrar a voz interior que toda a gente deve ter. E se não tem é porque estamos numa época onde se entende a comunicação apenas pelo lado de fora. Temos de comunicar e de pactuar com tanta coisa que, a certa altura, fica pouco espaço para comunicar connosco mesmos. E isso eu considero essencial. Mas não acho que seja uma pessoa intransigente, pelo contrário. Considero sempre qualquer proposta, seja ela qual for, a mais maluca ou que aparentemente não tenha nada a ver comigo, como um desafio,

* Cantora e compositora. Prepara o lançamento do projecto de vozes femininas Agrupa e de um novo álbum a solo, cujo reportório será apresentado parcialmente nos três espectáculos ao vivo de amanhã, sexta e sábado no Instituto Franco-Português

Alan Stivell – “Again”

pop rock >> quarta-feira >> 26.01.1994


Alan Stivell
Again
Dreyfus, distri. Polygram



Alan Stivell já cumpriu, e bem, nos anos 70, o seu papel de principal divulgador da música tradicional da Bretanha no Mundo e de responsável pelo “renascimento” da harpa céltica em França. “Renaissance de l’Harpe Celtique”, “Alan Stivell à l’ Olympia” e, sobretudo, “Chemins de Terre” são álbuns importantes nos quais Stivell, ou Alan Cochevelou, recuperou a tradição musical bretã, que reviu em novos moldes, de modo a criar aquilo a que o próprio chamou, por oposição ao “folclore”, uma “música de raízes celtas, aberta aos ventos do mundo, com uma identidade cultural específica e elementos de fusão – uma síntese das raízes com as tecnologias do futuro”, “Música étnica moderna”, em suma. Enunciado de propósitos, que conheceu a sua forma definitiva na obra “Tir Na Nog – Symphonie Celtique” e que o autor jamais conseguiu superar. Seguiu-se a lenta decadência, com maior ou menor aceleração, intercalada por ocasionais momentos de fulgor, como é o caso de “Harpes du Nouvel Âge”, antes de Stivell se atolar no mais infecto dos lamaçais, nesse exemplo acabado de “new age” de pacotilha, que é “The Mist of Avalon”. Era difícil fazer pior depois disso. Em “Again”, Alan Stivell volta à tona de água. À custa do passado, é verdade, através da reciclagem, com novos arranjos e músicos, de temas antigos, do seu melhor período, entre 1970 e 1975. Se numa ou noutra faixa aflora algum mau gosto, tanto nas cedências à “new age” de plástico como no mais que ultrapassado conceito de “rock céltico”, a maior parte delas é, contudo, suficientemente interessante e, nalguns casos, até enriquecedor das versões originais. Rodeado de algumas estrelas, como Kate Bush, Davey Spillane, Shane McGowan, Dan Ar Bras, Doudou N’Diaye Rose, além de três vozes referenciais do canto bretão, pertencentes a gerações diferentes, Gilles Servat, Gweltaz-Thierry Adeux e Yann-Fanch Kemener, acabam por ser os temas de maior simplicidade e contenção de processos (“Ar na garraigh/telenn wad”, “The foggy dew”, “Balha-dans-plinn”, “Tri martolod”) a sugerir que Stivell ainda é alguém com que se deve contar. E é sempre um alívio verificar que, pelo menos em estúdio, o bardo afinal não desaprendeu de todo de tocar harpa. De “Again” apetece dizer, em suma, que é um álbum honesto, capaz de levar os mais novos a interessarem-se pelos discos antigos, e um petisco para os “celtas” recém-chegados. (6)

Toque De Caixa – “Histórias Do Som”

pop rock >> quarta-feira >> 19.01.1994


Toque Ao De Leve

Toque De Caixa
Histórias Do Som
Numérica / Etnia



É um disco de música portuguesa de raiz tradicional. Só por isso a sua edição merece todos os aplausos, de tal forma tem sido escassa a produção nacional nesta área, nos últimos tempos. É simultaneamente o primeiro lançamento conjunto da editora discográfica Numérica, do Porto, e da cooperativa cultural minhota Etnia.
Vamos às “Histórias”. A pressão faz-se sentir de imediato sobre o crítico, que, por um lado, se sente quase na obrigação de apoiar este género de discos, em prol de uma causa que, em Portugal, só agora parece começar a ser acarinhada, e, por outro, se obriga a manter a lucidez e o espírito crítico em estado de alerta. Trocado por miúdos, isto significa que “Histórias do Som” não é um disco que venha salvar a música portuguesa, nem essa foi, de resto, a intenção dos Toque de Caixa, a julgar pela modéstia de intenções enunciada na contracapa do CD. É, antes, um disco honesto, agradável de ouvir e, sobretudo, nada preocupado com questões de fidelidade.
Mas – há sempre um “mas em tudo – falta algo a estas histórias, a parcela, por vezes tão pequena, que separa os bons discos dos discos excepcionais. Que parcela é esta que, para já, se esconde aos olhos dos Toque de Caixa? Vejamos: existem duas maneiras principais de “pegar” na música tradicional, seja o que for que depois se faça dela. Por “dentro” e por “fora”. Dito de outra maneira: pegar, pela via da mecânica, nas formas, ou pegar, pela via da intuição, nos sentires (e sentidos) que subjazem à sua criação.. Os Toque de Caixa pegaram (linguagem quase tauromáquica, esta!…) por fora. O resultado é que a música soa bem ao ouvido, é bonita, em suma, mas não possui estratos mais profundos nem permite outras leituras e comprazimentos por descobrir debaixo da camada superficial. Por muito que isso repugne aos Toque de Caixa, são inevitáveis as comparações com os Vai de Roda. Até porque certos pormenores de “Histórias do Som” remetem de imediato para o trabalho de Manuel Tentúgal, como é o caso da utilização dos sintetizadores, em tudo semelhante ao do “Terreiro das Bruxas”, em particular no tema introdutório, “Encosta do Silêncio”. Outro exemplo: a sequência vocal algures no meio de “Tirana” lembra, de modo inequívoco, o estilo de Bilão, dos Vai de Roda. Um ponto a favor dos Toque de Caixa, na versão de “Çapatinho rebatido”, tão ou mais conseguida que a de “Terreiro de Bruxas”, muito por culpa da excepcional participação do convidado Fernando Meireles, na sanfona.
“Histórias do Som” mostra de forma clara uma predilecção especial pelos instrumentos de corda, da parte de Horácio e Miguel Teixeira. Guitarra, braguesa, bandolim e “cuatro” (olha, nenhum cavaquinho!…) entregam-se mutuamente num jogo que, juntamente com a concertina e o acordeão de Albertina Canastra, apontam sem grandes desvios para os Penguin Café Orchestra, em temas como “Lama Grande” (bastante bonito, por sinal), “Valsinha da canastra”, “A saída do carro” (nestes dois últimos, sobretudo ao nível do compasso) e partes de “Fantasia minhota”. A gaita de foles de Tereza Paiva brilha no duplo “take” de “Alvorada” e, sobretudo, na aproximação longínqua de “O amigo vagabundo”. Interessantes são a lenta subida do monte (será por acaso que algumas notas e o ambiente geral coincidam com essa outra lenta ascensão, de Brian Eno, em “Taking Tiger Mountain”?) em “Sra. Sant’ana” e a lengalenga infantil que culmina a extensa introdução das cordas em “Aula de música”. “Encontro” é, de longe, o melhor tema e seguramente aquele onde poderão ser encontradas vias para um aprofundamento da música. Uma simplicidade de processos que resulta em cheio e em força, na sobreposição do canto masculino sobre a cadência imparável das percussões. “Histórias do Som” tem a capacidade de seduzir os ouvidos. Esperemos que, de futuro, outras histórias sejam capazes de seduzir o coração. (7)