pop rock >> quarta-feira >> 12.10.1994
EM PÚBLICO
Sandra Baptista *
Não é vulgar uma rapariga tocar acordeão, ainda por cima numa banda pop. Por que escolheu este instrumentos?
Desde miúda que toco órgão e piano até ao dia em que assisti a uma audição de acordeões numa escola, a única onde ensinam este instrumento, situada na Praça do Chile. Fiquei surpreendida com o instrumento, com a sonoridade. Disse para comigo: “OK, vou aprender acordeão.” Na altura andava a tocar um daqueles órgãos enormes, um Farfisa, com pedaleira… Entrei na escola e comecei a aprender tangos, corridinhos… Tinha nessa altura menos de 15 anos e todos os amigos me influenciavam pela negativa, fazendo-me notar que o acordeão era um instrumento “extremamente piroso, foleiro, ridículo, só para ranchos folclóricos”. Desmotivaram-me bastante. Aos 15 anos parei. Andei na escola, tirei um curso de vídeo. Na escola António Arroio conheci o Jorge Buco, o presente bandolinista dos Sitiados. Falou-me na banda, do Manuel Machado, também acordeonista, que saíra dos Sitiados para entrar nos Essa Entente, e convidou-me para o substituir. Ouvi as maquetas e gostei…
Quais são as suas referências neste instrumento?
Ouço corridinhos do Algarve – que é um grande exercício, obriga a mexer muito os dedos -, o Astor Piazolla, a Eugénia Lima, Edith Piaf, tudo o que tenha acordeão me interessa. O Quim Barreiros já não me interessa tanto. É uma pessoa festiva, só que vai para o lado do javardo. Não é subtil. Tem uma linguagem muito directa, grosseira, que as pessoas quando estão numa de curtir, de festejar, gostam de ouvir e ver. Comparo os Sitiados mais com o conjunto de António Mafra. Mais salão, um bocadinho mais sofisticados. Os Sitiados, se existissem há vinte anos, teriam sido o conjunto de António Mafra. E o conjunto de António Mafra, se tivesse nascido hoje, seria provavelmente os Sitiados… O Quim Barreiros equiparo-o mais aos Ena Pá 2000.
A energia que evidencia em palco é espontânea ou envolve algum grau de teatralização?
Um espectáculo mexe com a adrenalina, com os tiques nervosos. O meu é aquele de andar de um lado para o outro. Mas não sou nada exibicionista. Este meu tique nervoso em cima do palco é porque não consigo fazer as coisas de outra maneira. Não consigo tocar acordeão quieta, sentada, estou a tocar para uma massa de pessoas que estão a mexer comigo, gosto que haja uma cumplicidade. Mas nunca consegui olhar, em nenhum espectáculo – e já vamos com uns duzentos e tal em cima -, para alguém em particular. Agora, é verdade que tenho a noção da postura que fui desenvolvendo. Sei que, se houver um espectáculo em que esteja quieta, poderão eventualmente acontecer problemas. Em palco tenho que me meter com os outros músicos, com todos. Não consigo sentir-me sozinha. Tenho que sentir as energias dos outros. Por exemplo, a pulsação da bateria. Sinto as energias das pessoas. Há espectáculos em que, sem razão aparente, nos sentimos um bocado mais moles ou cansados, sem sabermos porquê. Olhamos uns para os outros e tentamos dar-nos forças. Por vezes há algo estranho.
O acordeão é um instrumento um bocado pesado. Com tanta movimentação, nunca se cansa?
Pesa deze quilos. Mas num espectáculo não sinto o peso do acordeão. Tenho uma técnica diferente dos outros acordeonistas e utilizo uma fita atrás, nas costas, para equilibrar melhor o peso. Isso já ajuda. Depois, quando subo as escadas para o palco, a adrenalina é tanta, o sangue que me corre no corpo vai a uma velocidade tão grande que não consigo sentir nada. Aliás, em palco não consigo pensar, não consigo estar consciente. É um impulso de uma hora, uma hora e meia, como um “flash”. Sinto-me completamente um animal de palco. Um animal irracional. Depois de um espectáculo, no camarim, não consigo falar com ninguém. As pessoas falam comigo e não as ouço. Até a adrenalina baixar, demora pelo menos uma, duas horas. Na Festa das Marés estive quase a noite toda sem ouvir nem falar com ninguém.
Consegue transpor essa energia para o estúdio?
No estúdio é diferente, não sinto nervoso. Não tenho tiques. É um trabalho consciente, enquanto no palco é inconsciente. No estúdio, normalmente quando estou a gravar uma música, gravo-a logo à segunda ou à terceira porque vou bem preparada de casa e dos ensaios. Quanto mais vezes repetir, mais nervosa e chateada com o meu trabalho fico. Nessas alturas paro e passo para outra. Por exemplo “O circo”, do último álbum, foi gravado à primeira. Quanto mais “takes” conseguimos apanhar todos à primeira, melhor. Fica mais aquele “feeling”. E lá fora somos como uma família. Quando vamos beber um copo, somos nós connosco próprios. Eu, por sinal, não gosto de “whisky”, nem vinho, nem cerveja… Estou sempre tramada [risos]. Tenho que inventar uma bebida.
Há outras situações, fora da música, que lhe provoquem as mesmas descargas de adrenalina?
Há. Neste momento, por exemplo [risos], estou a sentir uma certa adrenalina, uma certa excitação. Isto acontece-me quando estamos numa conversa… No próprio diálogo, sinto fases de adrenalina. Sou assim desde miúda. Mas sou muito consciente, atenção!
A imagem que projecta nos outros é importante para si?
Até me convencer que a Sandra que estava com o acordeão numa foto de um jornal era eu, demorou algum tempo. Não conseguia habituar-me à ideia de me ver num jornal. Custava-me ver a fotografia. Nunca me considerei vedeta. Faz parte do meu ser não fazer alarido. Aquilo que faço é estar em cima de um palco. Acho que o público podia estar também em cima de um palco. Posso ser eu e os Sitiados como poderiam ser outras pessoas quaisquer a fazer aquela festa. Não sinto que sou a maior, que toco muito bem, nada disso. Gosto que gostem de mim, mas não pelo facto de ser a Sandra Baptista dos Sitiados.
O que tem a ganhar e a perder na vida na estrada?
O primeiro ano que fizemos ao vivo foi um absurdo. Oitenta e cinco espectáculos. Cheguei ao final completamente estoirada, estive perto de um esgotamento. Não conseguia nem dar mais um passo. A partir daí, no segundo ano, decidimos não passar dos 50. É uma questão de calo. Neste segundo ano de concertos já conseguia controlar-me mais nas viagens, e num espírito de brincadeira. Mas o entusiasmo de actuar ao vivo, esse, nunca se esgota. Se isso acontecer alguma vez, os Sitiados acabam. Porque os Sitiados são uma banda para espectáculos, é esse o nosso cartão de visita. O disco é mais aquele postal com que as pessoas ficam em casa.
Como passa o tempo nos períodos em que está afastada da banda?
Nada. Rigorosamente nada. É estar em casa e nem sequer tirar o pijama. Meter-me dentro da porcaria da televisão. Meter-me dentro da dispensa. Meter-me dentro do frigorífico e comer, comer…
Isso é espantoso, atendendo à figura que tem…
Isso é agora, que me está a ver na fase dos espectáculos. Depois, na fase do Natal, passa à fase da engorda. Não tenho problemas nenhuns de dietas. De ser gorda ou de ser magra. Se engordasse, punha umas roupas mais largas, assim uns lençóis. Modificava um bocado a imagem. Desde que possa comer tudo o que me passa pela frente, não tenho problema nenhum.
Nunca pensou em ser outra coisa além de acordeonista dos Sitiados?
Nunca pensei que uma acordeonista pudesse ter um futuro destes. Normalmente, um acordeonista não pode sair do rancho folclórico ou de ter um projecto a solo como o Quim Barreiros. Mais delirante do que o que eu faço é impossível. Se por acaso um dia os Sitiados acabarem, deixo de tocar acordeão. Nesse dia acho que começava a cantar, com a péssima voz que tenho [risos]. A minha filosofia é viver e deixar viver.
* acordeonista dos Sitiados