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Luís Cília – “Em Público” (dossier)

pop rock >> quarta-feira, 22.12.1993


LUÍS CÍLIA *
EM PÚBLICO



Já por diversas ocasiões referiu o medo que sentia em tocar ao vivo. Nunca conseguiu libertar-se dele?
– É uma coisa que nasce com as pessoas. Há aqueles, como eu, que hão-de ter medo sempre. Os franceses chamam-lhe “trac”. O Ferré tinha. No meu caso, é daquelas coisas um bocado inexplicáveis porque, apesar do pavor que tinha do palco – tinha que ir para as salas duas horas antes e não largava a guitarra, a rememorar as canções e a fazer escalas, um estado de nervos enorme -, quando estava no palco e o espectáculo corria bem, claro que sentia um grande prazer. E não era só no palco. Dois dias antes já estava nervoso. Voltei a tocar há pouco tempo, excepcionalmente, para uma homenagem ao cantor catalão Raimon, e andei um mês só a tocar duas coisas. Foi para um espectáculo directo na televisão, num sítio com 19 mil pessoas, em Barcelona, andei em pânico. Entraram o Paco Ibanez, o Pete Seeger, o Ferrat, o Pi de la Serra, o Daniel Viglietti…

Não encara a hipótese de voltar a actuar ao vivo?
– No estado em que está actualmente o aspecto cultural e, sobretudo, dos espectáculos em Portugal, não me dá grande vontade de voltar. Quando regressei de França tentei instituir, em vez de fazer um grande espectáculo por ano, alugar uma sala por dez, quinze dias, como fiz há alguns anos na Comuna e no Teatro Aberto, e no porto, no TEP. O problema é que em Portugal se prepara um espectáculo e depois fazemos em Lisboa, no Porto, talvez em Coimbra, e depois ficamos à espera… É pouco gratificante. Ainda agora, por exemplo, vi os espectáculos do Sérgio no São Luiz, de que gostei muito, e pronto, depois fica-se à espera que alguém convide para um, depois para outro, não há uma continuidade que permita fazer uma “tournée” durante seis meses seguidos, em pequenas cidades. Quando vivia em França, ia por exemplo à Bretanha e fazia quinze espectáculos em salas pequenas. Era o que eu gostaria de fazer cá, nem que fosse para tocar para 30 ou 40 pessoas, mas com continuidade.

Além dessa, houve outras razões que o tenham levado a abandonar os espectáculos ao vivo?
– Não foi uma decisão que tivesse tomado de repente. De facto, de cada vez em que preparava espectáculos, havia músicos que colaboravam e ensaiavam comigo em minha casa durante uns dois meses, os últimos dos quais foram o António Ferro e, se não me engano, o José Peixoto. Claro, não podia pagar-lhes os ensaios. Cada vez era mais angustiante não haver a tal continuidade. Por outro lado, comecei a ter convites para compor, na área do bailado, o que me tomava bastante tempo. Comecei também a dedicar-me à informática. Tive que fazer uma escolha.

Ainda há muita gente que associa o seu nome ao músico de intervenção, sem referir o compositor. Ter-se-á dado o caso de um excessivo envolvimento ao nível partidário, em concreto com o PCP, para quem compôs, aliás, o hino do partido.
– Não posso fazer nada quanto a isso. Em Portugal há uma certa inérciamental demuita gente em tentar conhcer as várias facetas de um compositor. As pessoas ficam à espera que lhes tragam a papinha toda feita e não querm saber o trajecto de um determinado músico. O que eu faço actualmente é composição. Agora se isso chega ou não ao conhecimento das pessoas, ou se leas continuam com a imagem do baladeiro de metralhadora em punho… Sobre o tema do “Avante”, é muito simples: um dia estava em casa e o Carlos Antunes, um funcionário do PC, chegou ao pé de mim e pediu-me para fazer uma música para passar na rádio clandestina, que tivesse um certo impacto. Fiz aquilo em quatro ou cinco dias, acho que não tem valor nenhum, era uma coisa imediatista, entreguei a pauta ao Carlos Antunes e nunca mais pensei nisso, nem sequer sei a letra. Não é que renegue o que faço. Mas o trajecto que essa canção teve depois disso já me ultrapassou.



Consegue situar o ponto de viragem na sua carreira?
Quando estudei composição, estudei os clássicos. Como comecei tarde, utilizei um método um bocado rápido de estudar harmonia e contraponto, o método de Schoenberg. Sempre me interessei pela música clássica. Dos cerca de 4000 discos que possuo, metade são de música clássica. E tive lições de guitarra de jazz com o Carlos Menezes. A canção foi, em França, o meio que tinha para me exprimir naquela altura, de uma forma política e directa.

Não gostaria de retomar o formato de canção? Abandonou de todo a faceta intervencionista, mesmo fazendo-o por outras vias musicais?
– A minha intervenção agora é mais emotiva. Politicamente, neste momento, não tenho nenhuma intervenção. Porque não sou solicitado nesse sentido e porque o quadro político português neste momento deixa-me um bocado indiferente. O que não quer dizer que não me continue a sentir uma pessoa de esquerda.

Essa indiferença não pressupõe um certo comodismo?
– Como dizia o Jô Soares: amancebei-me [risos]. Não, penso que não. Estou desperto para o que se passa e folgo com as vitórias das forças progressistas, sejam elas quais forem. Mas não sou interveniente, não vou cantar a campanhas… Também ninguém me pede!…

Se pedissem, intervinha?
– Depende… Se fosse absolutamente necessário, era capaz de intervir. Por exemplo, achei que era interessante e importante, porque era uma tomada de posição, participar no tal espectáculo de homenagem ao Raimon. Quis mostrar que estava ali e que ainda estou, se for preciso. Mas também acho que em Portugal aquele grande movimento da canção que houve depois do 25 de Abril – um movimento fortíssimo – se diluiu. Cada um foi para o seu lado. É pena.

O seu trabalho actual de composição para bailados não será em parte um refúgio? Por que motivo não voltou a editar discos que não fossem trabalhos de encomenda?
– Talvez haja um bocado de inércia da minha parte. Eu estava habituado a trabalhar com editoras, até um certo momento, em que havia uma relação de absoluta confiança entre o artista e a casa editora. Em França tive um editor, o Moshe Naim, a quem eu pedia para marcar o estúdio e ele só ouvia o disco no fim. Por cá, com a Sassetti, foi o mesmo tipo de relação. Hoje tem que se fazer cassetes e andar a mostrá-las, eu recuso-me a entrar nesse esquema. Tenho material suficiente para gravar um disco e estou a pensar editá-lo, mas sou um bocado preguiçoso nesse aspecto, ter de procurar uma editora.

Para além das tais composições por encomenda, não tem outros objectivos musicais?
– Sinto um especial prazer em fazer esses trabalhos que não implicam qualquer tipo de sacrifício da minha parte. Mas também gostaria de produzir discos, mas lá está outra vez a minha inércia. Fiz a produção do disco da Né Ladeiras, “Corsária”, que depois não tece seguimento. Talvez não ande à procura. E as pessoas talvez continuem com a tal imagem que referia há pouco.
Quando laguém quer fazer um disco, não selembra de mim como produtor, que é uma coisa que eu penso que poderia fazer bem, sem falsas modéstias. Em termos gerais, não vou dizer como o Picasso: “O que procuro, encontro.” Mas enfim, todos os dias trabalho no meu estúdio. Se não são encomendas, é o estudo. Depois, em Portugal, uma pessoa não pode ter grandes ambições.

Em França tinha outro tipo de oportunidades, mas apesar disso voltou…
– Era um exilado, as condições que me obrigaram a esse exílio acabaram, portanto voltei. E quando voltei vi que as coisas, mentalmente, não tinham evoluído muito. Mesmo hoje não creio que haja condições em Portugal para que se possa fazer uma carreira aqyui.

Disse uma vez que foi “a febre dos tops que acabou por dar cabo disto tudo”…
– Havia em Portugal um movimento de canção de textos que era muito respeitado. Mas num determinado momento começou-se a querer entrar nos tops à força. Passou a haver uma concorrência mesmo entre os cantores daquela área. Isso acabou por desvalorizar opróprio movimento. Por mim, sempre tive a consciência de que a música que fazia era minoritária. Nunca pretendi com osmeus discos, ser um rei de vendas. Creio que o grande erro foi as pessoas que estavam na minha situação tentarem entrar naquele esquema. Sei que com a música que fazia nunca poderia ir ao Coliseu. O meu trajecto era outro: tocar em pequenas salas, durante mais tempo. Tentar encontrar um público que me seguisse ao longo dos anos.

* Cantor e compositor, de música de intervenção nos anos 60, às actuais peças electrónicas feitas em computador. Autor do hino do PCP, “Avante camarada”, tem gravados e editados, em Portugal e em França, 18 álbuns, entre os quais “Portugal, Angola – Chants de Lutte”, três volumes de genérico “La Poésie Portugaise”, “Contra a Ideia de Violência, a Violência da Ideia”, “Memória”, “Transparências”, “O Peso da Sombra” (sobre poemas de Eugénio de Andrrade), “Cancioneiro” (com temas tradicionais), “Sinais de Sena” (sobre poemas de Jorge de Sena), “Penumbra” (idem, de David Mourão Ferreira) e “A Regra do Fogo”. Entre as encomendas contam-se música para peças de Strindberg, Pasolini, Agustina Bessa-Luís e Marguerite Yourcenar, e coreografias de bailado de José Seabra, Rui Nunes, Paulo Ribeiro, Rui Horta e Clara Andermat. Trabalha actualmente numa peça a levar à cena pelo Centro Dramático de Évora, da autoria de Valle Inclam, com encenação do espanhol Pedro Alvarez Ossorio.

Penguin Cafe Orchestra – “O Pinguim Não Despe O Fraque” (artigo opinião) + Entrevista + “Union Cafe” (crítica de disco)+

pop rock >> quarta-feira, 29.09.1993


O PINGUIM NÃO DESPE O FRAQUE



“Imaginary World Music”, houve quem chamasse à música dos Penguin Café Orchestra, um híbrido de estilos e referências que hoje soa bastante menos radical. A banda, que começa por ser o espaço de concretização das ideias de Simon Jeffes, tem um álbum novo, editado numa multinacional. Chama-se “Union Café” e pisca o olho a temas e sons de álbuns anteriores. Pop de câmara ou seja lá o que for, a música ouvida neste café, tem menos piada e as experiências funcionam a um nível quase subliminar. Crise de crescimento ou fruto da maturidade, o Café Pinguim passou a reservar o direito de admissão.



Arredado, pelo menos de forma evidente, o elemento surpresa, da música dos Penguin Café Orchestra, compete-lhe agora apurar cada vez mais a vertente do classicismo. Se os primeiros álbuns – “Music from the Penguin Café”, “Penguin Café Orchestra” e “Broadcasting from Home” submetiam essa componente Às infiltração de músicas alienígenas, filtradas através de um humor subtil, “Union Café” afirma orgulhosamente a perfeição das formas e a depuração de uma linguagem que se cinge ao essencial. Se bem que permaneçam subentendidos e camadas profundas de significados, que aqui, em entrevista ao PÚBLICO, Simon Jeffes ajuda a desvendar.
PÚBLICO – É lícito considerar os Penguin Café Orchestra apenas a exteriorização de um projecto pessoal?
SIMON JEFFES – Digamos que eu sou o cérebro e os outros músicos são os braços e as pernas, o corpo. Se os diversos órgãos não funcionarem, o corpo não funciona.
P. – O novo disco soa bastante mais clássico que os anteriores, que recorriam bastante ao humor e a um intenso trabalho de estúdio.
R. – Penso que tem a ver com o tempo e com a idade [Simon Jeffes tem hoje 44 anos de idade]. Com o tempo tornei-me cada vez mais interessado no som de grupos que tocam sem qualquer tipo de amplificação. Para fazer isso é necessário escolher instrumentos cujo som se possa combinar, numa situação acústica, sem sistemas electrónicos. Isso leva a uma determinada selecção dos instrumentos. Por exemplo se tiver um trombone, um piano e um “ukelele” [instrumento havaiano, igual ao cavaquinho], não se vai conseguir ouvir o “ukelele”.
Isto levou-me a dar mais relevo ao que na aparência parece ser uma formação mais tradicional. A intenção não é ser tradicional, tem a ver com o modo como os instrumentos funcionam, quando tocam uns com os outros.



P. – Em “Union Cafe” os instrumentos dominantes são o piano e as cordas.
R. – A razão porque estou actualmente a tocar mais piano do que guitarra prende-se com a resposta anterior. O piano é umm dos instrumentos sem amplificação que soa mais claro.
P. – A frase que aplicaram à sua música “Imaginary world music”, diz-lhe alguma coisa?
R. – É engraçado porque eu mesmo usei uma frase semelhante, há cerca de uns dez anos: “folclore imaginário”. Na minha imaginação, vejo este lugar, o café Pinguim, e o seu folclore próprio. Nessa época prestávamos uita atenção à música étnica, talvez porque então a música clássica e a música pop não falassem connosco directamente, era como se faltasse qualquer coisa. Também nos interessávamos por movimentos como o surrealismo. O termo “folclore imaginário” surgiu porque eu sentia como que um hiato na minha experiência.

Música

P. – Encontra alguma explicação para a insistência com que os grupos folk, estou a lembrar-me dos Patrick Street e dos Matto Congrio, pegam no tema “Music from a found harmónium”?
R. – Escrevi essa peça no Japãp, em 1982. A razão do título prende-se com uma ocasião em que eu andava a caminha de noite por uma rua de Quioto e encontrei um “harmónium” [órgão de pedais] que alguém tinha deitado fora, na rua, como se fosse lixo.
Trouxe esse órgão para casa e foi nele que escrevi o tema. Tive a sensação curiosa de que o tema surgira de um lugar muito puro, não consigo explicar bem: desde que escrevi esse tema ele passou a ter a como que uma existência própria, com um apelo que parece funcionar em qualquer tipo de situações e culturas.



Cage Tomado À Letra

P. – No novo álbum aparece o tema “Yodel 2”, depois de ter havido “Yodel” em “Penguin Café Orchestra” e um “Prelude & Yodel”, em “Broadcasting from home”. A que se deve tal repetição?
R. – A razão por que uso o termos “yodel” é por se tratar de uma técnica na guitarra em que se puxa uma corda e logo de seguida se comprime o dedo sobre ela. Produz como que dois sons quase em simultâneo, dois sons que alternam muito rapidamente, numa maneira muito semelhante ao “Yodelling”, que é uma técnica vocal utilizada nas regiões alpinas, em que a voz oscila entre a nota fundamental e uma espécie de “falsetto”. É como se eu fizess “yodelling” na guitarra.
P. – “Cage dead”, outroion Café”, é uma referência explícita a John Cage?
R. – Sim, escrevi-o na altura em que Cage morreu, o ano passado. Escrevi-o muito rapidamente e baseia-se nas letras do seu nome, “C”, “A”, “G”, “E” [iniciais de notas, em inglês]. O mais estranho é que o ambiente geral, sem que tenha sido essa a intenção, soa como um cortejo funerário. Não exageradamente triste, mas revela um certo tom de solenidade.

Pitágoras Ao Telefone



P. – “Silver star of Bologna”, do novo álbum, remete para outros títulos anteriores relacionados com a Itália. Além disso os Penguin Café gravaram o seu disco ao vivo em Roma (“When in Rome”). A Itália exerce algum fascínio especial sobre si?
R. – Um impacte fulgurante. Por exemplo, escrevi “Silver star of Bologna” há dois anos, numa altura em que me foi dada a oportunidade de organizar um festival em Bolonha, num pátio de uma antiga prisão. Eram convidados músicos para tocarem lá, os Penguin Cafe Orchestra tocaram lá. O espaço tornou-se no próprio Café Pinguim durante um mês. Escrevi o tema como uma espécie de comemoração. Além disso costumamos fazer digressões frequentes por Itália.
P. – “Discover America” inclui excertos de temas tradicionais americanos…
R. – “Discover America” baseia-se inteiramente na minha descoberta, que consistiu em juntar três temas tradicionais. “Red river valley”, “When the saints” e “Home on the range”. Se se tocar estes três temas em simultâneo, sem qualquer adição de material harmónico, eles harmonizam-se mutuamente e produzem uma espécie de harmonia americana quintessencial. Soa um bocado como Aaron Copland, sobretudo um acorde que lembra “Appalachian Spring”. Penso que é notável, juntar três peças americanas e, sem querer, elas soarem a Aaron Copland.
P. – A Inglaterra é contemplada com “Lie back and think of England”…
R. – É uma peça de construção muito simples. A sensação que se obtém dela lembra-me um pouco os compositores românticos ingleses, como Elgar ou Vaughan Williams. Há um certo ambiente pastoril…
P. – É influenciado pelos compositores que citou?
R. – Sim, penso que isso é inevitável, quando se é inglês. A música desses compositores é bastante estimulante no mesmo sentido em que Copland é o compositor americano quintessencial. Penso que Elgar e Vaughan Williams representam a quintessência dos compositores ingleses. É lógico que, em certa medida, eu receba a sua influência.
P. – Em “Pythagoras on the line” utiliza o mesmo som telefónico que já havia utilizado em “Telephone & rubber band”, do segundo álbum, no qual, curiosamente, figura o tema “Pyrhagora’s trousers”…
R. – Sim, essa citação de “Telephone & rubber band” é um polirritmo no compasso de 5/4, que é o ritmo que se obtém quando se faz soar ao mesmo tempo o sinal de chamada e o sinal de “impedido”. A explicação para a presença de Pitágoras no título é porque eu sou um grande admirador dele, do que ele pensava sobre a música e das suas observações acerca das relações numéricas entre harmónicos, e das frequências específicas das notas de uma escala ou de séries harmónicas. Quando estou a escrever uma peça que é uma colecção de polirritmos, lembro-me sempre que o devo a Pitágoras.
P. – Dada as características da sua música, pode falar-se numa síntese de intuição e matemática?



R. – Mas não é sempre assim que toda a música deveria ser? [Risos]. Por mim, procuro criar esse equilíbrio. É tudo aquilo por que me esforço – tentar encontrar um equilíbrio entre as diferentes forças que existem dentro de nós e procurar racionalizá-las. Ou será melhor dizer, irracionalizá-las?…





PENGUIN CAFÉ ORCHESTRA
Union Cafe
Polygram, Distri. Polygram

UM CAFÉ DE LUXO


Muita da magia original deste grupo, cuja génese, afirma Simon Jeffes, se deve a um sonho, residia precisamente na dimensão onírica da sua música, na imprevisibilidade, na capacidade que o grupo demosntava de surpreender através de uma música difícil de catalogar, que tinha tanto de clássico como de herético. Álbuns como “Music from the Penguin Cafe”, produzido por Brian Eno, para a Obscure Records e posteriormente reeditado nas edições E. G., “Penguin Cafe Orchestra” e “Broadcasting from Home” continham este elemento de surpresa que tornava cada audição numa espécie de “puzzle” de resolução sempre diferente. Uma mistura estranha, que englobava elementos clássicos, despistagens étnicas e “pastiches” de música de câmara em registo assumidamente “naif”, em que a tecnologia de estúdio dava o toque final de diferença, com o recurso a montagens, colagens e truncagens de toda a ordem.
A partir de “Signs of Life”, porém, as coisas descambaram para o sério, como se Simon Jeffes tivesse descoberto de súbito a sua veia de grande compositor e achasse que valia a pena mostrar ao mundo que já não havia lugar para brincadeiras. Claro que não foi num ápice que as características, digamos surrealistas, da música dos Penguin Cafe se evaporaram, para em seu lugar ficarem apenas as grandes declarações eruditas. Aconteceu, porém, que esta faceta passou a figurar nos discos mais como autocitação do que como elemento criativo propriamente dito.
Nesse disco, como em “Union Cafe”, permanecem as rumbas, os tangos e outras danças localizáveis algures entre o mapa e o cabaré da imaginação, as pilhagens a folclores vários, o minimalismo saltitante das cordas e dos ritmos em sobreposição, mas tudo isto aparece de forma previsível, não admirando sequer a recorrência de alguns títulos de temas anteriores ou mesmo, como em “Pythagoras on the line”, o decalque sonoro explícito. Um pouco como baralhar de novo e voltar a dar as mesmas cartas, só que por ordem diferente.
Sintomático desta ausência de novas ideias é o facto de “Discover America”, tema que o compositor se limita a sobrepor três canções populares norte-americanas, tocadas em simultâneo, sem qualquer outra intervenção da sua parte senão de orientar o sistema, acabar por ser o maior factor de inovação num álbum que, de outro modo, se limita a polir arestas e a afirmar o primado da forma, segundo os cânones tradicionais. O que, por outro lado, representa ainda o reconhecimento das virtualidades do passado, nessa utilização de uma técnica em tudo idêntica à usada por Brian Eno, no segundo lado de “Discreet Music”. O café Oinguim tornou-se um café de luxo, onde não cabem mais as traquinices. É uma questão de nos resignarmos aos sinais exteriores de riqueza. Porque lá dentro o ambiente continua afinal a ser requintadíssimo. (7)

Vários – “Festival WOMAD Anima Cidade de Cáceres – A Arquitectura Dos Sons Do Mundo” (festival)

pop rock >> quarta-feira >> 12.05.1993


Festival WOMAD Anima Cidade De Cáceres
A ARQUITECTURA DOS SONS DO MUNDO


Durante três dias, a cidade espanhola de Cáceres transformou-se na aldeia global de que falava McLuhan. A “world music”, com todo o seu cortejo de exotismos, invadiu a zona antiga da cidade. Sons, pessoas e arquitectura uniram-se num mosaico pintado de todas as cores. Em Lisboa, como será?



Lisboa vai receber, já no final de Agosto ou princípio de Setembro, o Festival WOMAD, especializado nas áreas de “world music” e considerado um dos mais prestigiados do género. Falta escolher o local exacto e a duração. Para Juan Arzubialde, organizador da edição espanhola, este ano de novo levada a cabo na cidade de Cáceres, “tudo depende do género de apoios que houver da parte da Câmara Municipal. Tanto poderá ser num local público como num estádio”. Sobre os artistas que estarão presentes em Lisboa, Juan Arzubialde não adianta por enquanto quaisquer nomes. De certeza apenas está garantida a presença de Peter Gabriel, o ex-Genesis que em 1982 contribuiu para lançar o conceito WOMAD – World Music, Arts and Dance. Os outros poderão ser alguns dos presentes em Cáceres, ou não. Quanto a Peter Gabriel, o reportório que apresentará em Portugal está igualmente dependente do local: “No caso de ser um recinto fechado”, diz Juan Arzubialde, “o espectáculo será idêntico ao que o artista tem apresentado na sua digressão actual pela Europa. Caso se trate de um recinto aberto, haverá um tipo de produção diferente, com um naipe de canções de álbuns antigos de Gabriel, como “Sledgehammer”, “Games Without Frontiers” ou “Biko”, a par de temas do mais recente, “Us”. Sem querer adiantar outros nomes à lista de músicos participantes, ficou contudo a promessa de que esta será escolhida “em função das preferências do público português”. Resta saber como serão avaliadas estas preferências, mas, levando em conta a ligação da WOMAD à Real World, não é difícil prever que o catálogo desta editora venha a contribuir com a maior parte dos artistas. O ideal seria mesmo que Lisboa soubesse acolher o festival num local de acordo com as suas tradições. Como aconteceu em Cáceres, escolhida, segundo o promotor espanhol, por ter “uma parte antiga maravilhosa que constitui um cenário natural adequado para o tipo de situação que se pretende criar com o WOMAD – um local histórico que mantém intactas as suas características, onde as pessoas podem circular”.



Cáceres é um encanto. Pequena cidade da região espanhola da Estremadura, situada a pouco mais de cem quilómetros da fronteira com Portugal, a leste do Alto Alentejo, Cáceres voltou a ser, à semelhança do ano transacto, palco de uma das extensões do festival WOMAD (World of Music, Arts and Dance), espécie de catálogo actualizado das várias “músicas do mundo” em exposição pelos países da Europa.
O Festival decorreu entre sexta-feira e domingo, na zona antiga da cidade, entre igrejas e outras construções de traça medieval reconstruída, considerados património mundial. Dois palcos foram montados em zonas desniveladas, um na Plaza San Jorge, escavada entre a pedra histórica, tendo uma das igrejas como pano de fundo, o outro num patamar acima, na Plaza Veletas, em descampado aberto para as colinas verdes da Estremadura.
O programa, como é costume, privilegiou os artistas ligados à editora Real World, o que não admira pois Peter Gabriel, “patrão” deste selo, foi o principal mentor e impulsionador do projecto WOMAD, nas suas primeiras edições.
Depois do espectáculo de sexta-feira realizado no estádio da cidade, o único com entrada paga de todo o festival, que contou com o próprio Peter Gabriel, Oyster Band, Grupo Yanko e Kiko Veneno, Sábado arrancou para uma série de músicas de sabores e proveniências diversas. O labirinto de ruelas, arcos, escadarias e praças medievais de Cáceres encheu-se de uma multidão colorida que constantemente girava entre os dois palcos ou, quando a música não era da sua predilecção, se embrenhava na exploração dos recantos e pormenortes arquitectónicos do espaço circundante.

Homilia Em Rhythm ‘N’ Blues

Acedia-se aos recintos musicais através de outras duas praças onde se albergava a fauna humana mais exótica que se possa imaginar. Turistas de máquina fotográfica à tiracolo chocavam com hippies envergando vestes estrambólicas; peles tatuadas cruzavam-se com “tailleurs” de fim-de-semana, mini-saias praticamente inexustentes contrastavam com túnicas que rojavam pelo chão. O som de congas em convívio harmónico com o choro de bébés e risos suspensos entre os paredões e muralhas do local. Dos lados, o comércio obrigatório e habitual nestes acontecimentos: uma tenda de comida japonesa confeccionada na ocasião confortava os estômagos no intervalo das músicas, “recuerdos” exóticos chamavam a atenção em barracas cobertas de artefactos bizarros, panos e fumos de todas as cores e fragrâncias. Uma delas, de arte australiana, exibia t-shirts estampadas com motivos tribais. Quem quisesse podia até adquirir um didjeridu, instrumento musical típico dos aborígenes que alguém exemplificava no local, em concerto improvisado. E as inevitáveis bancas de discos, bem fornecidas de doscos “Real World”, claro, entre outras miscelâneas de “world music” escolhidas mais ou menos ao acaso.
O ambiente geral recordava os bons anos 60, muito “cool” e “loose”, diriam os ingleses, e evocava as imagens de uma feira da Idade Média, onde nem sequer faltavam os habituais comedores de fogo, malabaristas e uma comunidade hippie, carregada de crianças e de cães, tocando congas e fazendo habilidades a troco de algumas moedas. A barafunda de pessoas e culturas atingiu o auge quando, no meio deste cenário de filme fantástico, surgiu um cortejo de casamento burguês a caminho da igreja criando uma mistura inaudita de “kitsch” burguês e folclore planetário. A confusão atingiu o ponto máximo quando numa outra igreja, de portas escanacaradas, situada em frente da Plaza Veletas, era possível assistir a uma missa em que as palavars da homilia sacerdotal se casavam com os rhythm ‘n’ blues dos Holmes Brothers que, na ocasião, tocavam a poucos metros de distância. Nunca o termo “world music” atingira antes um significado tão lato…

Aldeia Global

Os nomes em cartaz foram tocando pela tarde e noite dentro fazendo tábua rasa do alinhamento previamente estabelecido, o que obrigava a que toda a gente andasse numa roda viva, escadarias acima, escadarias abaixo, em busca de música, fosse ela qual fosse. Voltas trocadas, mas ninguém se importou. A arquitectura do local tudo dominava, tornando a música numa espécie de bónus, um fundo sonoro que harmonizava as gentes e o espaço, o calor que se fez sentir ao longo de todo o fim de semana com as cervejas, os sumos, o incenso e a “ambiente music” criada pelas vozes da multidão. A “aldeia global” reunida em torno de um conceito que com o correr do tempo ganha cada vez mais sentido: de miscigenação de culturas, de encontro e diálogo entre vozes plurais.
Os sul americanos Yanko puseram toda a gente a dançar, cumprindo o ritual da “siesta” que “nuestros hermanos” não dispensam. Mas a primeira grande celebração de Sábado aconteceu com a prestação dos malianos Bajourou. Duas guitarras, magistralmente dedilhadas apoiaram as deambulações do vocalista que não resistiu à euforia e se perdeu, cantando e dançando, no meio da audiência.

Depois, foi subir as escadarias de pedra que levavam ao palco superior para nos enfardarmos com a pop enfadonha dos Los Coquillos, originário das Canárias. Convém explicar que a sequência dos artistas, desprezando o programa inicialmente traçado, decorreu de modo a alternar as actuações num e noutro palco, o que obrigava as pessoas a circular, se quisessem assistior a todas elas, mal um grupo acabava de tocar na plaza San Jorge e logo o seguinte iniciava a sua prestação na plaza Veletas. Circular é viver.
Momento alto do festival aconteceu com o espectáculo do grupo vocal feminino Donnisulana. Cinco mulheres vestidas de negro trouxeram consigo o canto e a elevação “a capella” da Córsega, em registo de religiosidade que contrastou com a celebração festiva dos africanos. Africanos que no interior da Igreja/local de exposições, no “garden workshop space”, por iniciativa dos músicos dos Kanyinda Mujala, colocaram os instrumentos de percussão nas mãos da assistência para uma desbunda rítmica colectiva. Os indiferentes ao batuque tinham à sua disposição uma exposição de arte artesanal e de fotografia alusivas à temática do festival, que se pretendeu contra a xenofobia e o racismo.
Pouco dada a exotismos, a música dos Holmes Brothers invadiu o fim de tarde de Cáceres os “Rhythm ‘n’ Blues” tocados à boa maneira antiga, servida pela guitarra incandescente de Wendell Holmes. Em baixo, na plaza San Jorge, os russos Terem Quartet proporcionaram uma das melhores “performances” do festival, tocando o que se poderá definir como “rock ‘n’ roll” cossaco, em pura aceleração das balalaicas (uma delas gigantesca, desempenhando as funções de contrabaixo) e do acordeão. A noite desceu ao som do “celtic rock” dos Oyster Band que, à medida que se vão tornando mais conhecidos e comercialmente viáveis, vão perdendo algumas das características que faziam o seu apelo inicial: a espontaneidade, as conotações etílicas, o imprevisto. Hoje a banda britância está cada vez mais profissionalizada, vivendo das acrobacias do violinista e das sugestões “pub” do acordeão, sobre uma batida quadrada digan de “disco sound” mais primário. Ninguém pareceu importar-se muito e a actuação dos Oyster Band saldou-se por uma das mais bem recebidas pelo público de Cáceres.
Domingo, em início de tarde estival, viveu em exclusivo das proezas vocais do Grupo Sampling, seis cubanos acrobatas das vozes “a capella”, que utilizam para imitar o som de diversos instrumentos musicais. Um dos elementos executou mesmo, para gáudio dos presentes, um solo da bateria, reproduzindo na perfeição os timbres e o “ataque” dos vários tambores e pratos, enquanto simulava com as mãos e com os braços os gestos respectivos de um verdadeiro baterista.
Depois, e ao contrário do previsto, foi arrumar as malas e zarpar para outras bandas. S. E. Rogie, o “blues man” da Serra Leoa, transferiu a sua actuação para Badajoz. O concerto de música “new age” de Roger Eno com Kate St. – John, por seu lado, realizou-se em Mérida. Correntes alternas de música – cujo programa contou ainda com as presenças do indiano Shankar, Mustapha Tetty Addy, do Ghana, e o rei do acordeão “tex mex”, Flaco Jimenez – que durante três dias transformaram uma pequena cidade de Espanha na capital da “world music”. Lisboa vai ter em breve oportunidade de ver e ouvir como é.