cultura >> segunda-feira >> 17.10.1994
Annette Peacock E Carlos Zíngaro Encenam “Encontros” Em Lisboa
A Arte Da Incomunicação
Em 50 minutos “non-stop” de música, luzes e dança, Peacock e Zíngaro passaram em revista todos os lugares comuns da “performance” dita vanguardista. Em “Encontros”, um espectáculo que incluiu corpos rastejantes, imagens de televisão, jogos de cama e outras momices que nos anos 70 teriam feito sucesso.

Cheirou a naftalina o espectáculo “Encontros” dado por Annette Peacock, Carlos Zíngaro e Roger Turner, acompanhados por dois bailarinos portugueses, sábado à noite no teatro S. Luiz, em Lisboa. O começo não podia ter sido mais previsível, com os bailarinos Margarida Bettencourt e João Natividade a rojarem-se pelo chão ao mesmo tempo que produziam ruídos desagradáveis. Já Gosciny e Uderzo sabiam, no álbum de Astérix “O Caldeirão de Ouro”, que para qualquer manifestação artística poder ser considerada de vanguarda é necessário que tenha corpos a rastejar, de preferência fazendo esgares e barulhos desagradáveis.
Foi então que Roger Turner, um notável percussionista, entrou a percutir o chão, partindo depois para um solo de bateria. Escuridão. A voz de Annette Peacock elevou-se em seguida num monólogo, antes de o violino de Zíngaro se lhe juntar e os bailarinos encetarem uma sessão de contorcionismo corporal. Ao longo de menos de uma hora de “performance” viu-se João Natividade ensaiando exercícios de ginástica nas argolas olímpicas e os intérpretes a vaguearem, segundo coreografias milimétricas, pelo palco, de olhos postos no infinito, vestidos de negro como mandam as regras da vanguarda. Os dois apontamentos mais engraçados da noite foram dados por Margarida Bettencourt a passear uma televisão com imagens de um cão no ecrã, e Roger Turner, agitando-se num acto de masturbação percussiva, debaixo de um lençol. Houve a parte do sexo. Embora este se tivesse revelado seguro, limitando-se a sensualidade dos gestos ao acto de Annette Peacock a desnudar uma boneca e, no capítulo dos jogos de cama, com todas as personagens a sentarem-se à vez na borda da dita cama sem chegarem a vias de facto. O casal de bailarinos aina mergulhou na confusão dos lençóis antes de o percussionista lhes invadir a privacidade. Divertido e muito modernaço.
No final, acabaram todos a mastigar, com Zíngaro a ferrar o dente numa maçã, segundo a denominada “estética reineta” que já o vocalista dos Area, Demetrio Stratos, utilizara há mais de 20 anos na primeira festa do “Avante!”, ao mastigar igualmente o saboroso fruto.
O tema dos “Encontros” era daqueles que dão sempre jeito e pano para mangas em espectáculos deste tipo: a solidão e incomunicabilidade do homem contemporâneo. O homem contemporâneo, o homem-comum, como toda a gente sabe, não comunica. A culpa é da sociedade em geral e da televisão em particular. Ora, salvo casos limite como os prisioneiros, os diminuídos físicos e mentais, os solitários terminais ou quando se está a dormir, a comunicação é um dado natural e adquirido da condição humana, nem que seja através da cópula sexual. Se um abstrôncio qualquer prefere passar dezoito horas por dia a ver televisão em vez de comunicar com o seu semelhante, a culpa não é da televisão, mas do abstrôncio que é bronco e não dá uma para a caixa. Aliás é por ser bronco que o homem-comum é comum. Em qualquer parte do mundo. O homem-comum sova a mulher só porque o clube da sua simpatia perdeu, pontapeia o miúdo só porque o dia no emprego lhe correu mal ou dá um tiro no vizinho só porque este lhe roubou um milímetro de terreno. São ainda formas de comunicação, só que mais dolorosas, principalmente para os receptores.
Peacock, Zíngaro e companhia limitaram-se à redundância, frisando o vazio da sociedade moderna e a inutilidade dos gestos. Mas sem criatividade nem imaginação, mais parecendo estar-se a assistir a uma prova de final de curso do Conservatório. Com a ênfase posta nos aspectos cénicos, a música ficou relegada para segundo plano. Pena que assim fosse, porque foi o melhor destes “Encontros” que não chegaram a comunicar com o muito público que acorreu ao chamariz do acto performativo. Annette Peacock manuseou de forma interessante por meios electróncios, os timbres da voz. Zíngaro procedeu de igual modo, entrando em diálogo consigo mesmo, na já habitual utilização do pedal de “delay”. Roger Turner alternou a subtileza quase subliminar com explosões orgásticas na bateria. O que foi dado a ver deitou, porém, tudo a perder.
(In)comunicação é isto mesmo.