Os Trees são, ou foram, uma das bandas que integrou a vaga de folk progressivo que varreu as Ilhas Britâncias no início da década de 70. Influenciados pelos Fairport Convention e pelos Jefferson Airplane mais “folky”, tinham na voz frágil de Celia Humphries um émulo de Sandy Denny, juntando-se a outras vozes femininas do “prog folk” como Clodagh Simonds (Trader Horne), Barbara Gaskin (Spirogyra, mais tarde Hatfield And The North e Gilgamesh), Ann Stewart (Tudor Lodge), Polly Bolton (Dando Shaft), Mandy Morton (Sprignus) e Kysia Kocjan (Natural Acoustic Band). Celia é a face luminosa de uma música delicada que usava os temas tradicionais (“Soldiers There”, “Polly on the shore”, “Geordie”, “Little Sadie” ou “streets of Derry”) como um dos veículos possíveis de transmissão dos sonhos que flutuavam ainda na “trip” do psicadelismo. Os Trees, em cuja formação pontificavam ainda o saltério de Barry Clarke e as cordas de David Costa, gravaram apenas dois álbuns, “The Garden of Jane Delawney”, de 1969, e este “On The Shore”, do ano seguinte, tendo como convidado Tony Cox, dos Pentagle. Deixaram um traço de mistério e de encantamento como aquele desenhado no ar pela enigmática criança vitoriana que assombra a capa de “On The Shore”.
Para Lena Willemark, Ale Möller e Per Gudmunson, é o regresso à editora onde gravaram, em 1991, o álbum que se transformou agora na designação do grupo – “Frifot”. A cantora tornou-se, entretanto, um nome elogiado da “world music”, capitalizando em simultâneo na actual onda de interesse pela “folk” escandinava e no prestígio da editora ECM, onde gravou um par de álbuns magníficos, “Nordán” e “Agram”. “Jarven” assinala o retorno a um som sem concessões ao estilo de arranjos “new age” que caracteriza aquelas duas obras (ênfase na reverberação, recorte límpido da voz e dos instrumentos), predominando nele o fraseado tradicional do violino de Per Gudmunson (e gaita-de-foles, no título-tema e em “lyckans Ballad”), as cordas contrapontísticas de Ale Möller e onde as vocalizações de Willemark mergulham, em toda a nudez, num reportório bastante mais próximo das raízes. Espartano nos arranjos, “Jarven” – apelando, porventura, a um público menos interessado em propostas de fusão do que no rigor de uma “folk” que se regenera a partir de outra ordem de factores – ilustra o lado hermético, mas não menos luminoso, da “folk” sueca, a qual, de todo, é muito, mas muito mais do que a orgia pagã dos Hedningarna.
Philémon, herói de banda desenhada, penetra nas várias letras que compõem a palavra Oceano Atlântico, aí se desenrolando as suas aventuras. June Tabor há muitos anos que faz o título dos seus álbuns começarem pela letra “A”. “Airs & Graces”, “Ashes & Diamnonds”, “Abyssians”, “A Cut Above”, “Aqaba”, “Angel Tiger”, “Against the Streams” e agora “Aleyn”. “Aleyn” significa “só” ou “solitária”, em língua “Yiddish”. E solitário e cada vez mais despojado (na foto da capa, enverga trajes monásticos…) é como se apresenta o mundo desta cantora que soube reservar para si um nicho particular na música inglesa de raiz folk das últimas duas décadas.
Em “Aleyn” estão expostos alguns aspectos que já se adivinhavam nos anteriores trabalhos, os magníficos “Angel Tiger” e “Against The Streams”. A saber, que, cada vez mais, a pureza de um estilo único e inconfundível em toda a música inglesa, converge numa depuração formal que aqui chega a confundir-se com algum academismo. Um estilo caracterizado pelas típicas ornamentações vocais que eram timbre dos primeiros álbuns, marcadamente “folk”, e agora cristalizaram numa teatralização emocional encenada sílaba a sílaba, nota a nota. Por outro lado, a produção, da responsabilidade de John Ravenhall, usou e abusou da reverberação, omnipresente, de modo a dilatar a espacialidade do som até criar a ilusão (?) de uma voz, a voz “solitária”, reinando num lugar de absoluta interiorização e sem vizinhança à vista.
Mas isso que em “Aqaba”, “Angel Tiger” e “Against The Streams” representava ainda a fronteira de uma solidão, sem dúvida, mas partilhada num registo de intimismo que exigia a participação afectiva do ouvinte, em “Aleyn”, pelo contrário, convida à distanciação e a uma contemplação iminentemente estética.
Claro que é impossível ficar indiferente a esta beleza gelada, com a perfeição de uma alma esculpida com o detalhe de uma estátua clássica. O tom, de grandeza e distância quase sobrenaturais, é dado logo de início, numa versão arrepiante de “The Great Valerio”, de Richard Thompson, uma das canções da obra-prima “I Want To See The Bright Lights Tonight” que o ex- Fairport Convention gravou com a então sua mulher, Linda. “I Wonder What´s Keeping My True Love Tonight” é o primeiro dos oito tradicionais de “Aleyn”, aos quais se podem acrescentar outras duas composições, uma de Ralph McTell (“Bentley and Craig”), outra de Maggie Holland (“a Proper Sort of Gardener”), qualquer destes compositores ligado umbilicalmente À música tradicional inglesa. “No Good At Love” insere-se no mesmo universo da canção de cabaré passadista, de Mathilde Santing, no qual a própria June Tabor já se aventurara no álbum “Some Other Time”. “Bantley and Craig” narra uma história verídica de crime e tragédia, onde um inocente é condenado à forca e um assassino menor posto em liberdade. A belíssima prestação vocal de Tabor dispensava a redundância patética do saxofone de Mark Lockart. Presença mais indispensável do que nunca na fase mais recente da cantora é o piano de Huw Warren, parceiro privilegiado nesta viagem rumo aos glaciares. Sem a humanidade da sua melodia um tema como “The Fiddler”, sobre um episódio do afundamento do paquete “HMS”, em Maio de 1941, no qual pereceram 1300 vidas, a sensação de terror e abandono seriam insuportáveis. Não é, por certo, coincidência, que “Aleyn” não inclua qualquer vocalização “a capella”, facto obrigatório ao longo de toda a produção prévia de June Tabor. Aqueçamo-nos então ao som, este sim caloroso, do acordeão de Andy Cutting (ex-Blowzabella), no tradicional “April Morning”, antes da noite tombar com violência em “Di nakht” (“A Noite”), o tal tema cantado em “Yiddish”, escrito em Nova-Iorque em 1929 por dois emigrantes dos países do Leste – sobre o isolamento da comunidade europeia judaica radicada naquela cidade – e transmitida a June Tabor por um sobrevivente de Auschwitz. “Não há ninguém a meu lado na noite / Só a noite está comigo”. Ninguém parece estar ao lado de June Tabor nesta sua passagem pelo escuro. Uma grande composição, exponenciada por uma vocalização sublime. Inevitavelmente, por uma questão de sobrevivência, segue-se outro tradicional, “The Fair of Islington / Under the Greenwood Tree”, como “Glory of the West”, recolhido do incontornável cancioneiro publicado pela primeira vez em 1679, “English Dancing Master” (olá Ashley Hutchings…) onde prevalece a naturalidade da June Tabor do circuito “folk” (julgamos mesmo que este tema figura, com um título diferente, num dos seus primeiros trabalhos) a mostrar que nem tudo é tão negro como aparenta ser em “Aleyn”.
“Go From My Window” soa igualmente familiar, respirando aquele tipo de tristíssima melodia embalada pelo piano, com que Tabor nos familiarizou a partir de “Aqaba” e a que é difícil resistir. Até ao final predomina a June Tabor “folky”, com a reverberação a ceder à convicção de uma voz que sabe pisar orgulhosamente este terreno. É esta suspensão que permite a “Aleyn” explodir num momento de gloriosa ascenção, em “Johnny o’Bredislee / Glory of the West”, cujos arranjo e interpretação são dignos de figurar em qualquer antologia da “folk” britânica. Apetece pedir a June Tabor que saia do templo de amargura em que a sua solidão criativa a encerrou, e volte a provar a luz do dia.