Arquivo mensal: Junho 2015

Quim Barreiros – “No Algarve”

POP ROCK

4 AGOSTO 1993
REEDIÇÃO

QUIM, “THE KING”

QUIM BARREIROS
No Algarve
CD Sonovox

qb

A presente reedição reveste-se de transcendental importância. Por vários motivos. Porque Quim Barreiros é na actualidade um “entertainer” de massas e um artista do mais alto gabarito e porque “No Algarve” o apresenta no seu período anterior ao dos grandes clássicos pícaros como “Queres é levar com o chouriço”, “Vou comer a sobra”, “Curso de dactilografia” (“a professora a ensinar e eu a bater por letra”) e “Bacalhau à portuguesa” (“Maria, deixa-me ir à cozinha cheirar teu bacalhau”), o da “world music”, no caso presente um levantamento exaustivo do folclore algarvio, onde deixa patente a marca do seu génio.
Se a faceta de Quim Barreiros como “virtuose” do acordeão já nessa altura dera brado nos meios artísticos portugueses – faceta que o próprio aqui dá a conhecer, numa série de instrumentais de fusão que inspiraram Peter Gabriel na criação da editora Real World (diga-se de passagem que não há música mais “real world”, ou seja, “terra a terra”, que a de Quim Barreiros) –, é o lado poético do autor que neste caso despontava, fazendo antever obras posteriores mais elaboradas nas quais são exploradas ao máximo as possibilidades da rima inusitada e a arte, só ao alcance de alguns eleitos, de “como ultrapassar mais ou menos o problema da métrica recorrendo às mudanças de velocidade da voz”.
É assim que, ao longo de 25 peças antológicas, possíveis de saborear em todo o seu esplendor graças a uma técnica elaborada de gravação DDD, Quim Barreiros nos oferece deliciosos pedaços do mais genuíno folclore, onde a palavra (melhor dizendo, o verbo) fulge com invulgar intensidade. Os títulos são por vezes obscuros (“Isto é Algarve”, “Algarvios d’uma figa”, “Mar algarvio”, “Guitarras do Algarve”, “Flores Algarvias”), o que, se por um lado dificulta o trabalho do musicólogo, por outro tem a vantagem de dar rédea solta à imaginação do ouvinte menos preocupado com a análise estrutural do homem e da obra.
Os poemas, esses, são luminosos, bênção e refrigério para o espírito. Sobre uma base minimal de corridinho ou baile mandado, elaborados pelo acordeão e ferrinhos, Quim Barreiros funde com magistral perícia a poética tradicional na torrente de inspiração que sem parar jorra do interior da sua alma de artista torturado.
No seu canto transfigura-se o sentido popular (mas também litúrgico) de versos ancestrais que vibram no íntimo da alma lusitana: “À primeira mijadela faz andar um barco à vela/quando faz outra mijinha, faz andar uma lanchinha” ou “Se tu visses o que eu vi, lá na apanha da azeitona/um macaco a fazer ninho nas bordas de um alguidar”. Pontuados por interjeições de carácter ritual: “ai!”, “ui!” e “aguenta velho!”. No primeiro caso é a utilização inspirada da rima, no segundo, uma sua perversão, nessa suspensão, típica do tantrismo, da sílaba vital, do clímax orgástico-gramatical, que o faz substituir a rima certa, “alguidona”, por “alguidar”.
Mas onde a veia poética de Quim Barreiros lateja até quase ao enfarte é na simplicidade e, em particular, na visão poética, simultaneamente terna e sensível, que tem do feminino. É difícil de conter uma lágrima de emoção quando o ouvimos cantar: “ai as meninas de agora têm muita presunção/só andam de mini-saia/que é para mostrar o pernão” e – nunca o génio poético do homem se elevara tão alto – “toda a moça que é bonita também dá o seu beijinho/toda a moça que é bonita também dá o seu peidinho”.
Depois, só nos resta a rendição, quando o artista, com voz embargada, declama, apagando de um jacto a memória de Villaret, a sua ode ao Algarve, em “Algarvios d’uma figa”: “O meu Algarve é um menino/e o seu berço de embalar/é um barco onde o destino/o atira às ondas do mar” e, mais à frente, “Sob o sol, a hóstia de ouro [N.A.: na mesma o sol] que o cobre de alto esplendor/seu perfil trigueiro e moiro/ganha relevos de cor.”
Silêncio e recolhimento.

Classificação “Chunga”: o verdadeiro artista é o que faz mais flores.

Chapéus Na Cabeça – artigo de opinião –

Pop Rock

21 JULHO 1993

CHAPÉUS NA CABEÇA

Chapéus, como independências, há muitos, como diria mestre Vasco Santana. A cada cabeça seu chapéu, de preferência um que lhe assente bem. A música independente feita e produzida em Portugal está viva e mexe. Mas talvez mexa mal. O problema está umas vezes nas cabeças, outras nos chapéus.
Editam-se discos, vai havendo espectáculos. A crítica – de música, como de desporto, como de política –, que é sempre culpada de tudo o que é mau, vai mesmo assim escrevendo sobre os discos e sobre os espectáculos. Infelizmente, uns e outros nem sempre são de se lhes tirar o chapéu.
Há quem defenda que “independente é bom”, só porque feito e editado à margem ou porque o simples estatuto de “independente” (por vezes apenas de intenção, porque, quanto a resultados artísticos, são com frequência tão maus ou piores que os dos privilegiados das “majors”…) obriga a que se diga bem a todo o custo. Entre os argumentos esgrimidos aponta-se o dos discos que não vendem, pondo em risco a existência das pequenas editoras, que vêem o futuro fugir-lhes debaixo dos pés. Um muro de lamentações.
Vamos por partes. Divulgar, sim. Apoiar, sem dúvida. Esconder, quando é caso disso, que o rei vai nu é que nunca. Os músicos, independentes ou não, não são intocáveis, desde o momento em que dão a conhecer em público o seu trabalho. E neste ponto, o crítico deverá criticar, como lhe compete, chamando as coisas pelos seus nomes e pondo os dedos nas feridas, até para evitar que mais tarde as transformem em chagas.
Em Portugal existem bons músicos independentes como existem maus músicos independentes. Bons discos de música independente ao lado de maus discos de música independente. Alguns músicos independentes, ao primeiro aceno, iriam a correr abrigar-se debaixo das saias das multinacionais, desejosos de perder a sua independência. Outros, decerto que não. São os que colocam a integridade e a liberdade de criação acima de quaisquer pressões e compensações materiais. Serão a maior parte, mas mesmo estes não podem exigir a intocabilidade, com a pretensão de que tudo o que lhes sai das cabeças pertence ao domínio dos deuses, ficando reservado ao crítico o papel de bonzo venerador do seu génio.
É preciso ter humildade, encolher o ego e, nalguns casos, escolher com cuidado os chapeleiros. É que do génio ao ridículo, às vezes, vai a distância de um passo. E fica sempre mal uma pequena cabeça pequena enfiada num chapéu demasiado largo. Cada cabeça sua sentença, é verdade. Como também é verdade que uma cabeça que pensa sabe observar as cabeças alheias. E descobrir-lhes as carecas.
Uma cabeça que pensa não gosta sobretudo que lhe enfiem o barrete, que, como toda a gente sabe, é um tipo característico de chapéu nacional.

Conceptual em Portugal – artigo de opinião

Pop Rock

14 JULHO 1993

CONCEPTUAL EM PORTUGAL

“Ser Maior” é o primeiro disco de rock português a perder a vergonha de ser desmesurado nos meios e nas intenções. Para trás ficaram preconceitos e uma tradição de “conceptuais” onde os exemplos escasseiam. Os Delfins poderão ter inaugurado a era da mania das grandezas.

Comecemos por distinguir entre álbum conceptual e ópera-rock. Ambos partem de uma ideia original (ou de um conceito, daí o termo conceptual), de uma temática aglutinadora à qual a estrutura total se submete. A diferença está nos meios utilizados. Enquanto o álbum conceptual apenas difere do longa-duração (termo que os novos formatos digitais vieram tornar obsoleto) vulgar pelo lado ideológico, chamemos-lhe assim, a ópera-rock é uma espécie de superprodução que opera segundo uma lógica de novo-riquismo que visa em primeiro lugar a ostentação dos meios de produção.
Em Portugal, pelas mesmas razões, e pela negativa, devido à proverbial pobreza da indústria discográfica nacional, não houve uma ópera-rock digna desse nome, exceptuando talvez “O Nazareno”, de Frei Hermano da Câmara, versão fado-eclesiástica de “Jesus Christ Superstar” e por tal motivo afastada de uma estética rock propriamente dita. Quer dizer: em Portugal, quem quiser ouvir ópera que vá ao São Carlos.
Álbuns conceptuais houve alguns, não muitos, que procuraram seguir um dos modelos mais em voga dos anos 70. O primeiro disco conceptual produzido em Portugal, na área da música pop, tem a assinatura de José Cid e chama-se “Dez mil anos depois entre Vénus e Marte”. Nele, o então membro do Quarteto 1111 fez como se fazia na época no estrangeiro, escrevendo na ficha técnica os nomes de todos os instrumentos de teclas utilizados (quanto mais melhor, mais “progressivo” e “sinfónico” era o álbum…), sendo de bom tom virem mencionados o mellotron e o “moog synthesizer”. “Dez mil anos depois…” inspirou-se na ficção científica e é um dos primeiros discos de música popular feita em Portugal onde a electrónica ocupa um lugar destacado.
Já no ocaso da década, os Tantra procuraram imitar os Genesis, na efabulação de um imaginário fantástico, com direito a representação teatral nas apresentações ao vivo, feitas de muitas máscaras, fumos e efeitos a granel, em “Mistérios e Maravilhas”. Mais tarde, Manuel Cardoso, guitarrista e mentor espiritual da banda, encarnou no seu primeiro álbum a solo, um Frodo de cabeça pontiaguda, numa mutação monstruosa da personagem central da trilogia “O Senhor dos Anéis”, do escritor inglês J. R. Tolkien.

tantra

Nos anos 80, os álbuns conceptuais deixaram de estar na moda. Paradoxalmente, foi nesta década que Fausto gravou aquele que até à data permanece como paradigma do género, “Por este Rio acima”, obra com princípio, meio e fim, onde o compositor apresenta a sua leitura dos descobrimentos portugueses, com um talento, uma imaginação e uma originalidade que nem o próprio, em obras posteriores, conseguiu igualar. Na mesma década os Heróis do Mar agitaram as ondas do marasmo lusitano, as bandeiras e os fantasmas do nacionalismo no álbum de estreia “Heróis do Mar”, embarcando mais tarde na aventura orientalista, em “Macau”.
Já na presente década, o termo “conceptual” funcionou num nível diferente, já não ao nível da música mas do método de formação dos grupos. É o período das superbandas, com os músicos de maior nomeada em constante rotação de uma para outra formação e as editoras numa busca desenfreada de “novas” propostas, segundo uma estratégia de reciclagem que veio pôr a nu a escassez, entre nós, de ideias realmente inovadoras. É neste sentido que surgem nos últimos anos em Portugal “conceitos” como Moby Dick, LX-90 ou Piratas do Silêncio, sendo o mais consistente e o que maior sucesso obteve em termos de venda os Resistência. Mesmo assim, ainda houve quem se desse ao trabalho de procurar um tema que desse pano para mangas à criação musical. Júlio Pereira andou pelas galerias a ver quadros, escolheu os que mais gostou e fez um álbum onde as cores e as imagens se confundem com os sons: “Janelas Verdes”. Menos trabalho teve Rui Veloso, que se limitou a compor, por encomenda da Comissão dos Descobrimentos, o seu “Auto da Pimenta”, obra subordinada à mesma temática de “Por este Rio acima”, mas que teve a vantagem de levar a chancela “oficial”. Trabalho de monta, e com resultados altamente positivos, teve o letrista Carlos Tê, a quem devem ser endereçados os maiores louvores pela adaptação e recriação dos textos originais.
Outro exemplo, último até ao presente, no qual os textos funcionaram como motor e ponto de partida do trabalho criativo é o disco de Vitorino (autor cujo álbum, mais antigo, “Leitaria Garrett”, estava já próximo de um trabalho conceptual, neste caso uma série de recordações ligadas ao estabelecimento referido no título) composto sobre textos de Lobo Antunes: “Eu que me Comovo por tudo e por nada.” Para além dos casos apontados, o “conceito” dominante tem sido o do deserto. De ideias e de argumentos.