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sábado, 31 Maio 2003
O melhor do melhor de Billie Holiday numa antologia em quatro volumes. Viagem ao coração da noite e da solidão que Lady day cantou e viveu na pele até ao fim.
Lady sings the blues
Billie Holiday
The Billie Holiday Collection
4XCD Legacy, Columbia Jazz
Eleanora Fagan, Billie Holiday, “Lady day”. Nasceu em 1915 para deixar este mundo 44 anos mais tarde. Subiu ao céu, apesar de em vida ter descido ao inferno, onde brilha como a lua do jazz vocal feminino. De noite, portanto. No quadrante oposto do céu, lá está o sol, com a cara de Ella Fitzgerald iluminada por um enorme sorriso.
De Billie Holiday fora há pouco tempo editada a antologia em 10 volumes “Lady Day: The Complete Billie Holiday on Columbia, 1933-1944”, vencedora de um Grammy. Em formato condensado de quatro volumes, vendidos separadamente a “mid price”, surge agora “The Billie Holiday Collection”, com uma seleção dos melhores temas (embora se possa perguntar: onde está “Strange fruit”?) da antologia, em remasterizações de 24-bits.
No primeiro volume, a voz de Bille tem a suportá-la a sua própria orquestra e a do pianista Teddy Wilson, em diferentes formações, com Roy Eldrige (trompete), Benny Goodman (clarinete), Ben Webster (saxofone tenor), Johnny Hodges (saxofone alto), Harry Carney (Clarinete e saxofone barítono) e Gene Krupa (bateria). Tempos de “swing”, de tentativa de segurar uma inocência perdida desde muito cedo. Mas era notório que o “swing” estouvado da orquestra era de natureza diferente do “swing” interior da cantora. Mas era deste contraste entre a luz exterior e as sombras que se adensavam e balouçavam como folhas agitadas pelo vento, na alma de “Lady Day”, que surgiram as grandes interpretações. “Miss Brown to you”, “You let me down” (de chorar… e implorar por mais…), “It’s like reaching for the moon”, “These foolish things”, “Summertime”, “Easy to love”, “The way you look tonight”…
No segundo volume (gravações entre Janeiro e Setembro e 1937), um grande encontro. De “Lady Day”, como então passou a ser conhecida (no seu caso, e em relação ao grande público, algo muito relativo…) com Lester Young, “The President”, que em 1937 entrara para a orquestra de Teddy Wilson, o mesmo acontecendo com o trompetista Cootie Williams. “I can’t give you anything but love”, assim se chama uma das canções. Lester Young oferece este amor sob a forma de uma formidável interpretação no saxofone tenor. Eram almas gémeas. Ou não. A solidão acompanhou Billie Holiday até ao fim.
Ao terceiro volume, composto por gravações efetuadas entre Setembro de 1937 e Dezembro de 1939) sente-se já uma fragilidade crescente da voz, que não da técnica nem do sentimento, mas uma espécie de impotência ou raiva sublimada. Billie cantava como uma criança trémula, ainda com Lester Young a acompanhá-la nesta fase da viagem. Entravam então na orquestra, Buck Clayton (trompete), Freddie Green (guitarra), entre outros, a ilustrar um “songbook” de clássicos ilustres como “When a Woman loves a man”, “You go to my head”, “the very thought of you”, “I can’t get started” e “Night and day”. “I can’t believe that you’re in love with me” era o que ela queria dizer e Louis Armstrong já dissera em 1930. “Lady day” disse-o mais fundo. Acreditasse ou não.
Com o quarto e último volume da coletânea a estender-se de Dezembro de 1939 a Janeiro de 1944, encerrava-se um capítulo no qual Lester Young desempenhava ainda uma função primordial, como demonstra no solo que rubrica, como um abraço ou um beijo, em “The man I love” e, no último ano, ao lado do mago do piano Art Tatum e de Oscar Pettiford, no contrabaixo. “Body and soul”, “Georgia on my mind” são “standards” conhecidos. Mas… e “Am I blue?”, “Solitude” e “Gloomy Sunday” (também conhecida por “The hungarian suicide song” a qual, dizia-se, hipnotizava e induzia os amantes desesperados a porem termo à vida)? É neles que se sente melhor a dor. A voz arrasta-se, nestes temas, mais lenta e ardente do que nunca. Assombrosa, em “Gloomy Sunday”. Uma voz que arrepia e nos faz sentir o que a paixão provoca a quem ela se entrega sem defesas. Mas há defesas contra a paixão? Não as há, decerto, que permitam resistir ao canto de “Lady Day”.