Arquivo mensal: Janeiro 2016

Sérgio Godinho – “Pano-Cru” – Série:”Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa”

Pop Rock

15 de Novembro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Sérgio Godinho
Pano-cru


SG

Como foi

“É um disco em que – à excepção de um trecho, ‘O homem-fantasma’, com arranjo do Zíngaro – os arranjos são consequência da contribuição dos outros músicos”. Sérgio Godinho, naquele que para muitos é o seu melhor disco de sempre, prefere repartir responsabilidades e dividir os louros por toda a equipa. “Foi um método de trabalho em que peguei numa série de pessoas, nomeadamente o Guilherme Inês, o Zíngaro, o meu irmão Paulo, ou o Pedro Osório, e trabalhámos até encontrar soluções que me conviessem. De uma maneira informal e sem arranjos pré-escritos”. Uma opção “que vinha um bocado de trás” e “consequência de um trabalho que nunca deixou de acontecer mas foi talvez assumido de uma maneira mais funda neste disco”. Desta união de esforços resultaram uma “simplicidade instrumental e arranjos bastante básicos”, mas que o autor considera “bastante eficazes”. “Tem um som, agora com a história do CD, que eu ouvi e achei muito límpido. O próprio som do Moreno Pinto, um técnico que na altura fazia trabalhos muito bons, agrada-me muito”.
Disco de clássicos, “Pano-Cru” corresponde a um pico de inspiração na carreira discográfica de Sérgio Godinho. “Tínhamos saído um pouco da ressaca pós-PREC. Estava-se num período de mudança muito rápido e havia uma energia criativa que sentia à minha volta. A minha energia estava então mais virada para o futuro do que para lamentar o passado. Não gosto de chorar sobre o leite derramado. Havia coisas que se tinham perdido, mas, por outro lado, estavam em elaboração outras que, para mim, eram exaltantes, como o facto de poder trabalhar ao vivo com os músicos que eu queria, algo que na altura do PREC não era possível. Nessa altura, por exemplo, o Zíngaro tocava muitas vezes comigo. Tudo isto se reflecte no disco que foi imediatamente testado ao vivo numa digressão que fiz, de genérico, ‘Sete anos de canções’, correspondente à aparição de uma cooperativa, a Era Nova. Onde estavam o Zeca, o Fausto, o Vitorino, e da qual a primeira iniciativa foi esta digressão, um pouco por inspiração do Camilo Mortágua, que era um bocado a ‘alma pater’ desta cooperativa. Foram 24 espectáculos em 20 capitais de distrito. De uma maneira, para a altura, heróica, e da qual saímos com magros resultados financeiros. Fomos a sítios onde não havia nada e nos chegavam a perguntar se íamos tocar ‘variedades’”.
Entre todas as canções de “Pano-Cru” há uma que permanece, de uma maneira quase obsessiva, na memória: ‘O primeiro dia’. “Curiosamente, não começou por ser um ‘hit’ evidente. Demorou até ser interiorizada”. Sérgio Godinho define-a como “uma canção de ruptura, de repensar as coisas e encontrar uma certa sabedoria para o futuro”. “Nesse aspecto”, diz, “é uma canção que me persegue. No espectáculo ‘Escritor de Canções’ fiz questão de não a cantar, para a deixar repousar um bocado.” [Sérgio Godinho abriu aqui um parênteses para anunciar a edição, já no princípio de Dezembro, de um disco ao vivo, com o título “Noites Passadas”, registando os espectáculos no Coliseu e no S. Luiz, em Lisboa, e no Rivoli, no Porto, do ano passado e no qual se inclui uma versão, ‘muito boa’, de “O primeiro dia”.]
“Balada da Rita”, do filme “Kilas, o Mau da Fita”, é outro momento inesquecível de “Pano-Cru”. Uma canção “assumida no feminino”, e “cantada por um homem”. “Foi composta para ser cantada por uma mulher, a Lia Gama, aliás, como acontece na primeira versão, numa edição raríssima, da banda-sonora, e no próprio filme”. Sérgio Godinho deixou, no entanto, sempre no ar a possibilidade de ser ele a cantá-la. “Agrada-me essa ambiguidade de cantar na primeira pessoa do feminino, uma coisa que, curiosamente, foram sobretudo os brasileiros a fazer, o Caetano, o Chico, mas que não existe muito na música americana ou na francesa. Há uma espécie de pudor em relação a isso”. Uma canção, ainda, que o músico considera de “difícil versificação, porque tem três rimas seguidas diferentes que têm que rimar com outras três”. “Lá isso é”, retomada recentemente pelos Sitiados, é apontada como uma das canções que Sérgio Godinho deixou de cantar. “Há coisas na letra que perderam actualidade, mas isso parece não os incomodar muito. Coisas de pormenor, como uma quadra que diz ‘Há partidos de direita que põem sempre a bola ao centro, mas quem melhor os fintar é que vai marcar o tento’. Eles nem tinham percebido que a bola ao centro era a do CDS”.
Outra canção que Sérgio Godinho nunca cantou ao vivo é “2º andar direito”, a conversa nocturna entre dois amantes que se tornou num dos temas mais apreciados pelos admiradores deste compositor-intérprete. “É uma canção de frases, de diálogo, que curiosamente foi objecto de um exercício da Escola de Cinema, quando o Ricardo Pais era lá professor. Ele propôs aos alunos fazer uma planificação, um ‘script’ a partir dela. Há uma sugestão de diálogo permanente, de situações imagéticas. Houve mesmo um filme de dez minutos feito com esses ‘scripts’ para a televisão, pelo Ricardo Nogueira, que nunca mais vi”.
É a vertente cinematográfica da obra de Sérgio Godinho aqui já a fazer-se sentir e que o autor mais tarde viria a desenvolver através da sua linguagem própria. Como um realizador que planifica a vida em ‘sketches’, Sérgio Godinho observa do exterior, através da lente ou, neste caso, do vizinho que vive no apartamento ao lado do dos amantes. “Aliás, nesse tal filme de dez minutos, eu fazia precisamente de vizinho. Há um volte-face nessa canção. Está a ser contada por um narrador que depois se descobre ser um terceiro personagem. A partir daí, o narrador passa a ser eu, eu compositor, eu autor da canção. A introdução de um elemento inesperado, uma nova personagem, rouba o protagonismo ao casal. Existe um lado ficcional que pode ser cinematográfico”. Um “exercício de ficção”, ao contrário de “O primeiro dia”, que tem “algo de autobiográfico”.

Como é

O que distingue um disco bom de um disco mágico é esse pequeno nada capaz de desencadear emoções, de accionar maquinismos escondidos da imaginação, de estabelecer, enfim, cumplicidades várias com o auditor. “Pano-Cru” é um disco mágico. Equilibrando, sem custo aparente, o registo popular (“O galo é o dono dos ovos”, Venho aqui falar”, “Lá isso é”) com o intimismo (”O primeiro dia”, “2º andar direito”), a sátira de costumes (“A vida é feita de pequenos nadas”, “O homem-fantasma”) e a crónica de amores ou de personagens (“Feiticeira”, Balada da Rita”), sente-se nele o domínio da arte da narração, o casamento perfeito entre a intenção, o som e a palavra. Gerado num período conturbado da nossa História, três anos passados sobre o golpe de Abril, a densidade e a tensão presentes em cada canção ocultam-se por detrás da fluência e facilidade com que se desenrola esta espécie de “thriller” psicológico do português ainda tonto da revolução. Se o microcosmos de “2º andar, direito” – reflectindo as preocupações e dúvidas existenciais de quem acordara estremunhado da opressão dos corpos e dos sentimentos e redescobrira a liberdade e o prazer da fala – desencadeia de imediato um “feedback” emocional em todos os que acompanharam de perto esses tempos de mudança, “O primeiro dia”, uma das melhores canções de sempre da música popular portuguesa, é o tema intemporal por excelência, relógio implacável da nossa própria existência. “Pano-Cru” é ainda a confirmação de Sérgio Godinho como organizador não só de palavras, como de imagens. Aqui realizador de um filme em corrida eterna contra o tempo. Um filme, como se pode escutar no genérico final, ainda e sempre “por acabar”.



Nuno Rebelo – “Sagração Do Mês De Maio” – Série:”Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa”

Pop Rock

18 de Outubro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Nuno Rebelo
“Sagração do Mês de Maio”


nr

Como foi

Stravinsky, com a “Sagração da Primavera”, e uma passagem de modelos foram os pontos de partida para “Sagração do Mês de Maio”, até hoje o único testemunho discográfico, a solo, de Nuno rebelo, mentor de projectos como Street Kids, Mler Ife Dada ou o mais recente Plopoplot Pot. “A Associação Cultural Manobras de Maio convidou-me para fazer música para a passagem”, recorda o músico, que, nessa altura, viu uma série de desfiles. A ligação entre o universo musical e o mundo da moda definiu-a Rebelo na estrutura formal da peça, construída em “vários segmentos diferentes que se vão sucedendo”, de modo a permitir a correspondência com os diversos estilistas presentes.
Nuno Rebelo fechou-se três meses em casa para gravar o disco. Compôs directamente num velho computador Yamaha CX5M, “dos primeiros de música que aparecem e o primeiro que tive.” “Só quem o conhece”, diz, “é que sabe o que passei. Tinha 40 sons dentro e permitia oito em simultâneo. O que aparecia era uma partitura onde se ia colocando a música nota a nota. Não era como hoje, onde se introduz directamente com as teclas. Foi uma relação que estabeleci com o computador.” Durante esses três meses, Nuno Rebelo viveu para o disco. “Na última semana, dormi oito horas durante a semana inteira, três num dia e cinco noutro”, recorda. “Quando olhava para uma coisa de madeira, já via os nós a andarem à roda!”
A editora, a EMI, contactada após o interesse inicial manifestado pela Transmédia, não foi sensível nem ao trabalho nem ao amor postos na gravação. Trataram mal o álbum, ao ponto de se enganarem no nome do seu autor. Nas lombadas do vinilo e do compacto, ainda hoje se pode ler o nome Nuno Ribeiro. “Fiquei furioso quando vi o disco na rua, com o engano. A resposta deles foi rirem-se e dizerem: ‘A gente estava a ver quando é que tu descobrias!’. Quer dizer, em vez de retirarem logo os discos, não, já estava, ficou assim, para não se gastar mais dinheiro em novas impressões.”
“Sagração do Mês de Maio” foi, entretanto, retirado de catálogo, “destruído”, porque “não vendia nada”. Nem podia ser de outra maneira, dada a forma como foi feita a sua promoção. “Nessa altura, só sabiam lidar com um tipo de música, a mais comercial. Foram à procura do ‘single’. Encontraram-no numa parte, ao fim de uma sequência de 20 minutos, com bateria e um baixo, mais à Mler Ife Dada, na opinião deles. Fizeram com ela ‘singles’ de promoção, que foi tudo o que enviaram para a rádio e as pessoas ouviram, em programas como o TNT, entre o David Bowie e a Tina Turner.”
Poderia ter sido outro o destino de “Sagração do Mês de Maio”, o catálogo belga “Made to Measure”, mas, uma vez mais, o destino foi madrasto. “Cheguei a almoçar em Bruxelas com o Marc Hollander. Ofereceu-me imensos discos e gostou imenso da minha música. Regressei a Portugal, não sei o que se passou depois. Tentei várias vezes telefonar-lhe sem o conseguir. Nunca estava ou não podia atender. Até que, finalmente, após alguns meses de tentativas, acabou por me ligar e ser sincero e directo: ‘A tua música é boa; só que, neste momento, estamos a editar John Lurie e Fred Frith, nomes conhecidos; a ti ninguém te conhece!’ Foi isto.”
Houve ainda a apresentação ao vivo da obra, num desfile das “Manobras de Maio”, no Campo Pequeno, em Lisboa. “Exactamente aquilo que se ouve no disco. Foi chegar lá o pôr ‘play’ no computador”, embora houvesse um guião com indicações para “subir volumes”, “alterar os sons internos do computador” ou “mudar estereofonias e efeitos”. Participaram ainda músicos convidados, que “não fizeram mais do que tocar coisas que estavam escritas no computador” – uma espécie de “dobragem” levada a cabo por Tomás Pimentel (trompete), Emanuel Ramalho (percussão), Anabela Duarte (voz), Francisco Ribeiro (violoncelo), Carlos Alberto Augusto (vibrafone), Carlos Bechegas (flauta e saxofone), José Pedro Lorena (clarinete baixo e saxofone) e Kim, na guitarra eléctrica.
Hoje, Nuno rebelo tem com “Sagração do Mês de Maio” uma relação de amor e ódio. “Para mim, é um disco querido e maldito. Querido porque é um bocado a minha entrada na maioridade musical. Maldito porque não tenho já nada a ver com este tipo de música. Se ouvisse um disco com esta música hoje em dia, ia dizer logo à partida um bocado mal! Embora haja muitas partes de que gosto. É verdade que é raro pô-lo e ouvi-lo, mas, nas poucas vezes em que o faço, gosto. Além disso, como nunca mais saiu nenhum disco meu, é a única referência que as pessoas têm do meu trabalho. Mas obviamente que hoje já não me identifico com ele.”

Como é

Experimente-se traduzir para francês ou inglês os diversos títulos em que se divide esta sagração para alta-costura da música portuguesa. Ficariam ou não lindamente num catálogo como a Made to Measure? Esteve por um fio. “Sagração do Mês de Maio”, apesar da sua feitura artesanal, nota a nota, num computador da pré-história, ostenta a mesma preocupação formal e a elegância estilística que caracterizam aquele selo belga. Catálogo de vestuário futurista de cores frias e rigor matemático, em Portugal, em 1989, faltavam ouvidos do lado das editoras que pudessem compreender ou, pelo menos, aceitar, 73 minutos “non stop” de sons computadorizados, sem um único refrão, um solo de guitarra eléctrica ou um pequeno nada por onde o hábito lhe pudesse pegar. “Sagração do Mês de Maio” gira e trabalha em volta de um tema-base, construindo segmentos orgânicos de som que se desenvolvem, em mutação constante, num aquário de formas de vida sintéticas. Simultaneamente belo e hermético, por vezes excessivamente dependente dos regulamentos informáticos, o único testemunho discográfico de Nuno Rebelo até à data anunciou prematuramente uma Primavera que entre nós nunca viria a florescer nem a dar frutos mas que, entre os seus contemporâneos da Europa civilizada, foi cultivada por nomes de doidos como Double-X-Project, Expander des Fortschritts, Non Credo, PFS, Piero Milesi ou Riccardo Sinigaglia. Pois é, e hoje? Nuno Rebelo já frequenta outras escolas e adquiriu memórias digitais mais sofisticadas. Mais uma vez, quando a turba lá chegar, o que sinceramente duvidamos, lá estará ele de novo mais adiante a pregar no deserto. Enquanto houver resistências e madres piedosas a puxarem para trás…



Almanaque – “Desfiando Cantigas” – Série: “Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa”

Pop Rock

20 de Setembro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Almanaque
“Desfiando Cantigas”


almanaque

Como foi

Menos de um ano passado sobre o golpe de Estado do 25 de Abril, forma-se em Março de 1975 o Almanaque, Grupo de Recolha e Divulgação da Música Popular da Juventude Musical Portuguesa, com o objectivo de fazer, como se pode ler num comunicado de imprensa da época, citado por Mário Correia na sua obra “Música Popular Portuguesa – Um Ponto de Partida”, a pesquisa folclórica e a divulgação por todos os meios ao seu alcance da verdadeira música popular portuguesa, tendo por base o seu próprio trabalho junto do povo que canta, os resultados práticos do trabalho de dois grandes etnomusicólogos – Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti -, os seus próprios estudos colectivos sobre o assunto e, por fim, a sua própria prática musical”.
Esta ênfase posta na “verdadeira música popular” encerra toda uma crítica ao desvirtuamento daquilo a que o grupo designava por “folclorite”, personificada, nessa altura, por artistas como Carlos Alberto Moniz, Tonicha ou os Intróito, e a vontade de trabalhar e divulgar uma música de raiz o mais aproximada possível das origens. Em 1979, o grupo edita o seu primeiro álbum onde concretiza estes princípios e intenções, “Descantes e Cantaréus”, uma obra revolucionária que somente cinco anos mais tarde viria a apurar-se na maior sofisticação de “Desfiando Cantigas”. Aida no âmbito de actividades do Almanaque, é editada em 1982 uma obra importantíssima de recolhas – em três volumes discográficos – da autoria de José Alberto Sardinha (de quem acaba de ser publicado o livro “Tradições Musicais da Estremadura”), com a colaboração de Vítor Reino: “Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa”.
“Naquele tempo era difícil gravar”, recorda José Alberto Sardinha, justificando o intervalo de cinco anos entre o primeiro e o segundo disco do Almanaque com “convulsões internas” no seio do grupo. “Éramos muitos, havia sempre pouca estabilidade para fazer um disco.” “Desfiando Cantigas” é justamente o último disco gravado sob aquela designação. José Alberto Sardinha deixa o colectivo por “razões profissionais”, para se dedicar à advocacia, sem contudo abandonar o trabalho na área da música tradicional, continuando no campo da recolha e da investigação.
Durante este período que medeia entre os dois discos ocorrera “uma grande cisão” dos elementos do Almanaque que ditara, inclusive, a saída do terceiro director musical do grupo, José Manuel David, hoje nos Gaiteiros de Lisboa e mentor de um projecto de fusão que ostenta ainda o nome do grupo. “Tentámos seguir uma direcção democrática, não autoritária nem rígida”, continua José Alberto Sardinha, que considera “o domínio da tradição popular um domínio muito fluido em que qualquer pessoa pode dar opiniões”, o que, na sua perspectiva, esteve na origem dos problemas: “Veja o que é um grupo de trinta pessoas, cada uma a dar a sua opinião! Pessoas que não tinham feito recolhas, que não tinham lido nada nem estudado nada, que não sabiam nada, a pôr em causa o que eu dizia!” O abandono de José Manuel David, “que se deixou levar pelos cantos de sereia de uma certa parte do grupo e começou a fazer contravapor contra os outros dois”, teria sido, segundo o etnomusicólogo, o gatilho que desencadeou a tal “grande cisão”.
Seja como for, nada disto parece ter afectado a gravação de “Desfiando Cantigas”, já com o poder de decisão nas mãos de José Alberto Sardinha e Vítor Reino. “Tínhamos as recolhas feitas, da minha responsabilidade exclusiva, com o compromisso de as facultar ao grupo e de fazer todos os anos, no Verão, uma recolha aberta a quem quisesse”, diz o primeiro, sobre quem recaía também a maior parte da responsabilidade do estudo desse material. “Depois seleccionávamos aquelas que víamos que eram mais adaptáveis ao nosso instrumental e à nossa maneira de cantar.”
Só que, nos ensaios, tal direcção tinha “pouca autoridade”. “Eu só podia ir a um ensaio por semana, morava fora de Lisboa e entretanto tinha-me casado e organizado a minha vida profissional em Torres Vedras” – conta. “Nos ensaios em que eu não estava era uma barafunda! O Vítor Reino, por ser invisual, não podia assegurar uma regência efectiva. Gerou-se um clima de democracia de base exagerada que depois não funcionava.” Em estúdio, porém, “a coisa correu bem.” Aí a direcção musical de Sardinha e Reino “não era muito mais que dar as entradas e marcar os compassos”, embora a direcção coral, a cargo do advogado, exigisse outro tipo de cuidados, pela sua “maior expressividade”. “Desfiando cantigas” demorou, mesmo assim, alguns meses a fazer.
Em pé fica a atitude, manifestada desde a formação do grupo, de lutar contra o que consideravam ser o desvirtuamento do nosso folclore, e da qual “Desfiando Cantigas” permanece como um manifesto. “Mais do que uma reacção”, diz José Alberto Sardinha, o projecto Almanaque “era uma afirmação”. Na altura eram eles, a Brigada e “outros grupos – hoje em dia existem aos milhares, todos a dizer que têm recolhas feitas… – que continuavam a transmitir da música tradicional apenas a música bailada, no fundo a mais superficial, a mais simples e a mais agradável ao ouvido”.
O Almanaque seguiu por outra estrada. Repleta de escolhos mas que permite chegar a bom porto, sob a orientação das estrelas. “Tínhamos uma concepção própria de espectáculo. Fizemos uma vez um na Fundação Gulbenkian em que tentámos fazer o ciclo rural todo, desde a Natividade, passando pelo Entrudo, a Quaresma – com uma “encomendação das almas” – , a Páscoa… Não era uma coisa agradável de se ouvir, a encomendação das almas. Nós apagávamos as luzes, acendíamos velas e cantávamos a encomendação, o que provocava um efeito cénico muito bom.”
O futuro da música tradicional portuguesa, descontando honrosas excepções como as da Brigada, Vai de Roda, Raízes ou Terra a Terra, viria a atravessar uma noite bem mais escura. “Os grupos que apareceram depois, continuavam a dar aquela musiquinha…” Como um guardião, ou um farol, o Almanaque continua disponível para consulta. “Tínhamos uma perspectiva purista. De reproduzir tal e qual como encontrávamos no campo. Arrostando com os riscos próprios de sermos um grupo urbano. Não me parece que seja chocante”.

Como é

Ressalta em primeiro lugar, de “Desfiando Cantigas”, o seu rigor. O rigor que resulta da aplicação de um método e de uma opção estética bem definidas e orientadas. José Alberto Sardinha e Vítor Reino, os dois directores musicais do projecto, sabiam o que queriam. Movia-os o amor a uma causa que ambos viriam a prosseguir posteriormente em separado e por vias diferentes. O primeiro por um trabalho de recolha e investigação sistemático, o segundo numa continuação musical que frutificaria na Ronda dos Quatro Caminhos e viria aos poucos a definhar nos Maio Moço.
“Desfiando Cantigas” é um disco puro, feito por puristas. Um trabalho elaborado sobre gravações de campo efectuadas sobretudo por José Alberto Sardinha, que procurava pôr em destaque os aspectos mais genuínos e profundos da música tradicional portuguesa, desvalorizando o seu aspecto espectacular (quando não o fútil e o deturpado, daquilo a que chamavam “folclorite”) se destituído dessa componente essencial que liga os sons e os ritmos do povo às pulsões da natureza. Tendo sempre presente a compreensão de que, tratando-se em qualquer caso de uma reprodução – que se procurou ser o mais fiel possível – levada a cabo por músicos urbanos, nunca o resultado final poderia ser uma cópia exacta da música vivida e criada no contexto original das populações rurais.
A alternativa foi ensaiar como que um “aperfeiçoamento” formal das características intrínsecas das várias peças etnográficas abordadas – danças, cantos de trabalho, romances e cânticos religiosos, entre outras – de maneira a valorizar os seus núcleos rítmicos, modais ou harmónicos, sugerindo uma focagem afinada com maior ênfase e nitidez.
Afastada deste modo uma perspectiva meramente arqueológica, é de facto um almanaque que se desfolha, na forma de percurso pelas tradições do Norte ao Sul do país, do Minho e Trás-os-Montes ao Algarve, com desvio pelos Açores. Ciclo concêntrico ao dos rituais mágicos do ano solar que se desenrola, em sentido inverso, entre a despedida a um dia de trabalho de uma “Chamarrita” açoriana e o apelo à festa de uma “Alvorada” matutina vibrante no casamento das gaitas e bombos transmontanos.