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Rosina de Pèira – “Anueit”

pop rock >> quarta-feira >> 20.07.1994


Rosina de Pèira
Anueit
Revolum, import. Megamúsica



O disco “experimental” de Rosina de Pèira, depois dos duos com Martina, “Nadal Encara” e “Cancons de Femnas”. Como acontece em todas as experiências, os resultados variam entre o fracasso e a solução milagrosa. Para esta exploração da música da região da Occitânica, Rosina contou com a colaboração de um naipe alargado de músicos, de onde se destacam Dominique Regef, na “vielle” (antepassado medieval do violino), e Eric Montbel, dos Lo Jai, na flauta e na “cornemuse” (uma das várias modalidades de gaita-de-foles francesas). Pecadilhos maiores são a presença da bateria, que, entre outros despautérios, destrói uma bela composição como “Vola ma cancon”, e a grandiloquência despropositada de certos arranjos, cujo exagero maior ocorre em “Lérnha” e “Te voli t’en voli”, neste caso na tradição do rock sinfónico. O resto, que ainda são dez canções, compensa tais baixios. A voz de Rosina consegue feitos notáveis, movendo-se entre as percussões africanas, os “samplers”, as programações rítmicas e os instrumentos de sopro, na recriação e libertação deveras arrojada, dos “tempos e contratempos, ritmos e biorritmos, oriundos de gerações culturais enterradas, amadurecidas e estratificadas ao sol dos Pirinéus”. Toda a parte final do álbum é sem defeitos: “Las Potincas”, imbuído até à medula do espírito tradicional, “Som som – la nena”, canção de embalar com instrumentos de água, kalimba e tablas, “Aurieja”, um instrumental palaciano-naturalista pontuado pelos sons dos campos da Gasconha, e “Les oiseaux de Guilhem Muche”, um minuto e meio para fechar os olhos e escutar apenas chilreios de pássaros. (7)
Nota: Numa recensão recente feita ao disco dos Hevia, o grupo é referido como sendo galego, quando na verdade é das Astúrias.

Anabela Duarte – “Em Público” (dossier | grande entrevista)

pop rock >> quarta-feira >> 20.07.1994
EM PÚBLICO


ANABELA DUARTE *


Como e quando surgiu o canto lírico na sua carreira?
Desde há quatro anos que ando a trabalhar nesta técnica. Há cerca de um mês, fiz a voz soprano no “Requiem” de Verdi. Tenho evoluído musicalmente e procurado desenvolver o meu instrumento, que é a voz. À medida que fui estudando e afinando este instrumento, cheguei imediatamente à conclusão que o campo onde me posso exprimir melhor em termos vocais é o canto lírico. Podia ser o fado, mas em termos de precisão, o canto lírico é entre todos os géneros aquele que tem uma técnica mais sofisticada.

Trata-se então mais de uma ginástica e menos uma vocação?
É uma vocação. Mas não se deve ver as coisas dessa maneira. Canto pop, canto fado, canto lírico, canto árabe, canto não sei quê… O canto é só um e eu tenho essa possibilidade de fazer a diversificação. O meu instrumento é suficientemente maleável e híbrido para poder aplicá-lo a outros cantos sem ficar preso a nenhum em particular.

A sua presença na pop é um assunto definitivamente encerrado?
O que eu faço hoje tem muito a ver com o que fazia nessa altura. Os Mler Ife Dada sempre foram um grupo que no início começou por ser muito ligado a gente que frequentava as Belas-Artes. Era um grupo muito “artístico”, no sentido em que a sua música era inseparável do aspecto cénico. Era arte total. Não no sentido wagneriano, mas pronto, era uma aproximação. No campo lírico é exactamente isso. Se aplicarmos o lírico em termos operáticos.

O contexto não é bem o mesmo…
Há no rock e na pop talvez um lado mais improvisado. Um lado mais rebelde. Na música lírica, tudo isso tem que ser em doses mais restritas. Para já, estamos ligados a uma partitura. Não podemos chegar ali, está lá um sol, e fazemos um lá sustenido.

Quer dizer que hoje privilegia o rigor e a disciplina, em detrimento desse tal outro lado mais rebelde?
Sim, é um processo de disciplina. Mas isso tem o seu lado subversivo. Utilizar essa disciplina para subverter.

O mesmo tipo de subversão que utilizou no fado, em “Lishbuneh”?
Não sei se nesse caso foi bem subverter. O fado, encarei-o de uma maneira diferente. Mas em termos vocais acho que até cantei o fado de forma bastante tradicional. O tradicional é que nessa altura estava fora de moda.

Nos Mler Ife Dada havia também o lado do gozo, de um certo gosto iconoclasta. Ficou-lhe essa faceta de “destruir” o instituído?
A mim o que me dá gozo é surpreender. Não só os outros como a mim própria. Daí começar a experimentar coisas diferentes. O disco de fado foi uma dessas coisas.

O canto lírico é para si ponto final ou ponto de passagem?
Afinar o instrumento desta maneira é como por exemplo um violoncelista que, desde que tenha o instrumento bem aprendido e dominado tecnicamente, tanto pode tocar música clássica como jazz, fado ou seja o que for. O canto lírico em si já tem muita coisa. Por exemplo, “Salomé” – que eu gostaria de fazer – é uma ópera clássica no sentido tradicional do termo. Mas é uma ópera tão empolgante que mesmo dentro do clássico ultrapassa barreiras. O personagem em si, muito ligado à voz. O que vai criar dinamismo, cores e tessituras vocais entusiasmantes.

A sua voz serve melhor certos personagens do que outros?
Sim, sou soprano “stinto”, mais próximo do dramático. O que me dá a possibilidade de fazer os papéis mais de “prima dona”, que exigem uma presença forte em termos vocais e teatrais.

Os Mler Ife Dada, pela sua estética e atitude, davam espectáculo, no sentido em que enfatizavam o lado cénico e visual. Isso acontecia consigo e na maneira como se apresentava ao vivo. Consegue transpor essa característica, de algum exibicionismo, para o canto lírico?
Nunca tinha pensado nisso antes. Cada vez estou mais afastada disso. As entrevistas e as fotografias então eram uma chatice completa. Não sou uma pessoa extrovertida.

Nos Mler Ife Dada exibia-se bastante…
Normalmente é sempre assim [risos]. É o protótipo do artista. Uma faceta a que eu infelizmente não posso escapar. Agora, o canto lírico é muito exibicionista. Qualquer arte é exibicionista, senão não se fazia. Ficava-se em casa a coser meias ou a lavar pratos, ou ia-se para o escritório…

E narcisismo, o desejo de reconhecimento público?
Isso nunca me passou pela cabeça. Aliás nunca fiz bem a distinção entre o ser eu e ser no palco.

Gostaria de fazer teatro?
Nunca fiz, mas já me propuseram umas coisas. Sempre achei que não tinha jeito. O teatro implica uma relação com a palavra dita, discursiva, enquanto a minha relação é cada vez mais com a palavra cantada. Embora haja muitos discursos de teatro que não passam pela palavra. Esses são muito mais interessantes e muito mais próximos do canto lírico.

Sente-se à margem das cantoras ligeiras ou doutras áreas da música portuguesa? Nunca se ouviu falar em qualquer colaboração com algumas delas…
Sou muito individualista. A única com quem poderia fazer coisas interessantes seria a Maria João e só ela. Fazer com mais gente… Isto agora é um bocado chato… Mas o que é que me interessa a mim fazer duetos, que projecto é que eu posso ter com outras cantoras além da Maria João? Não estou a ver… Porque a Maria João é a única que explora a voz de um ponto de vista mesmo vocal. A mesma coisa que eu faço, embora em moldes diferentes. Ela em moldes mais jazzísticos, próximos quase da música contemporânea. Mais ou menos o meu campo… O mesmo não se passa em termos de canção, com a Teresa Salgueiro, ou a Lena d’Água, ou…

Afastou-se então em definitivo da música dita “ligeira”?
Claro. Não me apetece. Mas não tenho nada contra.

Até onde pretende chegar no canto lírico?
O meu interesse é apenas ser cantora. É nisso que estou a apostar. No canto lírico quero ser uma cantora ilimitada. E, nesse sentido, apurar uma técnica que depois se possa aplicar a muitas outras coisas.

Eis o que se pode chamar uma autoconfiança total…
Mas eu sou assim em tudo. Quando há uma coisa que me chateia, abro logo a boca. Sai-me logo o coração pela boca. Qualquer episódio do dia-a-dia, sei lá, um problema qualquer com um taxista ou um padeiro, tenho sempre conseguido resolvê-lo da melhor maneira. Em termos artísticos, é exactamente a mesma coisa. Sou uma pessoa arrojada.

De que modo foi recebida no meio do canto lírico? As outras “divas” aceitaram a sua entrada?
Para já em Portugal, divas não estou a ver nenhuma… Não sei, não as conheço pessoalmente. A partir de agora é que vou saber. Uma coisa é certa: posso perfeitamente fazer carreira no canto lírico. Não é forçoso que o canto lírico seja clássico. É tudo um problema de estruturas. Dos conservatórios, das academias de música. O que cria muito medo nas pessoas. Já percebi isso. Ao nível do canto, ao nível dos instrumentistas, ao nível da música em geral, há um medo das pessoas em se afirmarem. O facto de eu vir de um canto diferente e de me atrever a fazer coisas que elas não fazem cria atritos. Já fiz audições, falei com pessoas, inclusive da Gulbenkian, e há umas certas reticências nas pessoas. Por exemplo, alguém atrever-se a fazer uma “Lady MacBeth” neste país é uma heresia.

Tenciona forçar a entrada nesse meio ou, pelo contrário, manter-se à margem dele?
Uma coisa é a gente querer fazer as coisas, outra é na realidade não as conseguir fazer. Ou porque não temos o instrumento suficiente para isso, ou porque à última hora ficamos a tremer e não conseguimos, ou porque alguém nos faz a cabeça e não se consegue, ou porque temos um acidente e morremos… Se conseguirmos ultrapassar tudo isto, as pessoas terão que reconhecer-nos. As pessoas, quando me vêem, sabem reconhecer as minhas capacidades. Mas antes disso dizem tanto mal que quase nos levam a desistir. Em relação a entrar ou não no meio, o que é que me interessava? Só se fosse para mudar aquilo tudo! Ganhar 300, 400 ou 500 contos, para depois ouvir “você tem de fazer o que a gente quer”?

Que estratégias utiliza então para levar à prática os seus projectos?
Recorro a meios alternativos. Tenho encontrado imensos mecanismos de resistência. Sobretudo porque as pessoas não t~em referências de mim como cantora na área delas. A minha luta é contra o academismo e contra as mentalidades tacanhas. Há em Portugal um provincianismo que corta as pernas às pessoas.

* Ex-vocalista dos Mler Ife Dada. Autora-intérprete de pois a solo. Dedica-se actualmente ao canto lírico e está a preparar um recital de voz e piano (com José Colorado), a apresentar no final do Verão, em que interpretará “Lieder” e excertos de operetas de compositores como Richard Strauss, Offenbach e Lecocq, e peças operáticas de Puccini, Wagner, Verdi e Catalani.

Legendary Pink Dots – “9 Lives To Wonder”

pop rock >> quarta-feira >> 13.07.1994


Legendary Pink Dots
9 Lives To Wonder
Play It Again Sam, distri. Megamúsica





É impressionante a quantidade de álbuns que esta banda inglesa radicada na Holanda tem gravado sem nunca ter dado um passo em falso. Mais impressionante ainda é a capacidade de constantemente se ultrapassarem a si próprios e não se deixarem acomodar ao conforto de um estilo que vêm apurando ao longo dos anos, em álbuns magníficos como “Asylum”, “Any Day now”, “The Crushed Velvet Apocalypse” ou os dois volumes de “Shadow Weaver”. Edward Ka’ Spel, o profeta, continua, como sempre, a atrair sobre si as atenções. Ele é hoje o legítimo sucessor de Syd Barrett , não vamos dizer irmão, mas primo espiritual de Peter Hammill. O mesmo significa que continuamos no domínio de um novo psicadelismo, de vertente messiânica de sinal invertido, onde os LPD mostram saber mover-se com o à vontade de serpentes. As vocalizações de Ka’ Spel tornaram-se mais sinuosas e suaves do que nunca, perigosas na maneira como instilam um universo obscuro e feroz, disfarçado pela luz mortiça de néons intermitentes e histórias vagamente inspiradas no surrealismo, versão cidades do crepúsculo, de Chirico e Delvaux. Há toda uma rede intricada de sedução sonora que os LPD tecem como aranhas malsã: saxofones atulhados de drunfos, sintetizadores constantemente me busca de novidades, uma atmosfera densa e húmida, povoada por pirilampos mecânicos e almas em pecado tombando nos abismos do Hades. Doentia, perigosamente bela, a obra dos Legendary Pink Dots vai-se desenrolando num “cadavre exquis” de mensagens e avisos ambíguos. A velha frase legenda dos últimos discos lá está, enigmática: “Sing While you may”, desta feita acompanhada por “Nititupotnibadnif” (ler de trás para a frente. “Bin” é “arca”.) Outra vez o dilúvio? (8)