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Luís Cília – “Em Público” (dossier)

pop rock >> quarta-feira, 22.12.1993


LUÍS CÍLIA *
EM PÚBLICO



Já por diversas ocasiões referiu o medo que sentia em tocar ao vivo. Nunca conseguiu libertar-se dele?
– É uma coisa que nasce com as pessoas. Há aqueles, como eu, que hão-de ter medo sempre. Os franceses chamam-lhe “trac”. O Ferré tinha. No meu caso, é daquelas coisas um bocado inexplicáveis porque, apesar do pavor que tinha do palco – tinha que ir para as salas duas horas antes e não largava a guitarra, a rememorar as canções e a fazer escalas, um estado de nervos enorme -, quando estava no palco e o espectáculo corria bem, claro que sentia um grande prazer. E não era só no palco. Dois dias antes já estava nervoso. Voltei a tocar há pouco tempo, excepcionalmente, para uma homenagem ao cantor catalão Raimon, e andei um mês só a tocar duas coisas. Foi para um espectáculo directo na televisão, num sítio com 19 mil pessoas, em Barcelona, andei em pânico. Entraram o Paco Ibanez, o Pete Seeger, o Ferrat, o Pi de la Serra, o Daniel Viglietti…

Não encara a hipótese de voltar a actuar ao vivo?
– No estado em que está actualmente o aspecto cultural e, sobretudo, dos espectáculos em Portugal, não me dá grande vontade de voltar. Quando regressei de França tentei instituir, em vez de fazer um grande espectáculo por ano, alugar uma sala por dez, quinze dias, como fiz há alguns anos na Comuna e no Teatro Aberto, e no porto, no TEP. O problema é que em Portugal se prepara um espectáculo e depois fazemos em Lisboa, no Porto, talvez em Coimbra, e depois ficamos à espera… É pouco gratificante. Ainda agora, por exemplo, vi os espectáculos do Sérgio no São Luiz, de que gostei muito, e pronto, depois fica-se à espera que alguém convide para um, depois para outro, não há uma continuidade que permita fazer uma “tournée” durante seis meses seguidos, em pequenas cidades. Quando vivia em França, ia por exemplo à Bretanha e fazia quinze espectáculos em salas pequenas. Era o que eu gostaria de fazer cá, nem que fosse para tocar para 30 ou 40 pessoas, mas com continuidade.

Além dessa, houve outras razões que o tenham levado a abandonar os espectáculos ao vivo?
– Não foi uma decisão que tivesse tomado de repente. De facto, de cada vez em que preparava espectáculos, havia músicos que colaboravam e ensaiavam comigo em minha casa durante uns dois meses, os últimos dos quais foram o António Ferro e, se não me engano, o José Peixoto. Claro, não podia pagar-lhes os ensaios. Cada vez era mais angustiante não haver a tal continuidade. Por outro lado, comecei a ter convites para compor, na área do bailado, o que me tomava bastante tempo. Comecei também a dedicar-me à informática. Tive que fazer uma escolha.

Ainda há muita gente que associa o seu nome ao músico de intervenção, sem referir o compositor. Ter-se-á dado o caso de um excessivo envolvimento ao nível partidário, em concreto com o PCP, para quem compôs, aliás, o hino do partido.
– Não posso fazer nada quanto a isso. Em Portugal há uma certa inérciamental demuita gente em tentar conhcer as várias facetas de um compositor. As pessoas ficam à espera que lhes tragam a papinha toda feita e não querm saber o trajecto de um determinado músico. O que eu faço actualmente é composição. Agora se isso chega ou não ao conhecimento das pessoas, ou se leas continuam com a imagem do baladeiro de metralhadora em punho… Sobre o tema do “Avante”, é muito simples: um dia estava em casa e o Carlos Antunes, um funcionário do PC, chegou ao pé de mim e pediu-me para fazer uma música para passar na rádio clandestina, que tivesse um certo impacto. Fiz aquilo em quatro ou cinco dias, acho que não tem valor nenhum, era uma coisa imediatista, entreguei a pauta ao Carlos Antunes e nunca mais pensei nisso, nem sequer sei a letra. Não é que renegue o que faço. Mas o trajecto que essa canção teve depois disso já me ultrapassou.



Consegue situar o ponto de viragem na sua carreira?
Quando estudei composição, estudei os clássicos. Como comecei tarde, utilizei um método um bocado rápido de estudar harmonia e contraponto, o método de Schoenberg. Sempre me interessei pela música clássica. Dos cerca de 4000 discos que possuo, metade são de música clássica. E tive lições de guitarra de jazz com o Carlos Menezes. A canção foi, em França, o meio que tinha para me exprimir naquela altura, de uma forma política e directa.

Não gostaria de retomar o formato de canção? Abandonou de todo a faceta intervencionista, mesmo fazendo-o por outras vias musicais?
– A minha intervenção agora é mais emotiva. Politicamente, neste momento, não tenho nenhuma intervenção. Porque não sou solicitado nesse sentido e porque o quadro político português neste momento deixa-me um bocado indiferente. O que não quer dizer que não me continue a sentir uma pessoa de esquerda.

Essa indiferença não pressupõe um certo comodismo?
– Como dizia o Jô Soares: amancebei-me [risos]. Não, penso que não. Estou desperto para o que se passa e folgo com as vitórias das forças progressistas, sejam elas quais forem. Mas não sou interveniente, não vou cantar a campanhas… Também ninguém me pede!…

Se pedissem, intervinha?
– Depende… Se fosse absolutamente necessário, era capaz de intervir. Por exemplo, achei que era interessante e importante, porque era uma tomada de posição, participar no tal espectáculo de homenagem ao Raimon. Quis mostrar que estava ali e que ainda estou, se for preciso. Mas também acho que em Portugal aquele grande movimento da canção que houve depois do 25 de Abril – um movimento fortíssimo – se diluiu. Cada um foi para o seu lado. É pena.

O seu trabalho actual de composição para bailados não será em parte um refúgio? Por que motivo não voltou a editar discos que não fossem trabalhos de encomenda?
– Talvez haja um bocado de inércia da minha parte. Eu estava habituado a trabalhar com editoras, até um certo momento, em que havia uma relação de absoluta confiança entre o artista e a casa editora. Em França tive um editor, o Moshe Naim, a quem eu pedia para marcar o estúdio e ele só ouvia o disco no fim. Por cá, com a Sassetti, foi o mesmo tipo de relação. Hoje tem que se fazer cassetes e andar a mostrá-las, eu recuso-me a entrar nesse esquema. Tenho material suficiente para gravar um disco e estou a pensar editá-lo, mas sou um bocado preguiçoso nesse aspecto, ter de procurar uma editora.

Para além das tais composições por encomenda, não tem outros objectivos musicais?
– Sinto um especial prazer em fazer esses trabalhos que não implicam qualquer tipo de sacrifício da minha parte. Mas também gostaria de produzir discos, mas lá está outra vez a minha inércia. Fiz a produção do disco da Né Ladeiras, “Corsária”, que depois não tece seguimento. Talvez não ande à procura. E as pessoas talvez continuem com a tal imagem que referia há pouco.
Quando laguém quer fazer um disco, não selembra de mim como produtor, que é uma coisa que eu penso que poderia fazer bem, sem falsas modéstias. Em termos gerais, não vou dizer como o Picasso: “O que procuro, encontro.” Mas enfim, todos os dias trabalho no meu estúdio. Se não são encomendas, é o estudo. Depois, em Portugal, uma pessoa não pode ter grandes ambições.

Em França tinha outro tipo de oportunidades, mas apesar disso voltou…
– Era um exilado, as condições que me obrigaram a esse exílio acabaram, portanto voltei. E quando voltei vi que as coisas, mentalmente, não tinham evoluído muito. Mesmo hoje não creio que haja condições em Portugal para que se possa fazer uma carreira aqyui.

Disse uma vez que foi “a febre dos tops que acabou por dar cabo disto tudo”…
– Havia em Portugal um movimento de canção de textos que era muito respeitado. Mas num determinado momento começou-se a querer entrar nos tops à força. Passou a haver uma concorrência mesmo entre os cantores daquela área. Isso acabou por desvalorizar opróprio movimento. Por mim, sempre tive a consciência de que a música que fazia era minoritária. Nunca pretendi com osmeus discos, ser um rei de vendas. Creio que o grande erro foi as pessoas que estavam na minha situação tentarem entrar naquele esquema. Sei que com a música que fazia nunca poderia ir ao Coliseu. O meu trajecto era outro: tocar em pequenas salas, durante mais tempo. Tentar encontrar um público que me seguisse ao longo dos anos.

* Cantor e compositor, de música de intervenção nos anos 60, às actuais peças electrónicas feitas em computador. Autor do hino do PCP, “Avante camarada”, tem gravados e editados, em Portugal e em França, 18 álbuns, entre os quais “Portugal, Angola – Chants de Lutte”, três volumes de genérico “La Poésie Portugaise”, “Contra a Ideia de Violência, a Violência da Ideia”, “Memória”, “Transparências”, “O Peso da Sombra” (sobre poemas de Eugénio de Andrrade), “Cancioneiro” (com temas tradicionais), “Sinais de Sena” (sobre poemas de Jorge de Sena), “Penumbra” (idem, de David Mourão Ferreira) e “A Regra do Fogo”. Entre as encomendas contam-se música para peças de Strindberg, Pasolini, Agustina Bessa-Luís e Marguerite Yourcenar, e coreografias de bailado de José Seabra, Rui Nunes, Paulo Ribeiro, Rui Horta e Clara Andermat. Trabalha actualmente numa peça a levar à cena pelo Centro Dramático de Évora, da autoria de Valle Inclam, com encenação do espanhol Pedro Alvarez Ossorio.

Lights In A Fat City – “Sound Column” + Jorge Reyes – “El Costumbre”

pop rock >> quarta-feira, 15.12.1993


Lights In A Fat City
Sound Column (6)
Jorge Reyes
El Costumbre (8)
Extreme, import. Contraverso



Música do reino das sombras, electrónica e ritual. Os Light In A Fat City, trio inglês, não conseguem repetir a qualidade do anterior “Somewhere”, onde expandiam as fronteiras traçadas por Jon Hassell na sua música imaginária do quarto mundo. Em “Sound Column”, gravado ao vivo em San Francisco, foi eliminada por completo a componente rítmica, ficando o didgeridoo – artefacto sonoro fetiche da banda – desamparado no meio da amplitude das “drones” electrónicas, dos “samples” subliminares, sinos de tragédia e ruídos de animais escondidos na escuridão que aproximam este disco de alguns trabalhos dos Nocturnal Emissions.
Jorge Reyes é um músico mexicano, autor de álbuns como “Musica Mexicana pre-Hispanica”, “Cronica de Castas” (com o guitarrista espanhol Suso Saiz) e “Bajo el Sol Jaguar”, nos quais cria de forma fascinante a tradição da cultura ancestral dos seus antepassados, para tal recorrendo a uma mistura original da electrónica com instrumentos de osso, pedra, conchas ou batimentos no próprio corpo. “El Costumbre” toma por base as bonecas de papel que consoante a forma e a cor, os índios otomies, da Serra de Puebla, utilizam nas suas cerimónias de magia branca e magia negra. As constantes referências ao peiote e às viagens astrais, no corpo de animais voadores, fazem desta obra o equivalente musical da literatura alucinatória de Carlos Castaneda.
A colaboração de Steve Roach, a linguagem dos sonhos pronunciada pelos Huichols em “Taksu”, o som da terra e da chuva, os murmúrios da floresta captam, como “fotografias Kirlian”, a trama simultaneamente etérea e orgânica do México dos mitos, em imagens de “feérie” e pesadelo que recordam o dia dos mortos mexicano, com as suas lanternas, máscaras, fogo-de-artifício e fantasmagorias.

Banda do Casaco – “No Jardim Da Celeste” + “Também Eu” + “Banda Do Casaco Com Ti Chitas”

pop rock >> quarta-feira, 08.12.1993


O AVESSO DO CASACO

BANDA DO CASACO
No Jardim Da Celeste (6) / Também Eu (5) / EMI-VC
Banda Do Casaco Com Ti Chitas (5) / Companhia Nacional de Música, distri. MVM




Brada-se aos céus em louvor quase religioso ao papel redentor, e também um pouco de mártir, que a Banda do Casaco (alguém disse Filarmónica Fraude?) desempenhou na história, sempre pequenina e feita de singelas glórias, da música moderna portuguesa (MMP). Esse papel teve-o sem dúvida a Banda, na visualização de um conceito original sobre uma música ao mesmo tempo urbana e eléctrica mas enraizada na tradição popular. A Banda do Casaco terá acertado na “mouche”, mas apenas durante alguns momentos de fulgor que permitiram vislumbrar a tal música redentora. Nuno Rodrigues e António Pinho, os dois hemisférios do cérebro do Casaco, sempre funcionaram por contraste e segundo uma estratégia de conflito, daí resultando a originalidade da música da Banda, mas também a sua fraqueza.
Explicando melhor: à visão de Rodrigues, cimentada nas músicas ditas da tradição celta e do progressivismo inteligente que nos anos 70, para o melhor e para o pior, iam dando ao rock um cunho erudito, contrapunha-se a veia satírica e desestruturadora de Pinho, materializada nas letras das canções e na pose anarquista do grupo, mal aceite na época e agora acolhida pela gente de bem. Dessa estranha aliança, que contou sempre, é preciso dizê-lo, com excelentes intérpretes – de Carlos Zíngaro e Celso Carvalho (que pena ter passado ao lado de uma grande carreira!) às vozes femininas de Né Ladeiras e Concha -, resultaram em cheio “Coisas do Arco da Velha”, este de facto um marco da MMP (e momento de glória para Cândida Branca Flor…), e bastante bem, “Hoje Há Conquilhas, Amanhã não Sabemos” e “Contos da Barbearia”, aqueles onde as virtudes fizeram esquecer os defeitos e os três que falta ainda reeditar. Uma das consequências de se encetar a saga das reedições pelo fim, primeiro a EMI-VC, depois o próprio Nuno Rodrigues para a Companhia Nacional de Música, em “Ti Chitas”, foi a exposição prévia dos pontos fracos da banda, a saber, um desequilíbrio, amiúde revelado, entre as intenções e os resultados, visível nos arranjos e no trabalho de produção, por vezes infeliz, em falhas de dinâmica, deslizes do bom-gosto e uma certa desorientação onde alguns viram experimentalismo e a ousadia de novas soluções: em “No Jardim da Celeste”, “Também Eu” e “Ti Chitas” sãopoucos os momentos realmente de excepção, e razoavelmente abundantes os de puro tédio instrumental e falta de criatividade. No jardim florescem viçosas “Argila de luz” e “Ai se a Luzia”. “Natação obrigatória”, que todos citam, é sobretudo divertido. Pior é o violino, misturado de forma, vamos lá, incómoda e por vezes despropositada, como no solo final de “Estranha Força”, ou os tiques vocais, pretensamente vanguardistas, de “Lliliana Nibelunga”. Um problema de forma que a Banda do Casaco nunca conseguiu resolver a contento mas que soube encobrir de modo mais do que satisfatório enquanto a criatividade de Rodrigues e Pinho transbordava. “Também Eu”, já sem o letrista, navega ao sabor dos efeitos de estúdio, esperando pelo farol de uma boa canção. Nuno Rodrigues, só, perdido na sua visão, refugia-se nas brincadeiras do sintetizador e no nome de Jerry Marotta. “Salvé Maravilha” é o único feixe luminoso numa longa noite de águas paradas. O último golpe de rins, antes do olvido, foi tentado através da aproximação à música tradicional, com a chamada (muito antes de Rui Reininho ter trazido Isabel Silvestre para os GNR…) de Catarina Chitas, Ti Chitas, pastora, cantora e tocadora de adufe que vale a pena conhecer e amar no álbum “Cantares de Penha Garcia”, uma das obras fundamentais e de maior beleza da música étnica portuguesa.
Mas o vício da pop, então já ampapada no excesso de maquilhagem, impediu que resultasse em cheio aquela que poderia ter sido uma experiência ímpar, mas que deste modo se perdeu numa, mais do que síntese, colagem de duas sensibilidades nessa altura já em definitivo apartadas.
Neste “Matar saudades” – tema novo aqui incluído, escrito por Rodrigues, Celso de Carvalho e António Emiliano – do passado, é difícil escutar sem uma certa desilusão a voz de Chitas tacteando uma “Consolação” em busca de âncora, no meio das vagas da modernidade. Ao contrário da pureza de “Nossa Sinhora d’Azenha”. Mas talvez tenha sido esse afinal o destino desde sempre escolhido pela Banda. O de caminhar à beira do abismo. Mostrado o avesso do casaco, resta aguardar pela elegância do corte inicial.