Arquivo da Categoria: Críticas 2000

Fuschia – “Fuschia” + Johnny Winter – “The Progressive Blues Experiment” + Frumpy – “Frumpy 2” + The Undertones – “Hypnotised” + Jeff Greinke – “Over Ruins” + Jeff Greinke – “Moving Climates”

19 de Maio 2000
REEDIÇÕES


Fábulas góticas



Praticamente desconhecido, mesmo dos mais conhecedores da música progressiva dos anos 70, o nome de Fuschia conquistou, volvidas três décadas, o estatuto de culto, sendo a edição original em vinil do seu único álbum uma raridade. “Fuschia”, editado em 1971, surge agora com uma capa cartonada e sem menção da editora. A gravação leva a fidelidade ao som original ao ponto de reproduzir os ruídos de um vinil já com algum uso… Não, não se trata de qualquer figura de estilo de mais um disco chique de hip hop mas tão só de uma transição de má qualidade. Passemos então adiante, ficando apenas o registo da existência deste estranho objecto desenterrado de um passado esquecido?
Seria assim se “Fuschia” não fosse, como é, um daqueles álbuns possuidores de um estranho fascínio, como se transportasse consigo o perfume de algo realmente valioso. Os Fuschia eram um sexteto acústico onde pontificavam as vozes dos seus três elementos femininos, Janet Rogers, Vanessa Hall Smith (ambas também violinistas) e Madeleine Bland (que também tocava violoncelo, piano e órgão de pedais). Três rapazes encarregavam-se do formato normal guitarra-baixo-bateria, com Tony Durant, o guitarrista, também encarregado das partes vocais. Tocavam um folk-rock gótico de tonalidades sombrias, e contavam histórias de assustar, com castelos perdidos na bruma, paixões bizarras e seres sobrenaturais. Por vezes a música lembra os Comus, de “First Utterance”, noutras os Spirogyra, noutras ainda vem à memória o registo mais doce dos Tudor Lodge, dos Trader Horne e dos Storyteller, com o mesmo gosto pela fábula surreal que Peter Gabriel encetou com os Genesis em “From Genesis to Revelation”. Pode ver-se nesta música (ouça-se com atenção um tema como “A tiny book”, um cruzamento dos Kinks com folk e psicadelismo) uma antecipação ingénua de grupos como os Kula Shaker ou Gorky’s Zygotic Mynci. Ou simplesmente um livro de histórias coberto de poeira para abrir e folhear com cuidado capaz de excitar a curiosidade do melómano-arqueólogo. (Sem editora, import. Lojas Valentim de Carvalho, 7/10)

Sem estranheza se qualquer espécie, além do facto de ser albino, o guitarrista Johnny Winter dedicava-se em 1969, como se dedicou (ele e o seu irmão Edgar Winter) durante toda a sua vida de músico, aos “blues”. Mas como a época era de progressivismos, era de bom tom acrescentar-lhe qualquer designação mais rebuscada que a “simples” raiz da música negra e do rock’n’roll. Johnny Winter chamou então a um dos seus trabalhos, “The Progressive Blues Experiment”, uma série de blues eléctricos da sua autoria (mas também versões, como “It’s my own fault”, de Muddy Waters), que acima de tudo deixavam bem vincadas as suas extraordinárias qualidades de guitarrista. Por vezes excitante, sempre carregado de energia (1969 foi, de resto, um ano em que a música parecia querer explodir a cada instante…), “The Progressive Blues Experiment” ficou como um bom exemplo de um movimento, o blues progressivo, que vingou sobretudo em Inglaterra (Graham Bond, Alexis Korner…), onde atingiu o zénite em dois álbuns seminais de John Mayall: “Bare Wires” e “Blues from Laurel Canyon”. (BGO, distri. Megamúsica, 7/10)

Já em plena decadência do progressivo e com o punk a martelar em pleno, ainda havia gente, como os alemães Frumpy, que acreditava que a salvação do rock estava em perder 10 minutos em cada faixa com solos de órgão ou de guitarra e na adaptação de técnicas de execução sacadas á música sinfónica. “Frumpy 2”, de 1976, é considerado o álbum clássico do grupo e há mesmo quem o inclua numa lista dos melhores de sempre do “krautrock” (como os autores da enciclopédia “A Crack in the Cosmic Egg”). Digamos que o “krautrock” não sai propriamente dignificado com esta nomeação, nem os quatro longos temas que aqui correm numa cavalgada de solos a seguir a solos conseguiram fazer com que os fãs dos Deep Purple ou dos Uriah Heep trocassem a adoração por estas bandas pelos Frumpy. Há no entanto momentos de rock sinfónico (ugh!) bem conseguidos e a voz rouca da vocalista Inga Rumpf (que ganhou alguma notoriedade na banda de que fez parte a aseguir, os Atlantis) até conseguirá eriçar alguns pêlos aos entusiastas do hard rock… (Repertoire, distri. Megamúsica, (6/10)

E já que se falou em punk, concentremo-nos em “Hypnotised”, segundo álbum (1980) dos irlandeses The Undertones que, por acaso, nem eram punks mas uma banda do que então se designava “power pop”. A voz de Feargal Sharkey soava aqui tão grande como o seu nariz e “Hypnotised” está repleto de hinos aos rapazes e às raparigas que contam as pequenas alegrias e dramas da vida nos subúrbios em canções directas com melodias, por vezes, viciantes. Como “My perfect cousin”, editado em single e que se tornou um sucesso de vendas, a tal que fala de Kevin, o primo “perfeito” da “upper class”, a quem a mãe ofereceu um sintetizador e, como brinde, os Human League, para o ensinarem a tocar. (Dojo, import. Lojas Valentim de Carvalho, 7/10).

Fechemos este artigo com uma descida à cave. Para ouvir o rugido que sai das profundezas da música de Jeff Greinke, compositor norte-americano intérprete da vertente mais telúrica da música electrónica. Greinke aprendeu com os ensinamentos de Brian Eno, em “On Land”, só que, em vez da superfície, escolheu como local de meditação, os abismos do interior da terra. “Over Ruins” e “Moving Climates” (agora juntos no mesmo CD) pertencem à sua discografia dos anos 80, tendo sido editados antes, respectivamente em 1985 e 1986, apenas em cassete. O que significa que estão mais próximos das texturas densas de “Timbral Planes” do que da clonagem das paisagens do quarto mundo de Jon Hassell de “Big Weather”. Aqui os sintetizadores de Jeff Greinke eram ainda feitos de pedra, electricidade e lava, fazendo estremecer o solo como os passos de um gigantesco dinossauro. O lado nocturno da música de Steve Roach. (Raum 312, import. Lojas Valentim de Carvalho, 8/10).



Carlos Zel – “Com Tradição”

2 de Junho 2000
PORTUGUESES


Carlos Zel
Com Tradição (7/10)
Ed. e distri. Movieplay



Ainda que sem prometer, como escreve Rui Vieira Nery nas notas de apresentação, “os habituais requintes de novo-riquismo intelectual, revoluções estéticas e filosóficas na abordagem do fado”, ou por ter optado por instrumentações de alta tecnologia eletro-acústica ou por ter mergulhado espalhafatosamente no universo chique da poesia pós-moderna”, “Com Tradição” contém matéria suficiente para não o colocar na prateleira redutora da ortodoxia. Mais do que a inclusão de “Fado tropical”, de Chico Buarque, são as letras que recorrem, em estilo paródico, a linguagens “modernas”, como as de Nova Lisboa” ou “Fado da Internet”, que separam esta álbum de um discurso mais convencional. Sem contradição. Passe a ironia desta reapropriação, pelas novas tecnologias, do fado, ele já não é o que era. Mas, como sempre, é o fadista que faz o fado. A sua alma, a sua vida e a sua voz. E neste capítulo, Carlos Zel pertence ao grupo das “velhas” vozes clássicas, para quem o fado nunca mudará na sua essência. Em dois momentos-chave do disco, “Poema do nosso amor” e “Coração atormentado” Carlos Zel revela a profundidade das suas raízes e algo que distingue o grande do pequeno fado: a capacidade de se entregar e de se escutar por dentro, afinal o que permite afirmar ser este um álbum “Com Tradição”.



Lars-Erik Norrström Trio – “Idag” + Nils Petter Molvær – “Solid Ether”

28 de Julho 2000
POP ROCK – DISCOS


Lars-Erik Norrström Trio
Idag (6/10)
LJ, distri. A Orelha de Van Gogh

Nils Petter Molvær
Solid Ether (6/10)
ECM, distri. Dargil

A “grande música negra” não tem propriamente grandes tradições na Suécia, mas… Faz-se o que se pode. “Idag”, do trio do teclista Lars-Erik Norrström, dá a conhecer uma música que deve tanto à inspiração de momento do solista como ao “interface” estabelecido entre os desempenhos acústicos e a paraphernalia eletrónica disponibilizada pelo estúdio. Norrström segue um esquema relativamente rígido que parte das deambulações solitárias do piano até estas se submeterem a tratamentos eletrónicos, sem que da operação resultem grandes dividendos. É música fria que, embora assente na improvisação, se inscreve numa lógica rigorosa na qual cada instante é minuciosamente pensado e executado. Na ECM, Nils Petter Molvær – que há dois anos atuou no CCB, em Lisboa – move-se em águas mais seguras, juntando uma discursividade (ainda) moldada no jazz para a partir dela se deixar transporter pelas mesmas programações eletrónicas que já se destacavam no seu trabalho anterior, cortejando um público mais jovem educado na cultura da música de dança. A house, o hip-hop e lampejos de drum’n’bass procuram dar a “Solid Ether” um acento de modernidade mas a pergunta fica a bailar no ar: fará sentido falar de inovação, a propósito de fusões deste tipo, quando um músico como Amon Tobin ou projetos como os Faultline se movimentam já numa galáxia infinitamente mais distante e complexa que a de Nils Petter Molvær?