Arquivo mensal: Agosto 2017

Arne Nordheim – “Electric” + Supersilent – “Supersilent 1, 2 & 3” + Supersilent – “Supersilent 4” + Tove Nielsen – “Flash Caravan” + Tuu – “Mesh” – Robert Rich – “Seven Veils”

Sons

11 de Junho 1999
ELECTRÓNICA


Runas são como divãs


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Criada em Janeiro do ano passado por Rune Kristofferson (antigo elemento do grupo pop Fra Lippo Lippi), a Rune Grammofon tem como objectivo a divulgação de música electrónica e experimental produzida na Noruega. Entre os primeiros álbuns lançados neste selo – embalados de forma superlativa em digipaks de grafismo minimalista –, contam-se “Electric”, do compositor norueguês Arne Nordheim e, já recenseado num número anterior deste suplemento, “Nordheim Transformed”, pela dupla Biosphere/Deathprod, um trabalho de remisturas do álbum de Nordheim. Os dois álbuns podem ser adquiridos em conjunto numa edição em CD duplo da Rune Grammofon. Arne Nordheim nasceu em 1931 e compôs as várias peças incluídas em “Electric” em Varsóvia, entre 1968 e 1970. Influenciado por Edgar Varese, pela escola polaca (Lutoslawski, Penderecki) e pelas micropolifonias de Ligeti, as composições electroacústicas de “Electric” oscilam entre o pontilhismo de “Solitaire”, as vagas proto-industriais e as ambiências subaquáticas a la Redolfi de “Pace”, a violência quase panfletária de “Warsaw” (por vezes próxima de Pierre Henry), as colagens cósmicas de “Poly poly” (The Cosmic Jokers mais Faust mais os Tangerine Dream de “Rubycon” numa “bad trip”) e a sequência de timbres misteriosos de “Colorazione”. Suculento na variedade e estranheza de registos, “Electric” constitui uma peça fundamental para os amantes da música electrónica, tão sedutora e carregada de estímulos como “Chaotica” do também tardiamente revelado Tom Recchion” (Rune Grammofon, distri. MVM, 8)

Também na Rune Grammofon e ainda mais minimalistas na apresentação, “Supersilent 1, 2 & 3” e “Supersilent 4” propõem uma extravagante fusão de electrónica e free-jazz por um grupo, os Supersilent, cujas origens se situam precisamente neste último género musical. Com as várias composições ostentando títulos como “1-2”, “2-4” ou “3-1”, de acordo com o número do disco e a ordem da faixa, o triplo álbum de estreia dos Supersilent é inteiramente constituído por uma selecção de improvisações cuja agressividade se torna, por vezes, difícil de digerir, algures entre o ruído puro, ciclos de electrónica analógica, uma bateria directamente saída de uma “jam session” guerreira e sopros em busca de espaço próprio. Mais de três horas de fúria que prolongam a estética dos AMM até ao próximo milénio. “Supersilent 4” continua a mesma lógica, com a diferença de que, neste caso, as diversas secções improvisadas foram encurtadas, ganhando em força e concisão. A diferença entre um “work in progress” (de “Supersilent 1, 2 & 3”) e uma escultura que, embora de formas aberrantes, permite a visualização em detalhe. (Rune Grammofon, distri. MVM, 7 e 8).

Ainda na Rune Grammofon saiu “Flash Caravan” de Tove Nielsen, um disco de pop electrónica bastante mais convencional do que os restantes lançamentos da editora mas, ainda assim, suficientemente apelativo para justificar, pelo menos, uma audição. “Trip hop”, electrónica e canções com creme nórdico num frigorífico onde cabem ecos de Annette Peacock, Anna Homler, Carmel, Suzanne Vega, Portishead, Soft Cell, “acid jazz” e “lo-fi country” aliam-se a um gosto acentuado pelas potencialidades do estúdio. Os sintetizadores têm peso num álbum de densidade superior à norma neste género de trabalhos. (Rune Grammofon, distri. MVM, 7).

Para os lados da Fathom, subsidiária “erudita” da Hearts of Space, continua a uniformização de todos os seus artistas. De álbum para álbum vai-se tornando cada vez mais difícil distinguir a música de Steve Roach, Robert Rich, Michael Stearns e, agora, também dos Tuu, uma banda que derivou do trance ambiental e gótico dos primeiros álbuns (“One Thousand Years”, “All our Ancestors”) para o som global que agora partilha com os seus colegas de editora. “Mesh” é mais um exemplo de uma música que se confunde com a respiração e pulsação do planeta Terra, onde os oceanos, as rochas, os mares, as florestas e a lava se unem com o firmamento. Música infinita, cujos ciclos são já pertença de uma nova humanidade. O mesmo se aplica a “Seven Veils”, de Robert Rich, um compositor que tem o melhor da sua obra em colaborações com Steve Roach (como “Soma” e “Strata”), Brian Lustmord (“Stalker”) e, a solo, em “Trances/Drones”, “Geometry”, “Numena”, “Rainforest” e “Gaudi”, este último percursor da “sombient music”. Nos últimos tempos aproximou-se do Oriente, como em “Seven Veils”, álbum de rituais percussivos e arabizantes, levitações digitais e vozes de tradições esquecidas. Ideal para meditação e outras actividades do espírito. (Fathom, distri. Strauss, 8 e 6).



Shannon Wright – “****Flightsafety”

Sons

18 de Junho 1999
DISCOS – POP-ROCK

Voo nocturno

Shannon Wright
****Flightsafety (8)
Quarterstick, distri. MVM


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Desconhecida entre nós, Shannon Wright estreia-se no mercado português com um álbum, a vários níveis, notável. Impressiona, de imediato, no tema de abertura de “****Flightsafety”, “Floor pile”, as semelhanças com o despojamento e a catarse emocional de Kristin Hersh. A mesma voz de criança perdida num pesadelo, a mesma guitarra acústica obcecada por uma cadência minimalista levam-nos num voo nocturno e agitado pela turbulência. No tema seguinte, “All these things”, a voz e o tom emocional aproximam-se da zona iluminada entre a fogueira de Suzanne Vega e o sorriso desagasalhado de Hersh, numa valsa de espectros dançando sobre a cauda de um piano disforme.
Há profundidade e densidade nas canções através das quais Shannon Wright vai revelando o seu mundo interior. “Rich hum of air” propõe o catecismo do progressivo para o ano 2000 – através dos lugares esquecidos onde deambulam os Genesis de “Nursery Cryme”. A guitarra, o órgão de enfermaria, o rufo dos tambores recordam Alice e o jogo de críquete com cabeças humanas. O carrossel funciona no território do puro surrealismo, ao som de um órgão de feira, na introdução de “You´re the cup”, onde a voz de Shannon Wright demonstra todas as suas potencialidades na arte da flutuação de registos e entoações. No ventre de um túnel habitado pelas criaturas das trevas.
“Twilight hall” passa pelo filtro de um piano a ressoar numa caixa de medo e “Captain of the quarantine” atrai o mesmo tipo de aves de rapina e a palidez vocal de Stina Nordenstam. E que raio fazem os Pink Floyd no meio de “Holland”? Ou a guitarra de Gordon Giltrap em “Hobos on parade”, o sonho mágico de todos os vagabundos. Outra valsa, “Yard grass” é absolutamente irresistível, antes de uma rajada de pseudoflamenco em fúria a pôr a ferro e fogo. “****Flightsafety” termina numa nota de classicismo, com o cunho de interiorização que Peter Hammill imprime ao seu teatro psíquico.
Mas quem é esta cantora que, de um só golpe, se veio juntar ao grupo das compositoras-intérpretes eleitas a que pertencem, além de Vega e Hersh, Liz Phair, Lisa Germano e P. J. Harvey? Depois de uma passagem pelo grupo Crowsdell, da edição, por conta própria, de uma série de singles, da aventura de uma digressão solitária e da troca de Nova Iorque por uma cidade esquecida do Sul, Shannon fechou-se num pequeno estúdio no Alabama, onde, com o recurso a um gravador de quatro pistas e a um arsenal de instrumentos tocados por ela própria, gravou, arranjou e misturou a colecção de temas que compõem “****Flightsafety”. Um álbum que cresce a cada audição, com as participações de Joey Burns, dos Calexico, e Sibal Firat e Eric Bachaman, dos Archers of Loaf.



The Dylan Group – “More Adventures In Lying Down”

Sons

18 de Junho 1999
DISCOS – POP-ROCK


The Dylan Group
More Adventures in Lying down (7)
Bubble Core, distri. MVM

Não se trata, de maneira nenhuma, da banda de apoio de Bob Dylan, mas de um quarteto heterogéneo composto por Dylan (ah, bom!) Cristy, Adam Pierce, Scott McGovern e Tyle Pistilli. Os quatro apóstolos de uma doutrina que tem do jazz uma visão distorcida e do entretenimento uma noção que exige alguns cuidados e uma abertura larga de espírito. Porque, se na música dos Dylan Group o que importa é, em primeiro lugar, a diversão, tal não significa que o cérebro não se sinta igualmente recompensado com esta mistura de breakbeats, acid jazz alimentado a drunfos, hip-hop ambiental e música latina de salão. São amplos salões de ambientes plenos de exotismo, ricamente decorados com sopros mariachi ou em fuga para a improvisação livre e, sobretudo, com um vibrafone omnipresente que empurra “More Adventures in Lying down” para as asas do sonho. Faz lembrar um pouco a fusão dos Tuatara que, por sua vez, se alimenta da herança dos Gong pós-Daevid Allen, ou seja, a derivação jazz-rockeira de xilofones e vibrafones dirigida por Pierre Moerlen. Todos os instrumentos foram executados ao vivo e em tempo real com microfones de ambiente e a dispensa de quaisquer truques de estúdio. Um dos temas, “Sandcastle”, foi gravado num concerto ao vivo na Knitting Factory, contribuindo para a envolvência que os Dylan Group procuram estabelecer. A lamentar, apenas, alguma excessiva metragem de alguns temas que se arrastam num “riffing” de baixo que não conduz a lado nenhum, num álbum cuja capa interior é digna de um sonho de Little Nemo.