Carlos Do Carmo – “Do Tempo Do Vinil”

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10 Outubro 2003


CARLOS DO CARMO
Do Tempo do Vinil
Ed. e distri. Universal
8|10

carlos do carmo
fado em mil tempos



No tempo em que as rodelas com música impressa ainda eram pretas, grandes e enfeitadas com riscos e poeira, Carlos do Carmo gravou, nos anos 70 e 80, uma série de singles que até hoje permaneciam sem edição no formato digital. “Do Tempo do Vinilo” recupera alguns desses trabalhos mostrando até que ponto a pureza do timbre e a luminosidade de dicção do fadista não se compadecem com as “frituras” e outras interferências de ruído do vinilo.
“Kyrie” dá início a esta viagem de regresso e limpeza do passado, de forma surpreendente. Uma liturgia com versos de Ary dos Santos suportada por coros celestiais que o fadista usa da melhor forma para arriscar registos vocais nele inusitados, onde avultam ornamentações e uma emotividade à fl or da pele fora do habitual. Tipicamente “Seventies”, “Kyrie” está menos próximo do fado do que da canção urbana permeável pelo charme discreto da “chanson”. Carlos do Carmo é um Breliano de coração e prova-o, neste tema, mas também no crescendo e nas entoações de “O que sobrou de um queixume”.
Outro momento capaz de provocar a admiração – por mostrar até que ponto Carlos do Carmo é capaz de experimentar fórmulas musicais afastadas do fado tradicional – encontramo-lo em “Fado Penélope”, com harmonias vocais ao melhor estilo (que me perdoem os puristas se forçamos um pouco a nota…) dos…Gentle Giant. Mas não é de espantar, visto que a música e o arranjo têm a assinatura de um dos poucos génios da música popular portuguesa, José Mário Branco.
“Do Tempo do Vinil” tem odor a maresia, da nostalgia que é a própria alma de Lisboa e que Carlos do Carmo respira e canta há mais de 40 anos. As músicas são de Fernando Tordo, o já citado José Mário Branco, Frederico de Brito, Max, Martinho da Assunção, Vítor Ramos, Miguel Ramos, Ivan Lins e José Luís Tinoco/José Niza, e as palavras de Ary dos Santos, Manuela de Freitas, Vasco de Lima Couto, João Dias e José Mário Branco, com as participações instrumentais de António Chainho, Martinho da Assunção, José Maria Nóbrega, Paulo de Carvalho, Tozé Brito, Raul Nery, Thilo Krassman, Carlos Bica e José Niza. Todos evidenciando uma cumplicidade sem reservas com a voz e com o homem.
Carlos do Carmo tem o condão de iluminar as vielas mais escuras do fado e do sentir portugueses com a lanterna da lucidez e, acima de tudo, com um amor inultrapassável pela condição humana, com todos os seus dramas, misérias e heroísmos. Que o cante fazendo da noite dia, não é a menor das suas virtudes. “Sei que pressinto na noite uma alegria chamando”, canta em “Fado Ultramar”, outra jogada de mestre do arranjador e aqui também letrista, José Mário Branco, ao pôr a guitarra de António Chainho a soar como um bandolim.
“Do Tempo do Vinil” fala do tempo, dos tempos e da sua transcendência. “Na transversal do tempo navegam as cantigas” de “Fado Pimentinha”. Fado universal, ainda nas palavras de Ary dos Santos, “da fala portuguesa morrendo no além-mar da solidão, rainha da alegria, regina da tristeza, parando como pára o coração”. Mil tempos de espera, mas também de dança, de afirmação de uma personalidade ímpar na música portuguesa, que valem o futuro.

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