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Vários – “Weird Nightmare”

pop rock >> quarta-feira, 17.02.1993
NOVOS LANÇAMENTOS POP / ROCK


MINGUS E OS BACANAIS

VÁRIOS
Weird Nightmare
CD Columbia, distri. Sony Music



Francis Thumm, discípulo do iconoclasta Harry Partch, define do seguinte modo os pontos em comum entre o seu mestre e Charlie Mingus: “Cada um deles era capaz de combinar a precisão de um trabalho de ‘ensemble’ com a entrega e o abandono de um bacanal.”
Hal Wilner organizou o encontro e o festim fantasmáticos (especula-se quanto à possibilidade de um encontro de facto, algures na Califórnia, no princípio do século) entre os estes dois génios. Depois de “Amarcord Nino Rotta” (compositor favorito de Fellini), “That’s the way I feel now – A Tribute to Thelonius Monk”, “Lost in the Stars – The Musico f Kurt Weill” e “Stay Awake – Various Interpretations of Music from Vintage Disney Films”, Winner presta agora homenagem ao mito que Joni Mitchell já havia celebrado no duplo “Mingus”, gravado no ano da morte do compositor. Hal Winner fá-lo da melhor forma e após maturação lenta de um projecto que germinou a partir de uma selecção de gravações antigas da editora Folkways (algumas das quais serviram de inspiração às célebres colagens musicais de Mingus): através da reinvenção de um universo temático riquíssimo e da apropriação possível de um estado de espírito.
Mingus, falecido em 1979, foi um explorador de sons e sentidos. Nas décadas de 50, 60 e 70, ajudou a dar nome e consistência às fusões “Third Stream” e ao “free”, integrando na sua música elementos “étnicos” do Mediterrâneo, da América Latina e do Médio Oriente. O bacanal que Thumm refere é, no seu caso, esta mistura orgânica de formas musicais e vivências que Mingus trabalhou e combinou até ao fim. Nele, a composição era indissociável dos outros interesses que cultivava na vida: mulheres, comida, pintura, literatura, percepção extra-sensorial, meditação, teologia, psicoterapia, política, relações inter-raciais…
Mas se Mingus é o arquitecto deste “estranho pesadelo”, Harry Partch é o seu artesão (um músico “seduzido pela carpintaria”, como ele próprio se definiu). Tão ou mais excêntrico que Mingus, Partch – falecido em 1974, cinco anos antes do autor de “Ah Um” – inventou para si uma notação musical própria (vale a pena escutar os resultados em obras como “Petals Fell on Petaluma”. “Delusions of the Fury”, “Barstowl Daphne of the Dunes” e “The Bewitched”, esta última com reedição recente em compacto) que o obrigou a idealizar e fabricar novos instrumentos: “Cloud chamber bowls”, “marimba eroica”, “Chromelodeon II”, “Harmonic canon”, “Surrogate kithara”, “cone gong”, “Crychord”…
Instrumentos que Hal Winner foi buscar ao museu e que em “Weird Nightmare”, foram utilizados pela primeira vez num disco sem a autoria do seu inventor.
Faltava escolher os intérpretes. À semelhança dos anteriores projectos de Winner, o grupo de “Weird Nightmares” é constituído por uma panóplia de músicos oriundos de esferas musicais distintas, unidos numa mesma sensibilidade e devoção ao homenageado. Há um núcleo a quem foi entregue a função de sustentáculo sonoro, formado por Art Baron, Bill Frisell, Greg Cohen, Don Alias e Michael Blair e uma constelação de convidados, com a função de narradores – vocalistas – instrumentistas ocasionais: Henry Threadgill, Marc Ribot, Robbie Robertson, Don Byron, Elvis Costello, Vernon Reid, Henry Rollins, Charlie Watts, Keith Richards, Bob Stewart, Tony Trischka, Chuck D, Bobby Previte, Diamanda Galas, Leonard Cohen, Robert Quine, Ray Davies e Dr. John, entre muitos outros.
A que é que soa semelhante festim de sons, referências e ideias? Próximo do cruzamento entre Stravinsky, John Zorn e os Biota (“Work song”, por exemplo, habita esse proto-oceano onde os ruídos se revolvem na procura da harmonia) e Charlie Mingus, é claro. O ambiente é quase sempre soturno, preso às complexidades e exigências da pauta, interrompido por emanações “bluegrass”, um swing a que falta o pé ou um mundo em colapso. Impressionista de um modo espectral, desprende-se de “Weird Nightmares” uma sensação de profundidade abissal, de águas turvas habitadas por seres inomináveis. O título está perfeito. (8)

Marc Ribot – “Guitarrista Da Cena “Downtown” Actua Hoje Em Lisboa – Sons Da Cidade De Néon”

cultura >> quarta-feira, 03.02.1993


Guitarrista Da Cena “Downtown” Actua Hoje Em Lisboa
Sons Da Cidade De Néon


Da “soul” e do “rock ‘n’ rol” até à “downtown” nova-iorquina, passando pela poesia de Ginsberg, o percurso musical de Marc Ribot tem sido um elo de ligação entre estilos e gerações diversificados. Wilson Pickett, Chuck Berry, Tom Waits, John Lurie e John Zorn contam-se entre os seus companheiros de viagem. Toda uma tradição que a sua guitarra reduz a estilhaços.



É este guitarrista e compositor conotado com a corrente “downtown” nova-iorquina, que hoje actua acompanhado pelo grupo Shrek, em Lisboa, no teatro S. Luiz, pelas 22h, num espectáculo organizado pela Simbiosis.
Marc Ribot nasceu em New Jersey, em 1954. Começou por estudar música com o compositor e guitarrista clássico Frantz Casseus. Os ensinamentos e a leitura da pauta foram-lhe de extrema utilidade para a fase seguinte da carreira, vivida entre o excesso de decibéis das várias “garage bands” onde tocou. Dicotomia entre classicismo e transgressão que constitui, em última análise, o núcleo central do trabalho que Marc Ribot viria a encetar no futuro com os Lounge Lizards e os Jazz Passengers, e que em “Rootless Cosmopolitans”, o seu álbum mais recente, atinge o ponto máximo de depuração.
Mas antes disso o guitarrista teve de fazer pela vida. Já em Nova Iorque e no final da década de 70, foi acompanhante do organista de jazz Jack McDiff e dos cantores “soul” Wilson Pickett, Rufus Thomas e Carla Thomas. Depois seria a vez do rock ‘n’ rol e de sessões com Chuck Berry em período de decadência.

Entrada Na “Catedral”

John Lurie, saxofonista, actor e personagem carismática da “downtown” (inesquecível o papel de saxofonista assassino que desempenhou nesse filme paradigma da paranoia urbana que é “Os Viajantes da Noite”, de Amos Poe) recrutou-o para os Lounge Lizards. É o ponto de viragem na carreira do guitarrista que a partir desse momento não parou de ser visto na “Knitting Factory”, catedral de todas as vanguardas “downtown”, e solicitado para projectos de autores ligados a outras áreas musicais. Tom Waits convidou-o para participar nos álbuns “Rain Dogs”, “Frank’s Wild Years” e “Big Time”. Elvis Costello fez questão de o ter presente em “Spike”.
Empenhado na exploração de novas linguagens para a guitarra eléctrica ou electrificada – em paralelo com Fred Frith, Derek Bailey, Christy Doran, Elliott Sharp, Rhys Catham, Robert Musso, Arto Lindsay, Robert Quine, Caspar Brotzmann ou Bill Frisell – de modo a levar tão longe quanto possível as possibilidades desse instrumento, Marc Ribot integra desde 1987 os Jazz Messengers, de Roy Nathanson e Curtis Fowlkes, extensão bem-humorada dos Lounge Lizards.
Entre as actividades do guitarrista contam-se igualmente a composição da banda sonora para “No Sense of Crime”, documentário com realização de Julie Jacobs, e três canções de parceria com Roy Nathanson sobre poemas de Allen Ginsberg – “To aunt Rosie”, “The shrouded stranger” e “The end”, incluídas na produção de Hal Wilner, “The Lion for Real”, dedicada aquele que foi um dos profetas da geração “hippie” norte americana.
Marc Ribot participa ainda numa lista extensa de álbuns, com destaque para “Pieces for Bandoneon” e “Il Piccolo Diavolo”, ambos de Evan Lurie, irmão de John Lurie, o segundo banda sonora do filme com o mesmo título realizado por Roberto Benigni, “Cynical Hysterical Hour”, de John Zorn, “Surprise”, de Syd Straw (Golden Palominos), “Mystery Train” de John Lurie e “Lust”, dos Ambitious Lovers, além próximo disco de Marianne Faithfull, ainda sem data de edição.
Acompanham Marc Ribot, na sua vinda a Portugal, os três músicos que formam o grupo Shrek: Jim Pugliese (composição nas áreas da música microtonal e do jazz; colaborações com John Zorn, Anthony Coleman e Bobby Previte, Solista da London Sinfonietta), em percussão, Roger Kleier (gravações e concertos com Zeena Parkins, David Moss e Stan Ridgway), segundo guitarrista, e Sebastian Steinberg (tocou com Syd Straw, Zeena Parkins, John Zorn e Elliott Sharp), no baixo. Sons da cidade de néon. Esta noite, em Lisboa. A não perder.

Steve Roach & Kevin Braheny – “Western Spaces” + Steve Roach, Kevin Braheny & Michael Stearns – “Desert Solitaire” + Steve Roach – “World’s Edge”

pop rock >> quarta-feira, 20.01.1993

FORA DE SÉRIE


Steve Roach & Kevin Braheny
Western Spaces (8)
CD, Fortuna
Steve Roach, Kevin Braheny & Michael Stearns
Desert Solitaire (7)
CD, Fortuna
Steve Roach
World’s Edge (8)
2xCD, Fortuna
Todos import. Ananana



Em “Western Spaces” e “Desert Solitaire”, primeira e segunda partes de uma obra conceptual, os compositores procuraram “captar a essência” do deserto. Em concreto, das regiões áridas do Sudoeste da América do Norte, da Califórnia e das vastidões do Mojave, cujas areias serviram de inspiração a estas paisagens impressionistas.
Steve Roach e Kevin Braheny fazem parte da cena electrónica da “West Coast” americana, de tendência sintesista. Nesta aventura a dois, cujo segundo tomo conta com a colaboração de Michael Stearns, proveniente da mesma área musical, procederam de forma idêntica ao projecto paralelo de Steve Roach com Robert Rich, que tão bons resultados proporcionou até agora, em “Strata” e “Soma”: electrónica mais sonoridades étnicas, reais e sampladas. No fundo, um entre vários ramos da árvore, cada vez frondosa, que Jon Hassell plantou em “Possible Musics”. Música de movimentos e reverberações tão amplas como as do deserto, de flutuações e alterações subtis, repetindo a sucessão imperceptível de contornos das dunas do deserto.
“Desert Solitaire” tem como defeito pouco adiantar em relação ao disco anterior. Diz as mesmas coisas da mesma maneira, sem apresentar inovações. Temas há que parecem repetições de “Western Spaces”. Cai por momentos na monotonia e na “new age” bem comportada. Mas será talvez a monotonia aparente do próprio deserto que exige a disponibilidade e a atenção dos máxima dos sentidos.
O disco a solo de Steve Roach não se afasta muito, em termos formais, dos outros dois álbuns. Nele o compositor parte da metáfora a “chegada à beira do abismo” e do impulso de “saltar no vazio, ganhando asas antes da queda”. Voo e gravidade, expressos num maior contraste dos timbres (não falta o inevitável “didgeridoo”) e na utilização sistemática de percussões – das profundezas das “frame drumas” ao retinir de sino rituais tibetanos e aos ecos de cerâmica do “dumbek”. A excepção é o tema com cerca de uma hora que ocupa a totalidade do segundo disco, “To the threshold of silence”, longa progressão ondulatória, tão silenciosa como “Thursday afternoon”, de Brian Eno, ou “Waiting for Cousteau” (que ninguém se espante, é diferente de tudo o que este autor fez até à data), de Jean-Michel Jarre, aquele que mais se aproxima do sentido xamânico que Roach procura imprimir à sua música.